Francisco enfrenta "guerra civil" na Igreja Católica

A decisão do Papa Francisco de retomar a opção preferencial pelos pobres e dar uma guinada na conduta da Igreja Católica transformou os cardeais ultraconservadores da instituição em combatentes aguerridos do argentino.

Por Portal Vermelho

Herdeiro dos papados de João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI (2005-2013), o jesuíta Francisco enfrenta a fúria da Cúria conservadora, contrária às suas reformas.

Nos corredores do Vaticano, altos funcionários chamam Francisco à boca pequena de “esse argentinozinho”. Se, num primeiro momento, o novo Papa enfrentou uma oposição silenciosa, hoje ela está escancarada. A batalha explodiu em setembro de 2016 com a carta divulgada por quatro cardeais, definida como verdadeira “guerra civil” pelo jornalista italiano Marco Politi, do jornal Il Fatto e um dos mais respeitados vaticanistas.

papaanosanto23'Francisco quer reformas e as reformas tendem a mexer nas estruturas. É óbvio que quem é favorecido pela estrutura não quer mudança', analisa Cesar Kuzma, um dos mais expressivos teólogos católicos brasileiros da nova geração.

Para guerrear contra Francisco, os conservadores escolheram as questões de fundo moral, aproveitando-se da onda reacionária que varre o planeta. A escalada começou em 2014, tomou impulso no segundo semestre de 2015 e agora está em seu momento-auge.

Dois momentos deste combate foram um livro lançado por cinco cardeais afirmando que o segundo casamento equivaleria a adultério, para a doutrina cristã, e um abaixo-assinado endereçado ao Papa com quase 800 mil assinaturas de católicos, entre eles 100 bispos, em defesa da família.

Para termos uma ideia do que Francisco enfrenta é preciso retroceder na história. Ao ser apresentado ao mundo, o novo Papa surgiu no balcão do Vaticano vestido de branco, sem ouro algum. Num gesto inédito, curvou-se diante da multidão que ocupava a Praça São Pedro e pediu que as pessoas rezassem por ele. Com isso, rompeu uma tradição secular que se construiu em torno da figura do Papa desde a Idade Média, abalada com João XXIII no Concílio Vaticano II, há 50 anos, e que foi reconstruída por seus dois antecessores. Um Papa humilde, sem ornamentos e vestes pomposas.

Com a chegada de Francisco, voltaram à tona ideais concebidos no Concílio Vaticano II, cujo ápice foi a Teologia da Libertação na América Latina, combatida ferozmente pelos conservadores da Cúria.

O confronto atual chega a ponto de cardeais e teólogos conservadores armarem oposição cerrada a todas as ideias de atualização dos conceitos da Igreja em relação à família propostas por Francisco, chamando-as de “heréticas”. Numa entrevista, o cardeal norte-americano Raymond L. Burke, que tem buscado se apresentar como líder da oposição, afirmou que seu grupo poderá decretar “um ato formal de correção de um erro grave” contra o Papa, se ele não ceder às exigências. Francisco respondeu dizendo que as críticas “não são honestas” e foram feitas “com espírito mau para fomentar a divisão”.

A pressão dos conservadores não tem paralisado Francisco. No encerramento do Jubileu da Misericórdia (um Ano Santo proclamado por ele entre outubro de 2015 e novembro último), o Papa operou uma significativa mudança na posição da Igreja quanto ao aborto, extinguindo a pena de excomunhão às mulheres que o realizam e permitindo que os padres concedam o perdão a este pecado.

O foco dos conservadores nas questões de fundo “moral” permanece, apesar da enorme fragilidade do discurso da Cúria e de dezenas de bispos e cardeais que nos últimos anos acobertaram os milhares de casos de abusos sexuais cometidos por religiosos contra crianças e jovens ao redor do planeta.

Um dos líderes do bloco conservador, o cardeal George Pell, prefeito da Secretaria de Economia do Vaticano, é alvo de um processo no qual é pesadamente acusado de encobrir casos de pedofilia na Austrália durante os anos 1970 e 1980 e, mais recentemente, de ele próprio estar envolvido em casos de abusos.

Há outros dois temas em disputa neste momento: a liturgia, especialmente o rito da missa, e a relação da Igreja com o planeta, a sociedade, os seres humanos e muito particularmente com os pobres.

Os conservadores defendem a restauração do rito tridentino da missa – onde havia um único celebrante que rezava de costas para as pessoas, em latim, pois a missa era “do padre”. Pode parecer incrível, mas os conservadores querem mesmo que este “modelo” de ritual seja restaurado. O Papa tem reduzido o espaço do arquiconservador cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino.

A questão da relação da Igreja com o mundo, a humanidade e especialmente os pobres é o terceiro polo da disputa. Os pobres são o centro da Igreja, tem anunciado Francisco desde os primeiros dias de seu Papado. Ele promoveu três edições do Encontro Mundial dos Movimentos Populares (no Vaticano, em 2014 e em 2016, e na Bolívia, em 2015) e tem criticado de maneira cada vez intensa o capitalismo.

No encerramento da terceira edição de encontro, em 5 de novembro, ele disse que o mundo está dividido entre “um projeto-ponte dos povos contra o projeto-muro do dinheiro” e defendeu “a destinação universal dos bens”, além de denunciar a “internacional do dinheiro”.

Em 27 de novembro, Francisco avançou no tema dos pobres para dentro da Igreja ao questionar 800 gestores financeiros participantes do Simpósio sobre Economia da Congregação, em Roma:

“A hipocrisia dos consagrados que vivem como ricos fere a consciência dos fiéis e prejudica a Igreja”. Francisco alertou que a gestão destas organizações (e de toda a Igreja) deve “escutar o sussurro de Deus e o grito dos pobres, dos pobres de sempre e dos novos pobres”. Os conservadores têm urticária quando escutam ou leem essas palavras do Papa e acusam-no (por enquanto nos bastidores) de “ressuscitar a Teologia da Libertação”.

O equilíbrio de forças no interior da Igreja, fortemente impactado pela onda conservadora dos últimos 35 anos, parece manter Francisco em relativo isolamento na cúpula católica. Num discurso sem precedentes diante da Cúria romana em um tradicional encontro de Natal, em 22 de dezembro de 2014, ele investiu frontalmente contra o espírito da hierarquia diante de cardeais e bispos entre constrangidos e indignados. Nele, apontou o que chamou de “as 15 enfermidades” da Cúria, entre elas a de “perder a capacidade de chorar com os que choram e se alegrar com os que se alegram. É a enfermidade dos que perdem os ‘sentimentos de Jesus’, porque o seu coração, com o passar do tempo, endurece-se e torna-se incapaz de amar incondicionalmente o Pai e o próximo”.

De lá para cá, alguma água passou por debaixo da ponte e, segundo seus aliados e alguns vaticanistas, Francisco está, aos poucos, modificando o perfil da Igreja. É o que diz dom Cláudio Hummes, o cardeal brasileiro que se tornou conhecido mundialmente pelo fato de, estando ao lado do Papa no exato momento de sua eleição, cumprimentá-lo sussurrando em seu ouvido uma frase que inspirou Bergoglio a escolher o nome de Francisco: “Não se esqueça dos pobres”.

Hummes assegura que a imensa maioria dos cardeais está ao lado do Papa: “Sem querer relativizar este fato, são quatro cardeais. E na Igreja somos mais de 200. Sem querer relativizar demasiadamente, são quatro de um grupo enorme que está dando todo o seu apoio ao Papa”.

Francisco tem atacado com contundência o clericalismo (a doutrina que estrutura e organiza em boa medida o pensamento conservador na Igreja) e seguidamente compara os clérigos católicos (padres, bispos e cardeais) e leigos poderosos nas estruturas eclesiais aos chefes religiosos que perseguiram Jesus até sua morte.

O combate ao clericalismo está na origem do atual papado: foi o centro do discurso do então cardeal Bergoglio no colégio de cardeais reunidos para a sucessão de Bento XVI, em 7 de março de 2013, seis dias antes de ser escolhido, e é considerado decisivo para sua eleição. A contundência de Francisco é resultante de um mandato que recebeu de seus eleitores, o que tornam arriscadas quaisquer previsões sobre o equilíbrio de poder na Igreja.

Os movimentos no tabuleiro da Igreja estão sendo pensados de olho no próximo Papa, pois Francisco, aos 80 anos, não terá tempo para concluir suas reformas. Ele sabe disso e está redesenhando o colégio eleitoral do próximo Papa com frieza e tirocínio típicos dos jesuítas.

Para o teólogo brasileiro César Kuzma, Francisco “não joga no escuro e nem mesmo faz apostas para ver onde vai dar, ao contrário, ele sabe o que quer e sabe o que deve buscar. Ele também sabe que não terá um Pontificado longo e que não terá como resolver e mudar tudo.”

Por isso, ao nomear 13 cardeais com direito a voto (menos de 80 anos de idade) em 19 de novembro, ele é responsável por 1/3 do total de indicações do colégio de cardeais com direito a voto neste momento (44 de um total de 121). Em três rodadas de nomeações desde 2013, o Papa já conseguiu um feito memorável na história da Igreja: acabou com a maioria europeia. São agora 54 cardeais do Velho Continente contra 67 do resto do mundo. Espera-se mais uma ou duas rodadas de nomeações à frente. Com isso, o cálculo e a esperança dos conservadores para o próximo Papa pode estar em risco, o que explica a radicalização da luta no interior da Igreja nas últimas semanas, com este caráter de “guerra civil”.

A batalha no Brasil

A nomeação em massa de bispos conservadores por João Paulo II e Bento XVI modificou profundamente o perfil da Igreja no país. Se, mesmo nos anos 1970-80, quando a Igreja era protagonista das causas populares no país, a hierarquia apresentava-se dividida, na virada do século os conservadores passaram à ofensiva.

Hoje, dois dos expoentes do conservadorismo são os arcebispos de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer, exatamente o candidato que procurou contrapor-se a Bergoglio, e o do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta.

Ambos lideraram a visita de uma comitiva de bispos a Michel Temer em 10 de novembro a pretexto de uma audiência sobre a Rede Vida (emissora de TV católica) mas que se tornou um ato de apoio à PEC do teto dos gastos e de bênção ao governo, exatamente no dia da primeira votação da proposta que congelou os gastos sociais no país.

O Rio tornou-se uma espécie de quartel-general do segmento mais radicalizado da direita eclesial, que se expressou com virulência durante o segundo turno da eleição municipal na capital do Estado. Padres e membros da Cúria chegaram a ameaçar de “excomunhão” os católicos que faziam campanha por Marcelo Freixo, do PSOL.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que se manteve calada desde 2013, evitando confrontos com os conservadores, começou a se mover na direção de Francisco nos últimos meses: divulgou notas duras contra a PEC que corta os gastos sociais e a reforma do ensino médio. Seu presidente, dom Sérgio da Rocha, arcebispo de Brasília, foi nomeado cardeal pelo Papa em 19 de novembro.

Segundo o bispo belga dom André De Witte, vice-presidente da Comissão Pastoral da Terra, a hierarquia no Brasil está “silenciosa, mas não afastada” em relação ao Papa, que apoia as pastorais sociais e movimentos de base. O bispo belga, no Brasil há 40 anos, afirma que há de fato um novo modelo na administração da Igreja, uma mudança de paradigma que apenas a Teologia da Libertação tinha ousado antes de Francisco, porque implica que os líderes eclesiásticos (dos padres aos bispos, cardeais e até o Papa) abram mão de seus poderes e assumam uma relação direta com os católicos e católicas. Os cristãos católicos no Brasil e no mundo finalmente são convidados pela Igreja, no Papado de Francisco, a ingressarem na idade adulta.

Fonte: Calle 2

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