Carta aberta às Autoridades Nacionais competentes, aos Parceiros de Desenvolvimento da Guiné-Bissau e à Comunidade Internacional sobre um projeto que ameaça o Parque Natural das Lagoas de Cufada.
Por Tiniguena e Liga Guineense de Direitos Humanos
As lagoas de Cufada, Biorna e Bedasse, situadas na região de Quínara, constituem a maior reserva de água doce da Guiné-Bissau e abrangem ecossistemas de zonas úmidas e de florestas de interesse patrimonial excepcional. A parte terrestre, que é constituída de florestas densas, abriga nomeadamente populações de chimpanzés, várias espécies de ungulados e mesmo elefantes, dos quais alguns indivíduos têm sido avistados regularmente. As zonas úmidas acolhem grandes concentrações de aves migradoras e representam meios privilegiados para a pesca e a criação de gado. Mas a sua função mais importante reside no papel que jogam na conservação dos recursos em água, funcionando como uma grande esponja que se enche de água durante a estação das chuvas e alimenta as reservas de água subterrâneas e os poços da região, as culturas e a vegetação selvagem.
Estas características levaram à classificação de Cufada, em 1990, como uma Zona Úmida de Importância Internacional, o 1º Sítio Ramsar da Guiné-Bissau, sob a égide da Convenção de Ramsar. Posteriormente, no ano 2000, seriam classificadas pelo Governo guineense como Parque Natural das Lagoas de Cufada abrangido pelo Decreto-Lei 12/2000 (Boletim Oficial 49, de 4/12/ 2000). Em 2001, a BirdLife Internacional classificou as lagoas de Cufada e as florestas envolventes como uma das mais importantes áreas para as aves no continente Africano, e o estatuto de IBA (Important Bird Areas) foi atribuído ao Parque Natural. Abrangendo uma superfície total de 89.000ha, aqui vivem cerca de 3.500 pessoas, distribuídas em 33 localidades, todas dependendo dos inúmeros recursos e serviços que o Parque de Cufada alberga e lhes oferece gratuitamente!
O engajamento do Governo da Guiné-Bissau na conservação e na boa gestão dos recursos naturais através da criação de uma rede de Áreas Protegidas da qual Cufada faz parte e que constituem no seu total cerca de 15% do território nacional, foi o único avanço registrado por este país no cumprimento dos Objetivos do Milênio.
No entanto, depois do Golpe de Estado de Abril de 2012, a pressão sobre os recursos naturais, os florestais em particular, aumentou de forma alarmante, tendo sido feitas várias denúncias sobre o abate massivo e seletivo de árvores que dizimou o pau-sangue, uma das espécies com maior valor comercial. A moratória de 1 de Abril de 2015, aprovada pelo Governo saído das eleições de 2014, viria a estancar tal hemorragia. Mas nos últimos meses, novas denúncias foram feitas de retomada do corte de árvores.
E muito recentemente, veio ao conhecimento do público o arranque de um empreendimento na região de Quínara que acarretará – no imediato – o abate de árvores no interior do Parque de Cufada. Trata-se da construção, em Buba, de uma central elétrica térmica de 10MW, visando alegadamente o fornecimento de energia elétrica às cidades e às povoações vizinhas de Buba e de Fulacunda, na mesma região, podendo vir a estender-se a outras.
Das informações apuradas, trata-se de um projeto assinado em 2007 através de um acordo de crédito entre o Banco Comercial da Índia e o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau. O projeto tem sido mantido em algum sigilo, desde a sua assinatura, e apenas veio a público com o início das obras de construção da central e as consequentes denúncias por parte de ativistas e organizações ambientalistas, entre as quais a Tiniguena, feitas em dezembro de 2016.
Estas denúncias têm por base: 1) a experiência com projetos ambiciosos – e mal planejados — que levaram ao desbravamento de áreas florestais no interior deste parque sem benefícios para as populações nem para o Estado; 2) a violação das leis em vigor na Guiné-Bissau, bem como dos compromissos internacionalmente assumidos; 3) a falta de enquadramento e de planeamento do projeto e o déficit de transparência na sua execução; 4) a existência de alternativas viáveis que podem resolver melhor o problema energético das populações; 5) os sérios riscos que este projeto apresenta para o meio ambiente e a subsistência das populações locais e para a resiliência da Guiné-Bissau às alterações climáticas.
1. Experiência anterior
Uma grande parte das florestas de Cufada foram sacrificadas quando da abertura da estrada que deveria ligar a zona de exploração da bauxita, na região do Boé, à cidade fluvial de Buba, onde se previa a construção de um porto de águas profundas junto ao Rio Grande de Buba, para evacuação daquele minério. A estrada foi aberta em 2006, tendo a sua trajetória sido corrigida por duas vezes, incorrendo em duplo abate de essências florestais preciosas, devido alegadamente a erro de cálculo dos operadores…. 10 anos depois, nem o porto foi construído, nem foi iniciada sequer a exploração da bauxita.
Mas mais de 50 hectares de floresta no interior do Parque e muito mais ainda no exterior foram sacrificados, sendo que nem as populações locais nem o Estado da Guiné-Bissau retiraram proveitos legítimos e palpáveis de tamanho sacrifício.
E 10 anos depois, há um novo projeto, o de construção da central elétrica em Buba, que prevê o desbravamento de mais áreas florestais para o transporte da energia entre a cidade de Buba e Fulacunda, distantes 35Km. Segundo os dados recolhidos, a construção de postes com cabos de alta tensão para levar a eletricidade, implica desbravar uma faixa de 10m ao longo de 10Km de floresta situada no interior do Parque de Cufada. As obras estão a ser iniciadas sem que haja garantias de que não se repetirá a experiência traumática da fictícia estrada do Boé para Buba, aberta sacrificando extensas áreas florestais, sem que o anunciado porto tenha sido jamais construído nem a apregoada bauxita tenha sido alguma vez retirada do nosso subsolo e sem que a própria estrada tenha sido construída – só existe uma pista aberta por máquinas pesadas dentro de florestas.
Esta prática de início de projetos ambiciosos, apresentados com argumentos da promoção do desenvolvimento das populações locais e do país, em situações que raras vezes são de legalidade institucional, aproveitando-se de momentos de crise ou de convulsão política, nos quais as instituições da República estão enfraquecidas ou carecem de legitimidade, têm vindo a proliferar na Guiné-Bissau provocando danos sucessivos irreparáveis e gestão danosa de recursos e bens de interesse comum, que são patrimônio nacional e por isso, pertencem a todos os guineenses e constituem um capital precioso para o desenvolvimento das gerações presentes e futuras.
2. Violação das leis
A construção da central já foi iniciada e o desbravamento das matas para colocação dos postes está prestes a começar, sem que, mais uma vez, tenham sido feitos previamente os estudos de impacto ambiental e socioeconômicos exigidos por Lei.
Constata-se a violação, de novo, de um bom número de importantes leis em vigor na Guiné-Bissau ao nível nacional (Lei-quadro das Áreas Protegidas, Lei de Avaliação Ambiental, Lei de Base do Ambiente, Lei da Terra) e setorial (Decreto-lei de criação do Parque de Cufada).
Constata-se o desrespeito, igualmente, de importantes convenções e compromissos internacionais assumidos pela Guiné-Bissau, com destaque para a Convenção de Ramsar (relativa às zonas úmidas) e a Convenção de Bona (relativa às espécies migradoras).
3. Falta de planejamento e de transparência
Urge pôr fim a este negócio da madeira, que tem vindo a desenvolver-se na Guiné-Bissau nos últimos anos, assumindo várias formas, em particular de projetos de contornos obscuros, corrompendo desde altos dirigentes civis e militares, até empresários e simples elementos da população, que, em situação de crise, delapidam as nossas florestas para enriquecer rápida e ilegitimamente, à custa de recursos de alto valor a nível nacional e internacional, conservados para serem bem geridos em prol do desenvolvimento durável do país e dos guineenses.
Tudo indica que este projeto de construção de uma central térmica em Buba para distribuição de energia elétrica na região é mais um elefante branco de que o país está cheio, que esconde interesses não confessos de agentes do estado e privados, mais uma vez à volta do “negócio” da madeira.
Porque sendo um investimento de uma empresa privada, a sua rentabilidade econômica só através da “venda” da energia elétrica é altamente questionável, ainda mais numa região de grande pobreza onde muito poucos poderão pagar a sua fatura de energia. Donde viriam então as receitas? Quem irá pagar o crédito concedido pelo banco indiano?
Acresce que a promiscuidade detectada entre operadores do setor madeireiro com a empresa fornecedora de energia dá razão a tal suspeição. Tratar-se-á de uma forma disfarçada do Estado financiar o fornecimento de energia e de madeira a privados deste setor?
4. Existem alternativas!
É certo que as populações rurais carecem urgentemente de energia para poderem melhorar suas condições de vida e de trabalho. Mas é possível fornecer-lhes uma energia limpa, aproveitando os avanços tecnológicos permitindo recorrer à energia solar, através da instalação de pequenas unidades descentralizadas, de menor custo, mais fáceis de gerir com participação das populações, seguindo a experiência de Bambadinca, onde foi instalado uma central elétrica alimentada por painéis solares que tem vindo a fornecer luz a toda a cidade.
O Sol, é a energia mais limpa e ao alcance de países como a Guiné-Bissau!
5. Riscos para o meio ambiente e os meios de subsistência das populações locais
Para além de altamente poluentes, contaminando o ar, a terra e a água com seus resíduos, as centrais térmicas têm alto custo de investimento e de funcionamento, requerendo manutenção regular e gastos astronômicos em combustível.
As florestas, são um bem precioso, que levam décadas senão séculos a regenerar! Elas nos protegem face às mudanças climáticas e ajudam a fixar a água nos solos, a alimentar os lençóis subterrâneos e as fontes, que fertilizam as terras, dão de beber aos homens e a todas as outras criaturas. E é assim que as zonas úmidas e as florestas se unem no Parque Natural das Lagoas de Cufada, para garantir a todos os seus habitantes o bem essencial sem o qual nenhum ser vivo consegue sobreviver: ÁGUA!
Para permitir ao Parque Natural das Lagoas de Cufada continuar a desempenhar as suas funções vitais e a prestarseus valiosos recursos e serviços, ESTE PROJETO DE CONSTRUÇÃO E INSTALAÇÃO DE CENTRAL ELÉTRICA DENTRO DO PARQUE DEVE SER PARADO IMEDIATAMENTE E A CENTRAL DEVE SER DESALOJADA para uma outra localidade e reconvertida para outras formas de fornecimento de energia mais limpa e com menos riscos em termos ambientais e para a saúde humana!
Neste sentido, as organizações signatárias desta carta-aberta exortam as autoridades nacionais competentes para que:
1º) Cumpram e assegurem o respeito pelas Leis e Convenções internacionais aprovadas e ratificadas pelo Estado guineense;
2º) Assegurem que nenhum abate extensivo de árvores será feito no interior do Parque Natural de Cufada no âmbito deste projeto de central elétrica ou de qualquer outra iniciativa pública ou privada;
3º) Garantam a deslocalização da central e seus ramais para outra zona fora dos limites do parque, a definir após realização de estudos prévios de impacto ambiental e socioeconômico;
4º) Invistam seriamente em energia limpa e sustentável, encorajando o recurso à energia solar, favorecendo a criação de parques descentralizados e de baixo custo de fornecimento de energia renovável às populações e banindo progressivamente as centrais térmicas que são altamente poluentes e têm custos elevados em investimento, funcionamento e manutenção;
5º) Respeitem e façam respeitar a moratória aprovada e em vigor, feita no intuito de parar o abate massivo de árvores e o negócio criminoso que tem vindo a proliferar em torno da madeira e que estão a levar à destruição das nossas florestas, constituindo um verdadeiro crime ambiental e econômico cometido contra a Nação Guineense no seu todo!
Os signatários apelam ainda aos parceiros da conservação e do desenvolvimento durável da Guiné-Bissau no sentido de usarem de toda a sua influência para garantir o respeito das Leis visando a boa governação dos recursos naturais na Guiné-Bissau, assim como das Convenções e acordos assumidos pelo Estado guineense velando pela conservação dos recursos partilhados e que constituem bens comuns da humanidade.
Bissau, 25 de Janeiro de 2017
As Organizações signatárias:
Pela Tiniguena – Esta Terra é Nossa!
Miguel de Barros – Diretor Executivo
Pela Liga Guineense dos Direitos Humanos
Augusto Mário da Silva – Presidente