A memória do passado, por mais distante e ignota, subterrânea e inconsciente que seja, faz parte de nossa identidade.
Por Alfredo J. Gonçalves*
No percurso da humanidade sobre a face da terra, quatro dimensões aparecem duplamente dilaceradas: dilaceradas umas em relação às outras e dilaceradas no interior de si mesmas. A primeira delas tem a ver com o cotidiano das relações humanas – sejam estas de ordem interpessoal, social, econômica, política ou cultural. Trata-se de um terreno cheio de ambiguidades, onde crescem simultaneamente plantas viçosas e ervas daninhas. Disso resultam as injustiças e assimetrias, as contradições e incongruências, bem como um grande leque e uma enorme gama de formas de violência. Daí os conflitos de interesses, enfrentamentos armados e guerras de toda espécie.
Vem a seguir a dimensão que se refere à identidade da própria pessoa humana, ao “eu” mais íntimo e personalizado. Também neste caso, o campo é escorregadio, labiríntico e tortuoso. Luzes e sombras se mesclam, se confundem e se entrelaçam; medos e dúvidas, perguntas e inquietudes abrem espaço para temores e tremores. Não faltam tormentas e tempestades, e tampouco faltam imprevistos e sentimentos desconhecidos, às vezes selvagens. Instintos, desejos, paixões e interesses misturam-se com uma vontade de autosuperação. É conhecida a imagem do “coração inquieto”, que só obterá paz e descanso quando regressar à sua pátria original para ali repousar definitivamente, conforme a expressão de Santo Agostinho.
A terceira dimensão refere-se à relação do ser humano com a natureza e o meio ambiente. E aqui, uma vez mais, nos encontramos em uma verdadeira encruzilhada. Como administrar de forma justa e equitativa a utilização dos recursos naturais e, ao mesmo tempo, o cuidado com o ecossistema? Em outros termos, como conciliar a busca e usufruto das fontes energéticas, por um lado, com a produção de alimentos, por outro? E como fazê-lo de tal forma que todas as pessoas, grupos, povos e nações sejam igualmente beneficiados pelos avanços da ciência e da tecnologia? São perguntas que emergem no contexto perturbador da desflorestação, desertificação e devastação crescente do solo; do aquecimento global, fonte de instabilidades climáticas cada vez mais acentuadas e às quais insistimos em chamar de “catástrofes naturais”; da extinção progressiva de várias espécies de fauna e flora, quando sabemos que o desaparecimento de uma planta ou de um animal, por mais insignificante que pareçam, empobrecem a própria vida humana…
Por fim, a dimensão do ideal a que todos os homens e mulheres sonham e ansiosamente buscam. Podemos afirmar que nascemos potencialmente projetados para realizar, dia a dia, passo a passo, gota a gota, esse ideal tão almejado. Por ele sofremos, lutamos e esperamos – seja que o associemos à ideia de Deus, seja que o identifiquemos com o conceito de perfeição. E é justamente aqui que surge a pergunta fundamental: como tomar consciência das ambiguidades, contradições e incongruências que nascem e crescem em todas as quatro dimensões, avaliar as potencialidades ocultas em cada uma delas e, enfim, empreender a dura e árdua pavimentação conjunta de um caminho gradativo de superação?
Não podemos, sem mais, passar deste “vale de lágrimas” ao mundo das ideias, onde, como pensava o filósofo grego Platão, tudo é belo, bom e sadio. Para superar as limitações, fraquezas e debilidades do ser humano, torna-se necessário fazer delas próprias um trampolim para um passo a mais, “um passo, por menor que seja” (Steinbeck), ou para um degrau acima em direção à meta desejada. Nossas raízes, mesmo estando mergulhadas no solo lamacento e úmido, são indispensáveis para a produção de folhas, flores e frutos. A memória do passado, por mais distante e ignota, subterrânea e inconsciente que seja, faz parte de nossa identidade. Precisamos dela como alicerce sobre o qual construir solidamente o futuro, de acordo com aquilo que nos ensina a psicologia.
Em síntese, a subida deve ser precedida de uma corajosa descida às entranhas mesmas da carne humana, ainda que muitas vezes essa descida nos faça tropeçar com imagens do inferno e do purgatório, conforme o esquema do poeta italiano Dante Alighieri. Em outra imagem, antes de buscar o ar livre, o céu azul e a luz do sol, a semente deve buscar o próprio alimento no ventre mesmo da terra. Antes de crescer para cima, a árvore necessita crescer para baixo. Depois de nutrir-se com os ingredientes que encontra no chão, então sim, estará pronta para elevar-se ao alto – forte, robusta e vigorosa.
Montreal, Canadá, 19 de julho de 2016.