Crises por dentro das crises no Brasil: reflexos para os povos indígenas

Em 2016 não houve avanço no tocante à política indigenista. Período de estagnação e, ainda mais grave, de profundas incertezas quanto ao futuro.

Por Roberto Liebgott*

Inicio esta avaliação referente ao ano de 2016 lembrando que o contexto sociopolítico e econômico do Brasil é guiado pelo capitalismo neoliberal. Mesmo as crises e suas consequências estão, em certa medida, previstas dentro deste modelo. No Brasil, as intermináveis crises acabam sendo resolvidas dentro da racionalidade neoliberal - com impacto para o conjunto das sociedades do país. Por isso, às vezes, o que parece ser o fim do caminho é na verdade o término de um ciclo.

Maurizio Lazzarato, em suas obras, enfatiza que os neoliberais têm, claramente, uma política social. A sociedade, com o neoliberalismo, é alvo de uma intervenção permanente. O que mudou, ao longo dos anos, foram o objeto e a finalidade dessa intervenção. Como a mola propulsora, no atual modelo, é a concorrência – estimulada como forma de relação entre setores, entre empresas, entre equipes, entre trabalhadores – não há como escapar das desigualdades. Em outras palavras, a concorrência se dá, invariavelmente, entre desiguais. Há aqueles setores, segmentos, grupos e pessoas que têm condições de se manter nesta constante concorrência e outras que se tornam residuais.

Na racionalidade neoliberal, o Estado deve gerir-se como se fosse uma empresa, oferecendo insumos, investindo e potencializando setores produtivos, mas não pode ignorar os residuais da concorrência. O Estado deve estabelecer um estado de “igual desigualdade” e de “pleno emprego precário”. Cada indivíduo, e cada trabalhador, deve também tomar a si mesmo como uma empresa. Cada pessoa passa a valer, em função disso, pelos resultados que consegue obter, pela eficiência de seus investimentos, pelas vitórias num mundo concorrencial. Pessoas e grupos que não conseguem manter competitividade se tornam alvo de políticas públicas que, para Lazzarato, são ações de “gestão das desigualdades”.

Esse modo de governar, gerindo as desigualdades para evitar que um grande número de pessoas fiquem em situação de total exclusão, de miséria, de falta de perspectiva, mostram sinais de esgotamento, especialmente no contexto de crise vivida no mundo capitalista, e acentuada no Brasil em 2016.

Trago inicialmente essas discussões para poder pensar os acontecimentos políticos, jurídicos e econômicos que estão implicados em todas as dimensões das nossas vidas social, familiar, do mundo do trabalho, estudos e lutas. Penso que as crises econômico-políticas pelas quais estamos passando indicam um rearranjo no modo de exploração, que não significa ruptura com o modelo neoliberal, e sim seu refinamento. Parece que um ciclo se esgotou e, agora, novos ajustes são necessários para proteger setores lucrativos e impulsionar o crescimento (que, em termos capitalistas, se traduz em lucratividade para determinados segmentos).

Para tanto, os mais pobres e desprotegidos, para quem se destinavam políticas sociais (na forma de gestão das desigualdades), serão os fornecedores de subsídios financeiros necessários aos ajustes. O Estado, através de seus condutores, agirá no sentido de flexibilizar os direitos que até agora pareciam consolidados.

As crises, por dentro das crises, e o modo como elas são noticiadas, têm também o efeito de nos convencer de que os ajustes dependem de nossos sacrifícios, de que somos nós que oneram o sistema, porque vivemos demais, porque adoecemos demais, porque não investimos suficientemente em nossa educação, a partir dos sistemas privados.

As crises

O que mais se produziu no Brasil, ao longo do ano de 2016, foram crises, especialmente nos ambientes da política, Justiça e economia. As pessoas, em todas as camadas sociais, acabaram afetadas em interesses legítimos e direitos. Os mais pobres vivenciaram a precarização de suas condições de subsistência; a classe intermediária, amedrontada, empreendeu esforços no sentido de constituir – incentivada pela mídia hegemônica - um cenário de espetacularização das crises tendo em vista a manutenção de seu poder aquisitivo, e uma vida agradável; e os mais ricos articularam, por dentro das crises, as garantias dos privilégios historicamente constituídos, inclusive para evitar algum tipo de revés nos seus fundos de investimentos.

As crises impactaram duramente o governabilidade do país. A presidente da República foi retirada do poder e seu partido, o PT, foi desmoralizado: o principal líder petista, o ex-presidente Lula, acabou criminalizado. Além disso, a espetacularização da crise tornou a política e os políticos sinônimos de malversação da ‘coisa’ pública. Consolidou-se a visão de que ninguém presta, “ninguém escapa”, todos são corruptos. E isso contagiou, tornou-se uma epidemia no cotidiano das pessoas. Parece não haver, no horizonte da política, nenhuma saída. Investiu-se, com auxílio midiático, em única via possível, a da Justiça, e então se criou, como efeito de todo o espetáculo, um herói previsível e seus soldados do bem: o juiz Sérgio Moro e os procuradores federais.

Com o golpe político-jurídico, o país passou a ser governado por políticos vinculados a partidos como o PMDB, o PP, o PSDB e o PSD, que na prática sempre agiram como parasitas do Estado, estruturados para afiançar, no cotidiano das políticas, as negociatas por dentro do poder. Alimentam-se disso diuturnamente, inclusive em votações madrugada afora, e tornaram-se essenciais, porque de um lado fazem a condução do sistema – o capitalismo neoliberal – e de outro se autobeneficiam usufruindo de vantagens partidárias e financeiras.

O PT, alijado do poder e atacado diariamente, paga o preço por ter se aliado ao que há de mais atrasado na política brasileira. Confiou em quem não deveria confiar. Fez alianças com quem não deveria fazer sob a justificativa da governabilidade. Apostou alto no agronegócio e na exportação de commodities, ao invés de investir fortemente na agricultura familiar - aquela que põe o alimento na mesa das famílias.

Neste jogo de poder, o Judiciário vem cumprindo papel central, pois avalizou as ações – legítimas ou ilegítimas – dando uma aparente coesão às deformações e às anomalias jurídicas, além de sustentar ações e propostas que visam a manutenção das engrenagens do sistema e dos esquemas dentro dos núcleos de poder no Estado.

A sociedade, distinta em suas estruturas e composições (pois há ricos abastados, médios, há pobres, excluídos e aqueles que são os diferentes e divergentes culturalmente) foi, apesar das diferenças, invariavelmente convencida a assumir e a seguir as regras apresentadas como verdades absolutas por aqueles que conduzem o poder. Para a obtenção da adesão da sociedade, grandes conglomerados de mídia (tvs, jornais, rádios, sites) foram a campo. Têm veiculado (projetado), de modo quase permanente, para dentro das casas, dos trabalhos, das escolas, universidades e das mentes e vidas das pessoas notícias sob uma perspectiva única, a que consolidou o golpe que presenciamos.

Neste contexto, aqueles segmentos, grupos sociais, comunidades, povos, pessoas ou personalidades que pensam de modo diverso do hegemônico e reagem em oposição ao sistema, contra as estruturas de dominação, são colocados sob suspeita pelo Estado. A partir dos entes públicos e da mídia foram, assim, desencadeados processos de desqualificação, perseguição, repressão e criminalização destes sujeitos. Suas lutas (através das ocupações de universidades, escolas, prédios públicos abandonados, ruas, praças, terras) acabaram sendo desqualificadas, criminalizadas, ignoradas e silenciadas – como se não existissem. Estes atores sociais, quando em luta e protestos, foram e são coibidos pelas forças opressoras do Estado, e as polícias – militar e federal – cumprem a função de modo implacável, autoritário e violento. Por outro lado, quando ações e atos são promovidos por segmentos favorecidos por este sistema, então recebem ampla repercussão, são legitimados pelos meios midiáticos, tornam-se feitos espetaculares.

Política indigenista

Este foi, em síntese, o contexto político, econômico e jurídico vivenciado no decorrer do ano de 2016. Retomo a análise a partir da política indigenista e das lutas dos povos e comunidades visando a defesa e garantia dos seus direitos.

ultimo-indioRessalto, primeiro, que em 2016 não houve avanço no tocante à política indigenista. Período de estagnação e, ainda mais grave, de profundas incertezas quanto ao futuro. As demarcações de terras, caracterizadas como direitos fundamentais e sobre os quais estão alicerçados os demais direitos, ainda em 2013 foram paralisadas, em função da pressão dos ruralistas.

A Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão responsável pela condução da política, vem sendo, ao longo da última década, sucateada e desqualificada. O governo federal, de modo proposital, vem impondo restrições orçamentárias chegando-se ao ponto de não haver dinheiro sequer para o combustível das locomoções das equipes de coordenações locais e regionais. Nos últimos cinco anos, os cortes orçamentários chegam a mais de 60% do montante do que era destinado entre os anos de 2006 e 2009. Em 2016 foram liberados menos de 110 milhões de reais para todas as atividades do órgão, incluindo demarcações de terras, indenizações de benfeitorias, fiscalização das terras e proteção aos povos em situação de isolamento e risco.

No que tange à saúde mantiveram-se as ações, através de convênios entre a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e organizações prestadoras de serviços. Há que se considerar que ocorreram, ao longo do ano, tentativas de mudanças nas regras voltadas para o controle dos recursos financeiros, pois se pretendia romper com a autonomia e administração dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas(DSEI´s) na gestão dos recursos, transferindo tudo ao ministro da Saúde e retirando, com isso, a possibilidade de previsão e utilização do dinheiro mediante um plano distrital anual.

Há, para além disso, graves omissões no tocante às ações e serviços voltados à prevenção em saúde, formação de profissionais e agentes, controle social e saneamento básico. O resultado dessa política é o aumento de doenças e endemias que poderiam ser erradicadas, mas, na prática, afetam importantes parcelas populacionais e geram sofrimento e morte. Vale ressaltar que os recursos previstos para o ano de 2016 foram da ordem R$ 1,4 bilhão, sendo que, deste montante, cerca de 68% foram executados. Na rubrica “saneamento básico”, um dos fatores principais para a garantia da saúde, foram executados menos de 50% dos recursos previstos (conforme informações prestadas pela Sesai durante reunião da Comissão Intersetorial de Saúde Indígena, em dezembro de 2016).

A política de educação escolar indígena manteve a frágil estrutura. Embora tenham sido criados os Territórios Etnoeducacionais, base e referência para a política, têm como executores as secretarias estaduais ou municipais de educação, que desenvolvem, cada qual a seu modo, os serviços que melhor convém aos interesses localizados. Há uma precarização nas estruturas das escolas, não se investe recursos para a construção e manutenção das escolas. Mas, pior que isso, pouco se investe na formação e preparação dos professores indígenas, que seriam, a rigor, os principais responsáveis, junto com as comunidades, pelo planejamento, gestão e execução das ações na educação escolar.

No que concerne à política fundiária a tendência, pelo que se consegue observar, é de que haverá mudanças ainda mais severas. A lógica, segundo se anuncia, é que sejam realizadas mudanças drásticas na Constituição Federal, especialmente no que tange a demarcações de terras. Para tanto, há proposições que tramitam no âmbito do Poder Legislativo – sistematizadas todas na PEC 2015/2000 e CPI da Funai e Incra, instrumentos nos quais são forjados argumentos de que as demarcações são fraudulentas e os que as apoiam e lutam por elas são criminosos.

No âmbito de ação do Poder Executivo, o que se planeja é mudar a sistemática dos procedimentos demarcatórios através de medidas administrativas, tomadas com base em decretos e em portarias. No âmbito do Judiciário, alimenta-se a tese do marco temporal da Constituição Federal de 1988, como sendo este o período limite e definidor para que seja estabelecido o critério da tradicionalidade da ocupação indígena.

Enquanto estas medidas não são implementadas de modo definitivo, a Funai, através de sua coordenação de assuntos fundiários, tenta consolidar uma tendência interna de não mais demarcar terras conforme as normas constitucionais, utilizando-se, para tanto, de regras propostas no Estatuto do Índio – Lei 6001/1973 – o qual também prevê, além da demarcação, a criação de reservas indígenas. As reservas são, na prática, resquícios das políticas autoritárias e integracionistas que tinham o objetivo de confinar os povos em pequenas porções de terras, liberando as áreas tradicionais para a exploração e expansão econômica.

Os que pretendem impor a criação de reservas como opção à demarcação justificam tal escolha afirmando que se evitará assim desgastes políticos e a judicialização dos procedimentos demarcatórios. Se houver efetivamente a imposição dessa nova sistemática, aniquilam-se os direitos constitucionais, e sequer será necessário alterar a Constituição Federal. Na prática, essa sistemática cede à lógica de que as terras devem ser concedidas (por um Estado benfeitor) e não reconhecidas (como direito que, efetivamente, os povos indígenas possuem). Haverá, pelo que se desenha, um processo negocial tendo em vista o convencimento dos indígenas a aceitarem essa sistemática para que se assegure ao menos as reservas para sobrevivência, caso contrário permanecerão sem acesso às terras, em acampamentos, em áreas ínfimas. A chantagem, em essência, é o que sustenta o argumento para a submissão de povos milenares. Além disso, reforça-se essa chantagem com a ameaça de que os povos que estiverem fora das terras demarcadas ou das áreas reservadas não mais terão acesso à assistência especial em saúde e educação, e ficarão submetidos aos entes municipais e estaduais.

Vivemos, inegavelmente, um período de restrição e negação de direitos. A Constituição Federal vem sendo condicionada – através de interpretações ou alterações, como foi o caso da PEC 55/2016 – aos interesses de setores da economia e da política. A Lei Maior, no tocante aos povos indígenas, é negligenciada de modo sistemático, em especial no tocante ao alcance do direito à terra, condicionada à lógica da propriedade privada. Em interpretações duvidosas da lei, o direito originário sobre as terras que os povos tradicionalmente ocupam vai sendo contestado, bem como os efeitos de dispositivos constitucionais que definem esses direitos como inalienáveis, indisponíveis e o direito sobre as terras imprescritível.

Ao analisar a atual conjuntura, há que se fazer referência a políticas constituídas no início do século XX, nas quais se promoveu a identificação de “grupos indígenas” com o objetivo de removê-los para algumas reservas, nas quais se aglomerou populações, inclusive, de povos diferentes. Faço essa alusão pois, ao que parece, esta política está sendo retomada. Naquele período, a remoção e o confinamento tinham um duplo objetivo: integrar os índios à comunhão nacional e entregar suas terras aos projetos de expansão econômica – para a construção de rodovias, ferrovias, hidrelétricas, para a instalação de mineradoras, madeireiras e a promoção da agricultura e pecuária. Hoje, ao utilizar o argumento de criação de reservas ao invés da demarcação pretende-se, mais uma vez, remover os povos indígenas de suas terras, que são pleiteadas para a implementação de projetos desenvolvimentistas e da expansão do agronegócio.

No passado, as remoções eram feitas com uso de violência e geraram um vergonhoso quadro de atrocidades – algumas delas registradas no Relatório Figueiredo. A política assimilacionista, claramente estabelecida no Estatuto do Índio (Lei 6001/1973), teria sido superada com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Os direitos assegurados no Capítulo VIII e nos artigos 231 e 232 são conquistas decorrentes de mobilizações que antecederam a este período, especialmente através da presença expressiva dos índios durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Mas agora, neste contexto, a retirada da população indígena de suas terras ou a negligência em relação à demarcação são evidências de que os direitos indígenas entraram na mira de interesses econômicos e se pretende incorporá-las como recursos.

A brutalidade decorrente de tal processo já se faz notar.vNo estado do Maranhão, madeireiros promovem verdadeiras caçadas aos indígenas que se opõem ao desmatamento e exploração madeireira. Foram assassinados oito pessoas do povo Guajajara. Algumas das vítimas tiveram membros arrancados e expostos pelos assassinos.

Na Bahia, lideranças do povo Tupinambá são criminalizadas, perseguidas, agredidas, ameaçadas e assassinadas. Em Minas Gerais ocorre fato semelhante contra o povo Xakriabá. No Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná os ataques aos direitos indígenas estão somados à perseguição, criminalização e o aprisionamento de lideranças que lutam pela terra.

Em Mato Grosso do Sul, os ataques aos Guarani-Kaiowá e Terena têm sido recorrentes, mas, especialmente em 2016, registrou-se a interdição, por parte de juízes federais, aos direitos territoriais em áreas já demarcadas ou naquelas cujos processos deveriam estar em andamento, mas acabaram obstruídos. Concomitantemente, determinam o despejo das comunidades com uso de força policial.

Nos estados do Maranhão, Rondônia, Mato Grosso, Pará e Acre o desmatamento e a exploração dos rios e lagos são devastadores. Nunca se desmatou como em 2016, com centenas de milhares de hectares de matas dentro de terras indígenas que tombaram ou foram incendiadas criminosamente.

O marco temporal da Constituição

O marco temporal da Constituição de 1988 visa impor a necessidade da presença dos povos e comunidades na posse da terra à data de 05 de outubro de 1988 ou, caso nas terras não estivessem, impor a regra de que deveriam estar postulando-as judicialmente ou disputando-as fisicamente – o chamado renitente esbulho. Os povos que não atendem a estas condições, perdem o direito à demarcação da área reivindicada.

Sobre isso, cabe pelo menos duas indagações. A primeira: como alguns povos indígenas poderiam estar em suas terras em 1988 se delas foram expulsos com o consentimento, participação ou omissão do Estado? A segunda: como os indígenas poderiam estar em litígio por suas terras em 1988 se até então eram ainda tutelados, não considerados sujeitos de direito? Nesse ponto, seus tutores que tinham o dever de defendê-los não fizeram e, se o fizeram, foi de modo insuficiente. O renitente esbulho, ao ser descolado da história de resistência dos povos e comunidades tradicionais, constitui-se numa grave contradição, pois impõe a eles uma responsabilidade que não lhes competia antes da Constituição de 1988, qual seja, a de ingressarem em juízo. Alguns povos foram expulsos há 100 anos; outros nas últimas décadas antes de 1988, mas todos foram esbulhados no decorrer do século passado. Além disso, tais povos nunca perderam a relação com as terras tradicionais e, se não retomaram antes, foi porque estavam impossibilitados.

Sobre o marco temporal é possível elencar três elementos jurídicos que são os que causam as principais controvérsias nos julgamentos de tribunais referentes às demarcações de terras: há, nos julgados dos tribunais, insuficiente entendimento conceitual e pouca convergência sobre a sua aplicação nos processos que envolvem a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas; há divergências entre magistrados no tocante aos conceitos de direito indígena à terra – posse, ancestralidade, usufruto e bens da União – e posse e propriedade oriundos do direito civil; há desconhecimento quanto à aplicabilidade do direito em relação às diferenças étnicas, culturais e ao fato dos povos terem sido considerados sujeitos de direitos individuais e coletivos – plenamente capazes, portanto (Art. 232 CF/1988).

PEC/215 e outros projetos de lei contra indígenas e quilombolas são ilegítimos

A Proposta de Emenda à Constituição Federal (PEC) 215 pretende introduzir a possibilidade de revisão de todas demarcações de terras por decisão do Congresso Nacional, a quem também caberá a autorização das demarcações futuras por projetos de lei específicos sob análise de um caso concreto. Há, no entanto, que se dizer que o Poder Legislativo do país tornou-se um mercado livre a quem os governantes devem submeter-se. Cada projeto de lei é negociado de acordo com seu valor mercadológico. Nada passa sem que se obtenham dividendos financeiros. Não se exerce um mandato motivado ideias e plataformas políticas. Ao contrário, o eleito a qualquer das Câmaras Legislativas – estadual, municipal, federal – e ao Senado age de acordo com os dividendos a serem obtidos. As minorias e salvo raríssimos e abnegados parlamentares, que ainda defendem os povos indígenas e que exercem mandato de forma digna, acabam desprezadas com propostas rejeitadas e perseguições abjetas.

A grande maioria dos parlamentares mais ativos no Congresso Nacional legisla em bloco, visando o benefício dos seus próprios interesses. É sabido que esses mesmos congressistas, em sua maioria, são detentores de latifúndios em nosso país. Além de serem suspeitos, porque usam o poder de legislar conforme os próprios interesses, o fazem atropelando as leis ambientais. A reforma do Código Florestal, por exmplo, na qual ignoram a principal causa: não pagar as multas por agressão ao meio ambiente, sob a falácia de que estariam com isso defendendo os pequenos agricultores, e dessa forma deturparam ou suprimiram em grande parte a legislação protetora do meio ambiente.

Práticas que se assentam no uso indiscriminado da terra, envenenando-a com agrotóxicos poluentes e contaminando o ar, os rios e mais o cultivo dos transgênicos (estes ainda estão pendentes de pesquisas sobre seus resultados). Se expulsam delas quem nelas vivem de forma digna, saudável, ancestral e sustentável. Também não são poucos os abusos que contrariam as leis trabalhistas, sendo que são conhecidos os muitos casos de trabalho em condição análoga à escravidão.

Diante deste quadro legislativo, os projetos, leis e emendas à Constituição Federal que são elaborados pelo parlamento com as quais pretendem aniquilar com a possibilidade de que demarcações de terras sejam realizadas, em regra, devem ser caracterizados como ilegais. Só para se ter uma ideia da articulação e da força que se volta contra os povos indígenas, tramitam hoje no Congresso Nacional mais de 100 proposições que alteram artigos concernentes aos direitos indígenas e quilombolas.

Comissão Parlamentar de Inquérito da Funai e Incra

As ações desencadeadas no âmbito da CPI da Funai e do Incra contra os procedimentos de demarcação de terras – indígenas e quilombolas – pretendem, essencialmente, fornecer elementos para o questionamento judicial dos atos passados e os futuros no que tange o direito à terra. Ambicionam caracterizar todos os atos administrativos de demarcação como sendo fraudulentos. O argumento é de que há interesses escusos por trás das ações que visam assegurar terras para indígenas e quilombolas. Com essa estratégia, atacam os entes do Estado e criminalizam as entidades que prestam apoio e assessoria a esses segmentos. O Cimi, por exemplo, é alvo de ataques da bancada ruralista que comanda a CPI. Esta almeja submeter a entidade a processos investigatórios pela Polícia Federal, pedido que aliás já foi aprovado em requerimento na CPI.

Mudança na sistemática de demarcação de terras

Se anuncia, no âmbito do governo federal, que serão alteradas, por intermédio de decreto, as regras para os procedimentos de demarcação de terras indígenas. As informações que estão sendo veiculadas pela imprensa dão conta de que o presidente da República quer rever as garantias e salvaguardas constitucionais relativas aos direitos à terra, ao seu usufruto exclusivo pelas comunidades. Além disso, se opõe à consulta prévia, livre e informada acerca de temas e questões que afetam direta ou indiretamente os povos. Pelo que se tem notícia, a intenção é a de tornar letras mortas os artigos 231 e 232 da Constituição Federal, onde expressamente se garante como direito fundamental a demarcação de todas as terras. A medida visa também transferir o usufruto de terras demarcadas, direito exclusivo dos povos e comunidades, para a iniciativa privada.

As medidas anunciadas, se confirmadas serão ilegais e ilegítimas. Ilegais porque afrontam as convenções e normas internacionais e, mais grave, atentam contra a Constituição Federal uma vez que ela, a Carta Maior, somente pode ser modificada através de emenda constitucional. As mudanças que almejam no âmbito administrativo são também ilegítimas porque serão feitas por um governo que vem sendo considerado, por uma imensa parcela da população e por governantes de outros países, como ilegítimo do ponto de vista ético, pois é oriundo de um golpe político e jurídico, composto, em sua maioria, por pessoas sobre as quais pesam fortes e graves denúncias de corrupção.

Concluindo

Há, como se percebe, uma estreita sintonia entre os argumentos utilizados e propagados pelos ruralistas na Comissão Especial da PEC 215 e na CPI da Funai e Incra, com as proposições do governo quando pretende impor nova sistemática para as demarcações, inserindo nelas todas as teses anti-indígenas existentes no mercado do agronegócio e das mineradoras; da Funai, através de sua coordenadoria de assuntos fundiários, que ambiciona, em substituição ao direito à terra, criar pequenas reservas; de ministros do STF que em suas decisões contra as demarcações de terras utilizam como regra as interpretações restritivas de direito a partir do marco temporal e do renitente esbulho.

Pretende-se, a partir daquilo que já se fez ao longo do ano de 2016, com o que anunciam, numa conjunção de esforços políticos, jurídicos e administrativos, impor a revisão completa do direito dos povos indígenas à terra. Em consonância com as novas necessidades do capitalismo neoliberal, o interesse é liberar e destinar os espaços territoriais indígenas à iniciativa privada.

Os direitos assegurados na Constituição ainda tinham alguma sustentação política, dentro da lógica de gestão das desigualdades, ou seja, de proteção daqueles sujeitos e coletividades sem os recursos necessários para concorrer. Assim, se resguardavam alguns recursos para manter as populações indígenas, e outros segmentos sociais, em condições mínimas de sobrevivência. Esgotadas as possibilidades de lucratividade, se coloca a urgência de manter o ritmo desenvolvimentista abastecido por recursos que antes eram previstos para políticas sociais.

Dentro desta nova racionalidade, o governo congela recursos, obstrui as vias legais para a demarcação das terras, criminaliza as lutas. Além disso, busca adesão da população a estas medidas e o aval de cada um e cada uma nesta empreitada contra as garantias constitucionais e a construção de um consenso em torno de medidas antissociais. Não obtendo, o caminho mais ágil será a repressão e a criminalização.

*Roberto Liebgott é filósofo, bacharel em Direto e Coordenador do Cimi Regional Sul.
Fonte: Assessoria de Comunicação - CIMI

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