“A bancada evangélica tem sido uma das bases de sustentação do governo Temer na aprovação das reformas, mas está em profundo desacordo com o que pensam os grupos religiosos”, disse o professor Pablo Ortellado, da USP, um dos coordenadores de pesquisa realizada na Marcha para Jesus, em São Paulo.
Por Gregório Mascarenhas
Ainda que tenha no Congresso uma das bancadas mais vinculadas ao governo de Michel Temer, a população evangélica no Brasil não está necessariamente de acordo com os projetos mais polêmicos do Executivo – e tampouco tem posicionamentos morais fatalmente conservadores, ao contrário de sua presumida representação parlamentar. Pelo menos no que se refere aos dois milhões de pessoas, de acordo com organizadores, que participaram da Marcha para Jesus, em São Paulo, há matizes inesperados, quando considerado o senso comum a respeito de pessoas que frequentam igrejas neopentecostais no país.
Sobre os cortes governamentais em áreas como saúde e educação – uma das prováveis consequências da chamada PEC do Teto –, por exemplo, quase 92% têm opinião desfavorável; 86,6% acham que quem começou a trabalhar cedo não deve ter um limite mínimo de idade para se aposentar. Esses são resultados de uma investigação realizada por grupos de pesquisa da USP e da Unifesp.
“A bancada evangélica tem sido uma das bases de sustentação do governo Temer na aprovação das reformas, mas está em profundo desacordo com o que pensam os grupos religiosos”, disse ao Sul21 o professor Pablo Ortellado, da USP. Ele, ao lado de Esther Solano (Unifesp) e Marcio Moretto Ribeiro (USP), coordenadores da pesquisa, descobriram que para além dos posicionamentos divergentes quanto a temas mais vinculado à economia, os evangélicos estão também inseridos na tendência de opinião de descrédito em relação aos políticos.
A desconfiança tampouco varia se o político é evangélico ou não. “O Feliciano, o bispo Crivella, por exemplo, grandes lideranças evangélicas, têm o mesmo nível de desconfiança que lideranças católicas como, por exemplo, o Geraldo Alckimin. Bolsonaro tem o mesmo nível de desconfiança. De 50 a 60% das pessoas não confia nada em nenhum desses políticos que a gente citou”, explica Ortellado. O ponto fora da curva se dá no caso do ex-presidente Lula, cuja desconfiança é consideravelmente maior: o valor verificado foi de 84% de quem participou da pesquisa. 76,9% das pessoas entrevistadas disseram não se identificar com nenhum partido político, e, entre quem se identifica com alguma agremiação, a mais citada é o PSDB, seguido de PT e PSC.
Embora os resultados aferidos na Marcha para Jesus não representem necessariamente a opinião de toda a população evangélica no país – o evento é organizado há quinze anos pela Igreja Renascer, uma das mais conservadoras entre as neopentecostais –, a constatação principal é de que esse grupo não tem grandes diferenças de opinião, a respeito desses temas, do que a média dos brasileiros. 55% das pessoas que foram à caminhada são fiéis da Renascer, instituição que está, inclusive, por trás do Partido Social Cristão – a agremiação à qual se filiou o deputado federal Jair Bolsonaro. Os outros 45% estão dispersos em várias outras denominações evangélicas como a Assembleia de Deus, a Igreja Batista ou a Universal – e há até uma parte considerável de católicos. Ortellado ressalta que o fato de a Marcha ser realizada em São Paulo – “o PT tem um índice de rejeição muito alto aqui”, lembra – influencia nos resultados, que não podem ser automaticamente transferidos para todo o país.
Talvez os dados mais surpreendentes, entretanto, refiram-se às opiniões morais do grupo pesquisado. “O balanço geral é que são meio parecidos com o resto do Brasil, um país um pouco conservador, sobretudo no que diz respeito a aumento das punições a criminosos. Esse grupo não é diferente disso. Inclusive em temas que se esperava grande conservadorismo, como, por exemplo, o papel das mulheres, ele é relativamente progressista”, observou Ortellado.
“Em temas que se esperava grande conservadorismo, como, por exemplo, o papel das mulheres, ele é relativamente progressista”, diz Ortellado, sobre grupo de cristãos entrevistados na Marcha para Jesus.
Por exemplo: 63,4% das pessoas pesquisadas acham que a polícia é mais violenta com os negros do que com os brancos; sobre a frase “a escola deveria ensinar a respeitar os gays”, 77,1% dos entrevistados disseram que concordam; 70,5% acham que cantar uma mulher na rua é ofensivo; e 63,8% acham que não se deve condenar uma mulher por ter relações sexuais com muitas pessoas.
Há, todavia, divisões temáticas nas quais as pessoas pesquisadas se mostraram mais conservadoras, como em relação ao papel dos direitos humanos, o aborto, o programa Bolsa-Família e o feminismo. Em todos esses casos, o número de pessoas que têm opiniões menos progressistas é de pelo menos 65%. Sobre a pena de morte, por exemplo, as opiniões ficaram tecnicamente empatadas.
Evangélicos versus conservadores versus esquerda institucional
O questionário, ainda que com sutis diferenças, foi aplicado também em dois outros eventos políticos paulistanos: o ato do dia 26 de março – protesto pró-Lava Jato organizado sobretudo por grupos como o MBL e o Vem pra Rua – e o ato do dia 31 do mesmo mês – contrário às reformas da Previdência e trabalhista.
“O grande achado é que a Marcha para Jesus e as passeatas anti-corrupção são meio parecidos com o resto do Brasil. Eles não são muito coerentes, são mais ou menos conservadores e têm poucos pontos de identidade. Os grupos anti-corrupção, por exemplo, são mais punitivistas do que a média da população. Os grupos evangélicos têm uma opinião mais forte sobre o papel da religião na educação e na política. No resto eles são parecidos com o Brasil”, identifica Ortellado.
[A esquerda] é muito coerente ideologicamente e muito distante do resto do Brasil. Ela é muito organizada, intelectualizada e coesa, a um ponto tal que se distancia muito do país em termos de opinião.
O grupo que foi à marcha pela Lava Jato, por exemplo, tende a ser mais liberal no que diz respeito a algumas pautas morais – como a permissão para fumar maconha, a interferência da religião na legislação do país, o aborto e a concordância à afirmação de que “dois homens devem poder se beijar na rua sem serem importunados”, por exemplo. No caso da relação entre cor de pele e violência policial, porém, há maior tendência à negação. Outra surpresa é que quase 75% das pessoas pesquisadas, no caso do 26 de março, é contrária à reforma da Previdência proposta pelo governo Temer.
As pessoas que foram à marcha do dia 31 de março, ao contrário, têm opiniões bastante distintas dos dois outros grupos. Nesse caso, 83% disseram se identificar com opiniões de esquerda. A metade se diz “muito feminista” e apenas 17,6% declarou-se “nada feminista”. Um número muito menor – um terço dos entrevistados – disse não se identificar com nenhum partido político, e, entre quem se identifica, as agremiações mais citadas são PT e Psol.
Outra diferença relevante é a composição social de cada um dos eventos. Ortellado, sobre a Marcha para Jesus, diz que há uma distribuição “muito parecida com o resto de São Paulo, que é um ligeiramente diferente do resto do Brasil. Não é muito pobre nem muito rica, tem uma distribuição parecida com a pirâmide brasileira”. Os dados mais divergentes com o resto da população brasileira foram encontrados no campo das esquerdas e da marcha anticorrupção, cujos participantes tendem a ser mais ricos e escolarizados do que a média nacional.