Desativar guerrilha de 50 anos na Colômbia implica atender demandas sociais históricas

Pietro Alarcón, professor de relações internacionais analisa o conflito com as FARC em entrevista ao jornal eletrônico Correio da Cidadania.

Por Gabriel Brito

Enquanto o mundo vive uma escalada de violência, autoritarismo e chauvinismo, que somente entre 14 e 15 de julho significaram um atentado com mais de 80 mortes na França e um golpe de Estado em pleno andamento na Turquia, um dos mais longevos conflitos da humanidade vai na direção contrária.

Trata-se da Colômbia e seus acordos de paz entre o governo de Juan Manuel Santos e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército Popular (FARC-EP). Foi sobre isso que conversamos com Pietro Alarcón, professor de relações internacionais radicado no Brasil.

“Para a América Latina é um elemento determinante em termos de segurança regional, porque gera um novo ambiente. Fica demonstrado que as saídas militares, a força, a tática de guerras preventivas, as imposições imperiais têm de ser definitivamente afastadas, que não há espaços para golpes de nenhum tipo, nem para autoritarismos na região”, comemorou.

farc-860x450_cNa entrevista, o antigo militante da União Patriótica, movimento que tentou a reconciliação na Colômbia dos anos 80, destruída por uma trágica reinserção na política que vitimou milhares de opositores que depuseram as armas, para atirar o país nas mãos da política externa dos Estados Unidos, traça detalhadas explicações a respeito de todo o contexto que marca a conflagração. De toda forma, festeja o que considera o fracasso de políticas de Estado belicistas, inclusive em função de seus próprios interesses econômicos.

“O paramilitarismo é uma séria ameaça. É uma tática usada historicamente contra o conjunto do povo colombiano. O governo de Santos tem de tomar as medidas necessárias para combater e aniquilar tal ameaça. Santos sempre quis, e quer, apresentar a Colômbia como um país emergente, atraente para investimentos externos. Claro, não é possível para ele ocultar a pobreza, a marginalidade, o narcotráfico. Mas, por assim dizer, existe uma necessidade de desenvolvimento de alguns setores nos marcos do capitalismo, como o mineral-energético”, explicou.

Como pode ser notado, não há nada ganho e a trilha para a paz ainda demandará mais exercícios de entendimento. De toda forma, Alarcón acredita que o novo momento realmente enseja maior otimismo quanto ao desfecho das negociações e uma reorientação de caráter histórico do Estado colombiano. “O acordo deve ter consequências diretas no abandono dos tributos para a guerra, supõe uma reorientação do gasto público, uma reconfiguração das opções econômicas do Estado”, disse.

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Como você recebeu o anúncio do governo colombiano e das FARC-EP a respeito da deposição das armas e do conflito que já leva mais de meio século?

Pietro Alarcón: A conquista da paz é uma excelente notícia. Para os colombianos, um momento de esperança, de alegria e de possibilidades. Logicamente, se abre um cenário distinto para trabalhar e procurar avançar na perspectiva de tornar a Colômbia um país de justiça social. Isso obriga a repensar na tática, a um debate sobre opções de poder, formas de luta política. Os diálogos têm tido a virtude de problematizar temas que os setores mais atrasados do país sempre esquivaram e suprimiram pela via da violência.

A participação internacional tem sido importante?

Pietro Alarcón: Sim, e acho que para América Latina é um elemento determinante em termos de segurança regional, porque gera um novo ambiente. Fica demonstrado que as saídas militares, a força, a tática de guerras preventivas, as imposições imperiais têm de ser definitivamente afastadas, que não há espaços para golpes de nenhum tipo, nem para autoritarismos na região.

Claro, é preciso esclarecer do que se trata. A que exatamente se chegou na negociação para que a opinião pública internacional conheça, participe, ajude em todo o processo. Há que destacar a facilitação e os bons ofícios que têm prestado Estados como Cuba, a sede dos diálogos, Uruguai, que tem sido fundamental, Venezuela, Equador e outros países. A participação da ONU e a presença de Ban Ki Moon serão ainda mais importantes porque verificarão o período de 180 dias que começou no dia 23.

O Acordo em si, em que consiste?

Pietro Alarcón: Como todos temos acompanhado com especial atenção, há uma agenda de negociações com vários pontos, política de desenvolvimento agrário, participação política, justiça, dentre outros. Têm-se avançado pelas partes ao ponto número 3, que é o do denominado “fim do conflito”, a compreender dois temas que requerem um tratamento muito delicado: o primeiro é o fim das agressões militares de lado a lado, de maneira definitiva; o segundo passo é deixar as armas.

O que foi assinado em 23 de junho não se trata de um acordo final?

Pietro Alarcón: Não, mas é mais um passo, e um passo importantíssimo. O acordo final deverá ser subscrito na Colômbia e espera-se que seja um ato com participação de chefes de Estado, de ampla representatividade, com presença da ONU, enfim, a comunidade internacional tem de estar presente e abraçar o processo e suas conclusões. Incluindo representações de organismos multilaterais da região como a UNASUL e a CELAC. É necessária a presença da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a fim de rodear de garantias a etapa de pós-acordo.

Mas o que falta para um acordo final?

Pietro Alarcón: Pelo que se deu a conhecer nos diversos comunicados, há temas pendentes, um cronograma que é preciso executar. O que foi anunciado no dia 23 de junho é que o governo de Santos e a insurgência têm um compromisso sobre um ponto muito significativo: encerraram-se todas as ações ofensivas entre as Forças Armadas e as FARC e qualquer modo de afetação à população civil. É um cessar de agressões bilateral que implica compromissos e responsabilidades mútuas.

Isso é muito importante porque nem Estado nem FARC tinham chegado a um acordo nesse ponto. As FARC insistiram desde o começo em parar as agressões para que as conversações não fossem realizadas no meio do fogo cruzado, mas o governo somente trabalhou com tal possibilidade mais recentemente, praticamente quando já se vislumbrava o ponto final.

A guerra acabou?

Pietro Alarcón: Há que esclarecer que embora não existisse essa bilateralidade, e falo do que ficou conhecido, pois os meios de comunicação se referiram ao tema em vários momentos, a insurgência manteve um cessar fogo unilateral durante quase um ano, ainda que nem sempre tenha sido algo concretizado e evidenciado, pelas próprias condições de desenvolvimento do conflito. Mas também o Estado e a insurgência chegaram a acordos importantes que serviram para aclimatar o diálogo, gerando a confiança necessária.

Por exemplo, o acordo para abandonar a tática do emprego das minas terrestres e consequentemente eliminá-las, ou o acordo para procurar e identificar pessoas desaparecidas. Agora, torcemos para que a guerra acabe não só no papel, mas de fato. Logicamente, tal objetivo no país, mesmo depois de tantos anos de mortes e sacrifícios, ainda tem inimigos.

Quais são as preocupações?

Pietro Alarcón: Especialmente, um segmento da classe dominante colombiana aliada aos interesses dos monopólios internacionais que sustentam as guerras, que foi aliado direto do Bush e da sua guerra preventiva. Que está muito ligada ao paramilitarismo, à perseguição e assassinato de opositores políticos, dos trabalhadores de direitos humanos, dos sindicalistas organizados que defendem a paz, de estudantes. Este é um setor que deve ser derrotado para que se dê uma abertura democrática no país. É um setor sempre manifestou sua oposição ao diálogo.

Você se refere ao setor do ex-presidente Uribe?

Pietro Alarcón: Ele encabeça uma reação infame contra a Colômbia. Durante seu período de governo, não somente negou a existência do conflito, como ampliou e aprofundou o exercício da força, ultrapassando os limites do ordenamento jurídico nacional, da Constituição em vigor e de leis internacionais. Refiro, dentre outras, às normas de direito internacional humanitário, que se impõem ao próprio Estado e suas forças armadas.

Além disso, atacou outros Estados da região e violento normas de coexistência respeitosa e civilizada entre os nossos países. Mas esse setor fracassou mesmo, sua ideia de “segurança democrática”, um autêntico plano de guerra, fracassou. E com isso também fracassou o Plano Colômbia e toda sorte de estratégias para uma saída militar ao conflito. Fracassou a tese do Estado de guerra civil, que procurava uma suposta legitimidade, a partir de um andaime político e publicitário nunca antes visto no país. Por isso, reitero, a única saída para Colômbia é a paz.

Dessa explicação se deduz que sem acabar com o paramilitarismo, não haverá paz?

Pietro Alarcón: O paramilitarismo é uma séria ameaça. É uma tática usada historicamente contra o conjunto do povo colombiano. O governo de Santos tem de tomar as medidas necessárias para combater e aniquilar tal ameaça. Para defender a vida e a integridade das lideranças sociais. Isso é responsabilidade do Estado e em particular do atual governo. E tem de ser verificado nacional e internacionalmente, ou seja, deve-se conferir se o Estado está cumprindo sua parte nos acordos.

No próprio terceiro ponto da agenda se estabelece o compromisso do Estado colombiano de intensificar o combate contra o paramilitarismo e suas redes de apoio, e contra qualquer organização que atente contra defensores de direitos humanos, movimentos sociais ou movimentos políticos.

Sendo mais explicativos, se me permitem, não é simples demonstrar com palavras como na Colômbia, em algumas regiões, a política e a violência caminham juntas. A esquerda, partidos políticos, mas também posso dizer que sindicatos inteiros, cooperativas de camponeses, em algumas regiões, desapareceram pela ação paramilitar. A guerra na Colômbia se degradou de tal maneira que os direitos humanos se tornaram inexistentes em regiões nas quais o deslocamento interno de camponeses, indígenas, é o dia a dia.

São mais de 6 milhões de deslocados internos reconhecidos pelo ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) e entidades da própria Colômbia, como o Comitê Permanente pela Defesa dos Direitos Humanos. Isso foi o que a Corte Constitucional da Colômbia denominou como inconstitucional na sentença T-025 de 2004. A situação que analisa a decisão não é somente a do contexto de morte e de tragédia humanitária, mas a de uma ordem econômica injusta que deve ser transformada, de uma intolerância política que não pode mais subsistir.

O movimento social colombiano tem sido duramente castigado. Embora deva se dizer que nunca recuou na sua ideia de contestar as agressões, através de diversas manifestações de luta econômica e política e de um grau de organização social que tem avanços extremamente relevantes.

Houve um Foro de Vítimas em Havana?

Pietro Alarcón: Exatamente. E a participação das vítimas foi determinante. Nunca haviam sido escutadas dentro de nenhum dos processos anteriores, pelo menos não como aconteceu nesta oportunidade. As vozes de familiares, vítimas, suas histórias e narrativas sobre tudo o que de ruim, de atroz e de profunda dor traz uma guerra, foi fundamental. Os depoimentos das mães, das mulheres em geral, foram fundamentais. Não só pelo que falavam, mas pela exigência nos olhares de que isso não pode continuar, que a guerra não pode ser mais o caminho. Exigem paz, com justiça, sem impunidades.

Assim, ainda há um bom trecho por percorrer.

Pietro Alarcón: Considero que sim. E nestes casos, pela análise que podemos fazer de outros processos em outras partes do mundo, tudo cuidado é pouco. As partes devem determinar com um cronograma na mão como se dará o cessar bilateral das agressões, ou seja, o fim das confrontações militares. Há que efetivar as medidas de verificação e ainda um dispositivo de máxima segurança para garantir que isso funcione. E consignar e concretizar também como funcionarão as garantias para os partidos e movimentos que se declarem em oposição ao governo e ao regime político. Esse é um dos temas cruciais, se lembramos que uma das causas da guerra é a exclusão política, a intolerância com aqueles que pensam diferentemente em relação ao tipo de Estado que a Colômbia deve assumir.

Você se refere ao tema das garantias para a oposição?

Pietro Alarcón: Sim. Veja, é muito conhecido que quando as conversações se adiantavam ficaram alguns pontos pendentes. Os pontos que estavam no refrigerador, mas teriam de ser retomados para que houvesse realmente acordo sobre eles, a fim de eliminar receios. Na época, optou-se por fazer uma lista deles e um dos pontos era o das garantias. Há poucos dias, saiu o comunicado conjunto, a estabelecer que os partidos e movimentos políticos serão convocados para compor uma comissão que vai definir as linhas mestras do estatuto de garantias para os partidos e movimentos políticos que se declarem em oposição.

Assim, deverão estar todos os partidos e também, como se diz no comunicado, movimentos como a Marcha Patriótica e o Congresso dos Povos. Isso também foi acordado. E o tema estará ligado à abertura de participação política e ao fortalecimento do sistema eleitoral, às novas condições para efetivar o sufrágio, à questão da representatividade no Legislativo.

Na Colômbia, acordos de paz e entendimento bélico e político já se realizaram antes e acabaram falidos. Você esteve na União Patriótica nos oitenta, depois atuou como assessor da Comissão de Notáveis que foi criada na Colômbia e trabalhou como consultor em Bogotá durante os acordos de El Caguan, no governo de Pastrana. Com essa experiência, por que você acha e por que poderíamos acreditar que agora será diferente?

Pietro Alarcón: Por várias razões. Aqui há uma questão interessante. A contrário do período de Uribe, no qual a tese governamental era a de que a democracia estava ameaçada pelo terrorismo, que negociou com o paramilitarismo uma lei que não conduziu nem à verdade, nem à justiça e muito menos à reparação, o governo de Santos mudou a tese. Santos sempre quis, e quer, apresentar a Colômbia como um país emergente, atraente para investimentos externos, que pode caminhar para uma democracia representativa sadia, sem o componente da guerra.

Claro, não é possível para ele ocultar a pobreza, a marginalidade, o narcotráfico. Mas, por assim dizer, existe uma necessidade de desenvolvimento de alguns setores nos marcos do capitalismo, como o mineral-energético. Essa é uma leitura possível, a paz como um dispositivo necessário e determinante para o grande capital comercial, financeiro e mineral-energético.

Para o movimento social, a paz não é para isso. Para os trabalhadores não é para isso. É para consolidar um cenário de maior intensificação da luta pelos direitos sociais; para construir uma frente ampla não só pela paz e pelo cumprimento dos acordos, mas para ser alternativa de poder. Não é apenas para uma democracia representativa, é para uma democracia participativa, deliberativa e de muito maior calado do que alguns podem pensar. A paz se faz com o cumprimento de acordos, com responsabilidade de lado e lado, mas não mata a luta social. Por isso tecnicamente não se fala em pós-conflito, porque o conflito social seguirá. Isso é inevitável. Fala-se em pós-acordo.

Também acho importante remarcar que há uma redução das confrontações, do agir bélico. O grande risco que ainda vejo é a existência de uma direita paramilitar, disposta a sabotar o processo. E há, é claro, sempre o risco de que falhe a vontade necessária para chegar ao final.

E há outros riscos, por exemplo, em algumas regiões onde funcionarão zonas de verificação, há economia fundada no narcotráfico, tráfico de armas, conflitos sociais históricos, contradições econômicas profundas, presença de outros grupos insurgentes.

O narcotráfico é um obstáculo sério. Existem acordos sobre o ponto?

Pietro Alarcón: Deu-se a notícia de que já começou um plano piloto para a substituição de cultivos no departamento de Antioquia, no ocidente do país. E também que em 60 dias haverá um cronograma de trabalho para ampliar tal programa. Os camponeses devem começar a receber incentivos para um plano de cultivos de vários produtos. Nisso, Estado e guerrilha, pelo que se conhece, têm avançado também.

Correio da Cidadania: Qual a sua expectativa a respeito dos principais aspectos da transição da guerrilha para a vida política e social do país?

Pietro Alarcón: Processos de paz em geral são processos muito complexos. Em El Salvador ou em Uganda ou Sri Lanka, que são processos que fizeram parte da análise para saber como agir, constatou-se isso. Há vários elementos, fatores condicionantes das decisões, há condições geográficas, de reconhecimento político, de força militar, de segmentos econômicos, de ritmos e tempos diferentes.

Assim, cada ponto tem uma especificidade, porque tem obstáculos. E há, obviamente, aquele que os converte em motivo de debate, com o interesse de fechar os espaços de diálogo, ou seja, procurando impedir que o processo avance. Vou colocar um exemplo: há quem critique a presença de chefes militares da insurgência nos próximos dias em regiões nas quais precisam se reunir com sua militância para explicar concretamente os acordos e chegar a uma posição sólida sobre os passos que devem dar para a implementação dos acordos. Tais regiões, chamadas de zonas de veredas transitórias, ficam, logicamente, no perímetro de alguns municípios do país. A vereda, para entender melhor, é uma unidade territorial administrativa no país. Na Colômbia são 33 mil. Foram escolhidas algumas para este processo.

Para o setor encabeçado pelo ex-presidente Uribe, por exemplo, significa entregar o país às FARC. São opiniões torpes, que não entendem que se está se desenhando um novo cenário no país, porque tais zonas serão as que deverão dar o monitoramento de passos importantes para o fim da guerra e estarão sob direção tripartite, com representação do Estado, da guerrilha e das Nações Unidas.

Os mecanismos de monitoramento e verificação são essenciais, porque eles são os que deverão determinar se há realmente mudanças na realidade das comunidades e regiões. Isso implica a criação de estruturas articuladas com a população, com as organizações sociais, com as autoridades regionais e locais. São elas que devem exigir a prestação de contas das partes.

Mas, volto a explicar, é uma questão complexa.

Os passos dessa transição implicam que as FARC deixem as armas. Como se dará essa reincorporação à vida civil?

Pietro Alarcón: Bom, regularmente, quando se fala em transições neste tipo de situações, se cria uma lista das ações que se suspendem ou se prescrevem. As partes chegam a um acordo sobre o item. Depois, há que assegurar que os combatentes se separem fisicamente, não tenham contato. Implica determinar zonas para o trânsito desses homens e mulheres, de ambas as partes. Depois, deve-se estipular zonas para o desarmamento, a desmobilização e, finalmente, seus mecanismos de armazenamento, destinação etc. Insisto em que cada ponto é um processo em si mesmo. No caso da Colômbia, o que se conhece pelos comunicados conjuntos é que já há uma lista das ações que devem ser suspensas como, por exemplo, sequestros e extorsões.

Depois que já forem estabelecidas as zonas que mencionei, deverão se executar dois passos: o controle de armas e o desarmamento propriamente dito. A seguir, deve-se coletar as armas e dá-las destino final. Tudo sob a supervisão da comunidade internacional e de representações colombianas do movimento social, das forças políticas, das organizações multilaterais já mencionadas, incluindo até a representação do Conselho de Segurança da ONU. Mas, ainda assim, o processo deve continuar com a execução dos programas de reinserção e toda a engrenagem de segurança para a proteção dos desmobilizados.

Quanto ao Estado colombiano, que postura você espera de seus atuais comandantes militares? Confia que cumpram sua parte?

Pietro Alarcón: Acho que os colombianos esperamos que as duas partes cumpram com aquilo que se pactuou. Logicamente, há um receio, que me parece natural, depois de mais de 50 anos de conflito. O compromisso de um dos lados é deixar as armas. Do outro abandonar toda uma filosofia que sustenta um regime político excludente e um modelo econômico que acentua o desconhecimento de direitos mínimos de camadas enormes da população.

Por onde deve começar o Estado?

Pietro Alarcón: Eu acho que o primeiro passo é desativar os aparelhos de guerra interna. Abandonar a filosofia de um Estado e de umas forças armadas marcados pela “segurança nacional”, que converteu qualquer opositor em inimigo. O acordo deve ter consequências diretas no abandono dos tributos para a guerra, supõe uma reorientação do gasto público, uma reconfiguração das opções econômicas do Estado. Por sua vez, desativar uma insurgência de mais de 50 anos, que demonstrou ter um caráter político-social, implica atender suas demandas, os pontos que levantaram durante todo o processo.

E o pano de fundo é um país cujo movimento social participou de várias etapas do diálogo e que tem uma expectativa enorme em que este esforço crie um cenário diferente. Para isso, o Estado tem de tocar as causas da desigualdade, no campo e nas cidades.

Você não acha que o processo pode ter uma marcha à ré? Ou agora é irreversível?

Pietro Alarcón: Eu acho que deve-se fortalecer constantemente o processo de paz, o que apenas começou. O processo tem de ter um impacto na vida dos colombianos, um impacto regional e mundial. Na Colômbia, deve ter um impacto humanitário, uma projeção no terreno da efetividade dos direitos humanos.

Agora, há uma relação direta entre o cessar das agressões, a violência paramilitar e as garantias para o trânsito ao exercício da política, sem que existam perseguições, assassinatos das lideranças sociais e dos inseridos na sociedade civil. Se tais aparelhos não se desativam e o processo não tem esse impacto, teremos novos ciclos de violência, não haverá paz e será uma grande frustração. Para os que vivemos o surgimento da União Patriótica e participamos desse movimento político que sofreu a perda de mais de 5 mil militantes, não posso negar a existência de um receio fundado. Por isso, nos vemos diante de um esquema complexo de observadores internacionais, de controle, monitoramento, verificação.

Como ficam a política colombiana e sua divisão de forças a partir do acordo?

Pietro Alarcón: Acho que o fundamental é entender que exercer a atividade política na Colômbia não pode constituir uma perene ameaça para a oposição. Aspiramos a que ninguém na Colômbia tenha de usar as armas para poder ser governo e trabalhar com um modelo de condução do Estado. Deve haver um realinhamento de forças. Devemos esperar um pouco nesse sentido.

Vai mudar a Constituição?

Pietro Alarcón: Este é um acordo político que deve abrir espaço a uma juridicidade nova. As partes se sujeitam a princípios como o da boa-fé, que implicam que se coloquem todos os esforços para o cumprimento, retirando os empecilhos e os obstáculos que possam dificultar que eles sejam executados. O povo colombiano tem de referendar os acordos.

Agora, é necessário, sim, constitucionalizar os acordos substanciais em matéria econômica, política e social e petrificá-los. O que juridicamente e no campo das relações internacionais se denomina de temas substanciais ou reinvindicações estruturais, que não são temas de forma ou de procedimento. Isso implica que as conquistas na mesa de negociações não sejam suscetíveis de retrocesso ou abolição por governos sucessivos ou ao sabor de conjunturas. A procura da paz sempre deve ser considerada uma política Estado, e não de um ou outro governo. E a paz é um direito fundamental e humano nos termos constitucionais e conforme declarações internacionais.

Olhando para o futuro, o que se espera a partir do acordo? O que poderemos ver acontecer na Colômbia nos próximos anos?

Pietro Alarcón: Primeiro, referendar os acordos, o que será determinante. Depois, a presença da Missão Política da ONU, com a participação de representantes de Estados da CELAC, o que legitima o processo e gera a confiança necessária para prosseguir o monitoramento dos acordos. Em tudo, uma intensificação da luta social e política. Será um grande teste. O movimento político e social deve ganhar em organização, deve aumentar a reflexão sobre os grandes temas nacionais e trabalhar para uma frente ampla que termine de derrotar os inimigos da paz e se constitua numa alternativa de poder.

Devemos construir um poder social popular que interfira nas decisões econômicas, no plano da justiça, do controle do exercício da política, alicerçado nos homens e mulheres, nos estudantes, na juventude, na intelectualidade, nas crianças, e continuar dialogando.

Fonte: Correio da Cidadania.

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