A Reforma Trabalhista é a vitória do Brasil colônia sobre o Brasil do desenvolvimento

O autor da título é João Sicsú, ex-diretor de Política e Assuntos Macroeconômicos do IPEA, em entrevista ao jornal eletrônico Correio da Cidadania.

Por Gabriel Brito

O go­verno Temer, apesar de ser o mais re­pro­vado da his­tória, con­se­guiu aprovar um pro­jeto cru­cial para o re­de­senho das re­la­ções so­ciais e econô­micas bra­si­leiras. Sobre a Re­forma Tra­ba­lhista que en­gendra o pro­cesso, en­tre­vis­tamos o eco­no­mista João Sicsú, ex-di­retor de Po­lí­tica e As­suntos Ma­cro­e­conô­micos do IPEA, que não tem dú­vidas: acima de tudo, trata-se da re­a­fir­mação do Brasil Colônia sobre o Brasil do De­sen­vol­vi­mento.

“A ideia é es­pe­ci­a­lizar o Brasil na di­visão in­ter­na­ci­onal da pro­dução, a res­peito de itens como pe­tróleo bruto, açúcar, carne bo­vina e suína, mi­nério de ferro, ma­deira. Essa será a par­ti­ci­pação do Brasil, en­quanto os países avan­çados con­ti­nu­arão a fazer pro­dutos so­fis­ti­cados. Gosto muito da se­guinte com­pa­ração: ima­gine um con­têiner cheio de soja; vale muito pouco. Ima­gine outro cheio de ta­blets e chips; vale muito. É a di­fe­rença entre ser colônia e me­tró­pole no sé­culo 21”, ex­plicou.

Di­ante da chuva de fa­lá­cias mi­diá­ticas e a inex­pli­cável pa­ra­lisia dos re­pre­sen­tantes ofi­ciais do mundo do tra­balho, pouco vale o de­bate po­lí­tico e ide­o­ló­gico. Basta nos atermos às ques­tões econô­micas para com­pre­ender aquilo que al­guns es­pe­ci­a­listas já cha­maram de re­ar­ranjo geral a ser­viço de uma base econô­mica de pa­drões ne­o­co­lo­niais, an­co­rada na su­pe­rex­plo­ração do tra­ba­lhador e da na­tu­reza. Pela frente, uma quase certa des­truição do mer­cado in­terno e re­bai­xa­mento do pa­drão médio de vida.

“Vai cair toda a ar­re­ca­dação, não só pre­vi­den­ciária. Vai acon­tecer que o mer­cado do­més­tico fi­cará mais fraco pela queda ge­ne­ra­li­zada dos sa­lá­rios, o que sig­ni­fica que os es­tados da fe­de­ração vão so­frer, já que o ICMS será menor. Os lu­cros de quem produz para o mer­cado in­terno serão me­nores, por­tanto, PIS, CO­FINS, também irão cair. Vamos de­morar muito para re­cu­perar a po­sição que tí­nhamos em 2014”, sin­te­tizou.

joaosicsuA en­tre­vista com­pleta com João Sicsú pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como ana­lisa a apro­vação da re­forma tra­ba­lhista?

João Sicsú: A Re­forma Tra­ba­lhista é apenas uma das pro­postas deste go­verno para re­a­lizar um pro­jeto maior, no caso, a trans­for­mação do Brasil em colônia mo­derna. Uma colônia mo­derna é aquela que faz di­versos pro­dutos bá­sicos, di­fe­ren­te­mente das colô­nias do sé­culo 16, que gi­ravam em torno de um pro­duto. Hoje, com o ter­ri­tório todo ocu­pado e ex­plo­rado, são vá­rios pro­dutos, mas todos eles bá­sicos.

A ideia é es­pe­ci­a­lizar o Brasil na di­visão in­ter­na­ci­onal da pro­dução, a res­peito de itens como pe­tróleo bruto, açúcar, carne bo­vina e suína, mi­nério de ferro, ma­deira. Essa será a par­ti­ci­pação do Brasil, en­quanto os países avan­çados con­ti­nu­arão a pro­duzir ta­blets, chips e ou­tros pro­dutos so­fis­ti­cados.

Assim, vamos en­trar no jogo pelo lado dos tra­ba­lha­dores de baixa qua­li­fi­cação e baixos sa­lá­rios. Nossos pro­dutos têm baixo valor agre­gado e muito peso. Gosto muito da se­guinte com­pa­ração: ima­gine um con­têiner cheio de soja; vale muito pouco. Ima­gine outro cheio de ta­blets e chips; vale muito. É a di­fe­rença entre ser colônia e me­tró­pole no sé­culo 21.

A pro­posta da Re­forma Tra­ba­lhista reduz os custos do tra­balho aqui, jus­ta­mente para o Brasil ficar mais com­pe­ti­tivo na ex­por­tação dos pro­dutos bá­sicos. Isso en­fra­quece de­mais nossa eco­nomia, pois a Re­forma Tra­ba­lhista no fim das contas reduz sa­lário, reduz a re­mu­ne­ração do tra­ba­lhador e en­fra­quece o mer­cado do­més­tico. Ne­nhum em­pre­sário vai ficar mais com­pe­ti­tivo que o outro que produz no mer­cado do­més­tico, pois todos terão seus custos re­du­zidos. Mas em re­lação a quem produz para o ex­te­rior foi um ganho, através da re­dução de custos, o que deixa o Brasil mais com­pe­ti­tivo na ex­por­tação de pro­dutos bá­sicos.

Tem partes es­pe­cí­ficas também im­por­tantes, como tra­balho in­ter­mi­tente, con­trato do tra­ba­lhador autô­nomo ex­clu­sivo etc. Mas é pre­ciso en­tender a pro­posta como pro­jeto de trans­for­mação do Brasil em colônia mo­derna com três ca­rac­te­rís­ticas: la­ti­fúndio, tra­balho se­mi­es­cravo e pro­dução de itens bá­sicos, não só agri­cul­tá­veis, mas mi­ne­rais e ex­tra­ti­vistas.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como res­ponder as ale­ga­ções a res­peito da an­ti­gui­dade das leis tra­ba­lhistas? Tendo um lado ver­da­deiro, o que po­deria ser feito nesse sen­tido para atu­a­lizá-las de acordo com as nu­ances do mundo atual?

João Sicsú: A ideia de atacar as leis de tra­balho é assim. Tais leis exis­tiam de forma fa­tiada desde antes dos anos 40, mas foram con­so­li­dadas na re­fe­rida dé­cada, tendo so­frido inú­meras mu­danças desde então. É ina­de­quado partir dessa coisa de falar que é bom porque é an­tigo, ou é ruim por ser an­tigo. Não quer dizer nada, não é ar­gu­mento.

Temos de pensar o se­guinte: o sé­culo 21 tem de ser o do de­sen­vol­vi­mento, da su­pe­ração da mi­séria, da igual­dade de opor­tu­ni­dades, do de­sen­vol­vi­mento ci­vi­li­za­tório. E as leis tra­ba­lhistas de­ve­riam ser re­for­madas para con­so­lidar e am­pliar di­reitos dos tra­ba­lha­dores. Esse é o sen­tido mo­derno de de­sen­vol­vi­mento, que visa su­perar todo o atraso bra­si­leiro e mun­dial, como a fome, algo ina­cei­tável no sé­culo 21, assim como a au­sência de edu­cação de qua­li­dade, mo­radia digna. Isso é ina­cei­tável.

Por­tanto, deve se mo­der­nizar as leis tra­ba­lhistas neste sen­tido. Um exemplo é que de­veria se re­duzir a jor­nada de tra­balho, para, aí sim, se cri­arem mais em­pregos. Uma re­forma que re­du­zisse a jor­nada de tra­balho de 44 para 40 horas se­ma­nais ge­raria mais em­pregos. Questão arit­mé­tica. Se o tra­ba­lhador tem menos ex­pe­di­ente, é ne­ces­sário con­tratar outro.

Outra bo­bagem sem fim é a ideia da ma­nu­tenção de di­reitos gerar de­sem­prego e barrar o cres­ci­mento. Basta olhar para poucos anos atrás, com as mesmas leis tra­ba­lhistas que agora chamam de en­trave: o Brasil cresceu, re­duziu a po­breza e gerou mi­lhões de em­pregos com car­teira as­si­nada. O Brasil pre­ci­sava de am­pli­ação de di­reitos tra­ba­lhistas e so­ciais. Essa re­forma vai jogar o Brasil para o atraso, para a vida do mer­cado do­més­tico fraco. O país pode crescer, mas será para fora, não para usu­fruto da po­pu­lação.

Cor­reio da Ci­da­dania: Acre­dita que ha­verá au­mento da for­ma­li­zação, como se alega nos se­tores em­pre­sa­riais?

João Sicsú: Não há re­lação al­guma entre uma coisa e outra. Uma coisa é certa: ha­verá pre­ca­ri­zação das re­la­ções tra­ba­lhistas. Nada pode ser mais pre­cário do que a re­lação in­ter­mi­tente. É a coisa mais pre­cária que pode existir. O tra­ba­lhador ini­ciar o mês sem saber da sua renda ao final, pois de­pende de de­manda em­pre­sa­rial.

O autô­nomo ex­clu­sivo é a es­cra­vidão for­ma­li­zada. “Você é de um só dono e tra­balha apenas quando teu pa­trão de­seja”. Mas o mais grave é a ideia do ne­go­ciado sobre o le­gis­lado. É vale tudo. Tem muita gente achando que vai se dar bem porque po­derá ne­go­ciar di­re­ta­mente com o pa­trão. Mas não existe ne­go­ci­ação in­di­vi­dual com pa­trão. Pa­trão es­ta­be­lece regra geral. Quem quiser se adequa, quem não quiser vai em­bora, porque tem outro que­rendo a vaga.

No mesmo pa­cote, vem a Lei da Ter­cei­ri­zação. Por exemplo, um tempo atrás, surgiu uma ca­te­goria nova de pes­soas, os “con­cur­seiros”, pes­soas que es­tu­davam pra passar em con­cursos, ou de­pois de pas­sarem em um con­ti­nu­avam es­tu­dando para passar em ou­tros me­lhores. Pois bem, no úl­timo final de se­mana par­ti­cipei de uma reu­nião dos ban­cá­rios, onde foi fa­lado que hoje em dia a pessoa entra no Banco do Brasil e não se im­porta muito com o que acon­tece dentro do banco, porque só quer ga­nhar seu di­nhei­rinho en­quanto não passa no pró­ximo con­curso.

Bom, agora não vai haver mais con­curso algum. O Banco do Brasil e a Caixa vão con­tratar em­presas que pres­tarão ser­viço de caixa, por exemplo. A quan­ti­dade de ban­cá­rios será muito re­du­zida. O caixa, tal como o vi­gi­lante e a lim­peza, vai ser ter­cei­ri­zado.

Cor­reio da Ci­da­dania: Essa pos­sível for­ma­li­zação se daria em que con­di­ções? Muita pe­jo­ti­zação e ter­cei­ri­zação?

João Sicsú: É só pre­ca­ri­zação. For­ma­li­zação só se for junto com a pre­ca­ri­zação, só assim para ter al­guma chance de se con­cre­tizar. Antes se podia ter uma em­pre­gada do­més­tica in­formal, ainda que se cor­resse algum risco, já que a lei é mais clara e ob­je­tiva hoje em dia, mas de qual­quer ma­neira o pa­trão podia ter uma do­més­tica in­formal. Agora basta for­ma­lizar como pres­ta­dora de ser­viços na forma de Pessoa Ju­rí­dica.

Pode até au­mentar a for­ma­li­zação da pre­ca­ri­zação, mas não a for­ma­li­zação com di­reitos tra­ba­lhistas e so­ciais. Bem ao con­trário, isso cer­ta­mente vai di­mi­nuir. É pos­sível que as do­més­ticas não for­ma­li­zadas virem PJ, por­tanto, for­ma­liza-se a pre­ca­ri­zação. Pessoa ju­rí­dica é uma em­presa; em­presas não tiram fé­rias, não têm 13º sa­lário, não têm li­cença ma­ter­ni­dade, em­presas não ficam grá­vidas.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como isso deve in­cidir na ar­re­ca­dação pre­vi­den­ciária? A por­teira da Re­forma da Pre­vi­dência foi aberta de vez?

João Sicsú: Vai cair toda a ar­re­ca­dação, não só pre­vi­den­ciária. Vai acon­tecer que o mer­cado do­més­tico fi­cará mais fraco pela queda ge­ne­ra­li­zada dos sa­lá­rios, o que sig­ni­fica que os es­tados da fe­de­ração vão so­frer, já que o ICMS será menor. Os lu­cros de quem produz para o mer­cado in­terno serão me­nores, por­tanto, PIS, CO­FINS - que de­ve­riam ser pre­vi­den­ciá­rios, mas en­tram no bolo da ar­re­ca­dação do Te­souro - também irão cair.

Não é só a Pre­vi­dência, mas toda a má­quina pu­blica so­frerá queda de ar­re­ca­dação. O tra­ba­lhador quando for­ma­li­zado em car­teira faz uma série de re­co­lhi­mentos. Quando ele passar para PJ, ar­re­ca­dará muito menos im­postos, o que sig­ni­fica queda de re­ceitas em todos os ní­veis, mu­ni­cipal, es­ta­dual e fe­deral. O Brasil vai ser um mundo de mi­lhões de tra­ba­lha­dores pre­ca­ri­zados e pau­pe­ri­zados, a re­ceber e con­sumir menos.

Cor­reio da Ci­da­dania: Bem ou mal, po­derá haver al­guma re­cu­pe­ração do em­prego e da renda? O que você prevê para a eco­nomia bra­si­leira no pró­ximo pe­ríodo?

João Sicsú: A eco­nomia bra­si­leira, se houver algum tipo de re­cu­pe­ração, como in­dicou o pri­meiro tri­mestre, é no sen­tido que men­ci­onei. O Brasil colônia cres­cendo, o Brasil em de­sen­vol­vi­mento de­cres­cendo. O que houve no pri­meiro tri­mestre: cres­ceram as ex­por­ta­ções, as ati­vi­dades de trans­porte e ar­ma­ze­nagem, e a agro­pe­cuária. Uma amostra do que o Brasil pode ser quando “crescer”, pois cres­ci­mento de­pende de es­tí­mulo a de­mandas, de al­guém que compre o que é ven­dido, al­guém que tenha von­tade e poder de compra.

Isso de­pende muito das ini­ci­a­tivas do go­verno. Mas o go­verno não tem ne­nhuma ini­ci­a­tiva. Mantém a taxa de juros alta, só corta gastos de Pre­vi­dência, do Minha Casa Minha Vida, que sig­ni­ficam deixar de botar di­nheiro na eco­nomia, deixar de gerar con­sumo e de gerar lucro em­pre­sa­rial. A po­lí­tica fiscal (de es­tí­mulo aos gastos) e a mo­ne­tária (de altos juros) estão in­ver­tidas, o que es­tagna a eco­nomia na de­pressão.

Caímos em torno de 8% no úl­timo pe­ríodo, de modo que vamos de­morar muito para re­cu­perar a po­sição que tí­nhamos em 2014. Es­ta­ci­o­namos no fundo do poço, des­cemos a la­deira e pa­ramos lá em­baixo. Ainda que haja cres­ci­mento vol­tado para fora, não re­cu­pe­rará o nível do pro­duto de 2014. Por­tanto, as pers­pec­tivas para a eco­nomia bra­si­leira são ex­tre­ma­mente ne­ga­tivas e, com a pos­si­bi­li­dade de cres­ci­mento do Brasil colônia, cer­ta­mente ha­verá re­gres­si­vi­dade do Brasil do de­sen­vol­vi­mento.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como um go­verno tão des­mo­ra­li­zado con­segue aprovar pro­jetos tão cru­ciais para a vida da po­pu­lação? O que dizer do papel das cen­trais sin­di­cais em meio a isso, após es­va­zi­arem a pró­pria greve e não in­cen­ti­varem ne­nhum tipo de pro­testo ou forma de re­sis­tência nos dias que an­te­ce­deram a vo­tação?

João Sicsú: Al­gumas cen­trais fi­zeram o en­fren­ta­mento que po­diam, e houve aqueles que fazem o que sempre houve nesse uni­verso, que é o papel de pe­lego. O en­fren­ta­mento dos que ti­nham mais com­ba­ti­vi­dade e in­te­resse na luta está muito li­mi­tado. Temos de re­pensar o papel, a forma de or­ga­ni­zação, as formas de luta dos mo­vi­mentos so­ciais e dos tra­ba­lha­dores.

O fenô­meno que vemos no Brasil acon­teceu na Eu­ropa. Os mo­vi­mentos so­ciais vão à rua, se ma­ni­festam, tomam por­rada e o Con­gresso aprova o que de­seja. Estão com­ple­ta­mente des­li­gados do clamor so­cial. Essa ex­pe­ri­ência toda é muito ne­ga­tiva, mas tem de ter como re­sul­tado uma pro­funda re­flexão e trans­for­mação.

A questão não é saber quem é com­ba­tivo e quem não é, quem tem agres­si­vi­dade e quem não. Temos de re­pensar de forma muito mais pro­funda como agir nas de­mo­cra­cias e a favor das mai­o­rias nestes tempos mo­dernos. Temos de pensar em formas de luta, or­ga­ni­zação, co­mu­ni­cação e busca de he­ge­monia na so­ci­e­dade. Fri­semos: não é só no Brasil que grupos tomam o poder e re­a­lizam seus pro­jetos. Apesar de a so­ci­e­dade re­jeitá-los, eles con­ti­nuam dando a linha. É assim na Grécia, na Es­panha...

Todas as ma­ni­fes­ta­ções e formas de luta dos tra­ba­lha­dores e da so­ci­e­dade do sé­culo pas­sado e dos anos 90 não dão mais ne­nhum re­sul­tado. Basta lem­brar a ofen­siva ne­o­li­beral no mundo nos anos 80 e 90. Pri­mei­ra­mente foi bar­rada, ainda que par­ci­al­mente, e elei­to­ral­mente so­freram di­versas der­rotas. Porém, vol­taram agora de forma bas­tante re­no­vada, e aquelas formas de luta dos anos 90 têm re­sul­tados nulos.

Fonte: Correio da Cidadania

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