A fábrica de ideologia

A onda fascistóide que varre o país desde há tempos só cresce, e muito desse crescimento vem da atuação da mídia.

Por Elaine Tavares*

A Globo mostrou ontem, mais uma vez, o que é ser uma fábrica de ideologia. Coloca como herói alguém que trabalha acima da lei, insufla o golpe, escancara sua posição. Nada de novo para nós que fazemos a crítica cotidiana. A mídia comercial é o braço armado do sistema. Há quem diga que não é bem assim, que não é tanto poder sobre as pessoas. Mas é. Negar isso é fechar os olhos para a realidade.

A onda fascistóide que varre o país desde há tempos só cresce, e muito desse crescimento vem da atuação da mídia. Não digo que as pessoas sejam tábulas rasas, que qualquer informação passada pela televisão se encrava e domina. Não. Isso seria estúpido e equivocado.

ideologia1 Mas, Theodor Adorno, um dos filósofos da escola de Frankfurt já deu a pista nos anos 50 sobre como essa fábrica de ideologia funciona e como acaba influindo na consciência coletiva. No seu estudo sobre a personalidade autoritária, Adorno mostra que existem na sociedade os fascistas em potencial. Essas pessoas seriam aquelas que já estariam abertas às tendências antidemocráticas da sociedade e, com a instigação sistemática, fatalmente se tornariam autoritárias e passíveis de explicitação do ódio.

Esse trabalho foi feito por Adorno para tentar explicar algumas tendências autoritárias na sociedade estadunidense logo após a segunda grande guerra, e ele baseava suas conclusões na experiência vivida pelo nazismo – pouco tempo atrás, que acabou levando ao fanatismo um país inteiro. Ele mostra que as tendências fascistas não estão ligadas ao desconhecimento, à ignorância ou a falta de informação. Se fosse assim não teríamos tantos intelectuais caminhando por essas veredas. A tendência fascista, para ele, é algo que está na consciência e, se bem trabalhada, pode aflorar até mesmo nas chamadas “pessoas de bem”.

O fato é que a classe dominante usa os meios de comunicação para insuflar o ódio a tudo aquilo que apareça como um entrave ao seu domínio. Mentiras e preconceitos, repetidos e repetidos, provocam a insurgência do fascista em potencial, aquele que no íntimo do seu ser precisa de um líder, um patrão, um chefe, alguém autoritário e mandão para definir os caminhos. Ele mesmo não se sente seguro em definir seu próprio rumo. E é aí que a televisão – fábrica de ideologia – entra. Como o espaço mais propício para a fermentação do ódio e para a construção de uma sociedade autoritária.

Não é sem razão que os meios de comunicação comercial estejam sempre a massacrar os negros que vivem nas favelas, os pobres, os índios, os trabalhadores que se revoltam, as gentes que se rebelam, os de “abajo”. Todas essas parcelas da sociedade são demonizadas diuturnamente. Milhares de trabalhadores públicos em greve fazendo passeata em Brasília não entram no plantão da Globo, mas meia dúzia de reacionários gritando em frente ao Palácio da Alvorada são elevados ao patamar de “heróis da pátria”. E o que é pior, tudo isso acaba sendo potencializado nas redes sociais, que reproduzem os mesmos meios, as mesmas ideias, à exaustão.

Na histeria dos fascistas em potencial já não cabem mais a lei, as regras definidas para viver em sociedade, nada. Só o que vale é fala e a indicação do líder. Com ele vão ao inferno e podem até matar a própria mãe. Dura realidade. Porque um líder que se vale do ódio pode voltar-se contra os seus próprios comandados a qualquer momento, basta que apresentem uma fagulha de pensamento crítico. Registros disso podemos encontrar aos milhares na história da humanidade. Na arte, um filme que mostra bem essa construção da sociedade autoritária é “O senhor das moscas”. Vale a pena ver e pensar um pouco sobre o que vivemos agora mesmo no Brasil e na América Latina.

Ontem assistimos a mais um capítulo das investidas da classe dominante para abocanhar o poder de governar de direito. Porque de fato nunca esteve fora das decisões. Apenas suportou a aliança com o Partido dos Trabalhadores porque havia uma conjuntura continental que favorecia a um avanço da ideia de socialdemocracia, de avanço de políticas públicas, de políticas compensatórias. Mas, agora que por toda a América Latina a mão dura do capital vem recuperando seu poder, já não é mais preciso esconder-se na pele de cordeiro. O lobo volta arreganhar os dentes sem vergonha de ser quem é. E, nesse processo de reagendar novas formas de ser governo, nada melhor que espalhar o germe do autoritarismo que está latente em boa parte das gentes. Para isso tem a Globo, a Record, a Band, a Folha e toda a sorte de seguidores.

A mão dura, quando é para ser usada em favor dos pobres, não serve. Aí, quem a usa é acusado de louco, ditador e outros quetais, como foram alcunhados Fidel, Che, Chávez. Hoje, vimos nas ruas, a elite e a classe média – em sua maioria – babando, pedindo o regime militar. A favor de quem? Dos pobres é que não. Querem o autoritarismo para garantir privilégios. Mal sabem que quando se acorda o monstro, ele pode pisar em qualquer um.

*Elaine Tavares é jornalista.

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