A crise é sistematicamente repassada à população de baixa renda, frágil e indefesa.
Por Alfredo J. Gonçalves *
Em 1957, o sociólogo francês Roger Bastide publicou o livro Brésil, terre des contrates. A obra revelava forte sintonia com outros estudiosos da história brasileira, tais como Caio P. Júnior (História econômica do Brasil, 1945), Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala, 1933), Raymundo Faoro (Os Donos do Poder, 1958), Sérgio B. de Holanda (Raízes do Brasil, 1936), Celso Furtado (Formação econômica do Brasil, 1959), Darcy Ribeiro (O processo civilizatório, etapas da evolução sociocultural, 1968)...
Um retrato vivo e recente de tais contrastes: de acordo com os dados mais recentes, verifica-se um recuo significativo da produção de veículos no Brasil em 2015. Economistas afirmam que a queda do setor automobilístico responde por cerca de um terço da retração econômica brasileira no ano em curso. As projeções da Anfevea (Associação dos Fabricantes de Veículos Automotores), a qual representa as Montadoras, tampouco estão animadas. Segundo a entidade, a produção neste ano deve girar em torno de 2.585 milhões de veículos, 17,8% a menos que em 2014.
Em contraste com o setor automobilístico em geral, o mercado de carros de luxo em particular, deve crescer 18% neste ano de 2015. Três das Montadoras mais importantes instaladas no país – Audi, BMW e Mercedes-Benz – somam juntas a comercialização de 13.936 veículos, de janeiro a abril do corrente ano, em comparação com os 11.807 no mesmo período do ano passado. Contradições do mesmo teor, com toda certeza, poderiam ser encontradas no mercado imobiliário, nas compras e vendas relativas à alimentação e ao vestuário ou no setor das finanças. Na contramão da crise, sempre há quem tenha bons motivos para festejar!
Semelhantes contrastes no decorrer dos séculos, desde a Colônia até a República, passando pelo Império, revelam que o lema positivista da bandeira brasileira – ordem e progresso – na verdade mostra um tipo de crescimento anômalo e viciado. A tal ponto que os tempos de “vacas magras” para muitos se convertam em tempos de “vacas gordas” para poucos. Numa palavra, um crescimento seletivo, marcado e visivelmente seletivo. Tende a favorecer o pico da pirâmide social, em detrimento dos que habitam a base da mesma. Não é novidade para ninguém que, em tempos de crise, os bancos Bradesco, Itaú, Santander, HSBC etc., em geral acumulam lucros extraordinários. A crise parece ser terreno fértil para a especulação financeira, ao mesmo tempo que joga ao desemprego e à rua milhões de trabalhadores com suas famílias.
Resulta que expressões como recessão econômica, PIB negativo, queda da bolsa de valores, alta do dólar, sobe e desce da taxa de câmbio – costumam ser vistos como sinônimos de crise. Mas, crise para quem? Certamente não para a minoria de 10% (porcentagem simbólica) que ocupa o extrato superior dos milionáros e bilionários brasileiros ou estrangeiros no país. Até porque, normalmente, os governos se dispõem a “salvar-lhes” as negociatas, com o pretexto de garantir a estabilidade da economia. Ao mesmo tempo, porém, “abandona a si mesma” a imensa maioria dos 90% (porcentagem simbólica) que fazem parte dos extratos inferiores. Daí o círculo vicioso e perverso de uma política econômica que cria “ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”, como alertava o então Papa João Paulo II em meados da década de 1970, numa visita ao México. A crise é sistematicamente repassada à população de baixa renda, frágil e indefesa.
Com isso, conclui-se que os “indicadores sociais” (trabalho e salário, saúde, habitação, educação, transporte público, segurança, saneamento básico, etc), e não os “indicadores econômicos” (PIB, bolsa de valores, valor do dólar, taxa de câmbio,etc.), devem consistir nos verdadeiros parâmetros para medir o grau e o alcance da crise.