Armadilhas da sensibilidade

As pessoas semelhantes às flores e caramujos, exibindo uma aparente delicadeza, na verdade sofrem em suas entranhas mais profundas e recônditas. Tudo engolem, mas nem tudo são capazes de digerir.

Por Alfredo J. Gonçalves *

A sensibilidade tem suas armadilhas. Para alguns, diante da menor ameaça de fora, a sensibilidade leva a uma reação semelhante à de certas flores ou à do caramujo. Retraem-se, encerram-se dentro da própria casa e fecham hermeticamente todas as portas e janelas. Interrompem qualquer contato com o exterior. Outros, ao contrário, quando tocados pelo dedo visível ou invisível da ameaça, reagem como a serpente ou o galo de briga. Em um salto põem-se “de pé”, desferem imediatamente o bote, cuspindo seu veneno letal. Parecem molas comprimidas que, ao menor contato, disparam seu mecanismo de expansão sem limites.

Os primeiros, dentro da casa cerrada, tendem a ruminar as ofensas, injúrias ou ironias; as palavras, olhares ou insinuações oblíquas; os golpes sofridos no vaivém das relações interpessoais; enfim, todo tipo de agressão implícita ou explícita. Ensimesmados, remoem tudo isso lenta e surdamente, sem emitir um “ai” de reprovação. Contraem-se como cordeiros tímidos e indefesos, mas, no fundo de si mesmos não raro destilam o veneno da raiva muda e impotente, da amargura e de uma possível vingança. Tudo isso, ao acumular-se, tende a apodrecer, destilando um gás fétido e venenoso. A vingança, por exemplo, chega a ser silenciosamente arquitetada, com diálogos fictícios cheios de ardor e rancor, ríspidos, vívidos e violentos, os quais, no entanto, jamais serão verbalizados. Falta-lhes a coragem para atacar: temendo arranhar a própria imagem, preferem a aparência enganosa de “pessoas pacíficas”. Em vez de falar e queixar-se no ato do golpe sofrido, costumam engolir em seco não só a própria ameaça, mas também o tiroteio raivoso e interior das palavras não ditas.

Os outros, em lugar disso, sempre atentos e alertas ao perigo, desenvolvem a tendência do bíblico “olho por olho, dente por dente” ou do popular “deu, levou”! De imediato, respondem à agressividade com o dedo e a palavra em riste, dispostos sempre ao enfrentamento e à luta. Neste caso as ameaças, longe de os amedrontar ou inibir-lhes o brio, estimulam ao desafio e à disputa. A exemplo dos peixes, entrevêm nesse campo da disputa, do combate cara a cara, a água em que estão acostumados a nadar. Trata-se de uma oportunidade para exibir a aparente superioridade. Cada golpe recebido comporta uma reação à altura, isto é, se possível superior ao ataque. Vale justamente a máxima do futebol: a melhor defesa é o ataque. Antecipam este para poupar aquela. Jamais lhes falta unhas e dentes afiados como navalha, uma língua e um raciocínio ágeis e prontos para uma reação rápida e eficaz. Tampouco lhes falta um arsenal de “armas” inimaginável para os primeiros que, emudecidos, baixam os olhos e a cabeça, sem saber o que dizer.

sensibilidadeborboletaAs pessoas semelhantes às flores e caramujos, exibindo uma aparente delicadeza, na verdade sofrem em suas entranhas mais profundas e recônditas. Tudo engolem, mas nem tudo são capazes de digerir. Cultivam mágoa sobre mágoa, acumulam ressentimento sobre ressentimento – o que impossibilita qualquer diálogo transparente. A longo prazo, tal sofrimento pode desenvolver uma atitude permanente de autodefesa. Em casos doentios ou patológicos, costumam construir um escudo que os isola do grupo, da relação ou de um convívio sadio e saudável. Levantam uma barreira preventiva a todo e qualquer tipo de comunicação. Revelam-se (ou se tornam) extremamente introvertidos e avessos ao mínimo contato. Criam muros e evitam pontes! Pior que isso, porém, é que a mágoa e o ressentimento silenciosa e longamente cultivados – cozinhados em fogo lento – podem desencadear tempestades histéricas e imprevisíveis. As nuvens quando se adensam sobre o céu escuro provocam raios e trovões, as águas e os ventos, quando demasiadamente represadas, rompem os diques e tudo devastam com inesperadas tormentas e avalanches.

As pessoas que se assemelham a serpentes ou galos de briga, por outro lado, tendem a ver em tudo e em todos um risco de ameaça. Nas situações mais diversas, comparecem sempre armadas, com a palavra pontiaguda e vivaz, feito faca afiada. “Não levam desaforo para casa”, diz-se popularmente. Devem ter a última palavra, desferir o último golpe, permanecer sempre “por cima”. Também aqui o diálogo aberto e franco torna-se impossível. A razão é simples: tais pessoas trazem sempre a resposta pronta, mesmo antes de a pergunta ser formulada. Cortam ao meio a pergunta, achando-a impertinente e inoportuna. São incapazes de ouvir os argumentos do interlocutor porque consideram “perda de tempo”. Vão logo à solução final, definitiva e na maioria das vezes tempestiva. Agem de forma impulsiva, impetuosa, instintiva! Esse modo às vezes brutal e imediatista de enfrentar as situações adversas, por outro lado, revela em não poucos casos uma fraqueza oculta. O grito, a mão armada e a predisposição à agressividade, em lugar de expressar segurança, costumam ser sinais inequívocos de debilidade travestida de aparente fortaleza. Para encobrir debilidades inconfessadas e inconfessáveis, estão sempre dispostos a erguer a voz e os punhos.

Entre uma e outra dessas tendências extremas, entretanto, existe uma via de meio que procura fugir aos dois polos de tensão. Em lugar da introspecção mórbida, por uma parte, ou da agressividade sempre à flor da pele, por outra, predomina neste caso o sentido da escuta atenta e ativa, da compreensão e da harmonia. Sobre esse terreno firme mas maleável, as tensões pouco a pouco se neutralizam, os conflitos se diluem no silêncio de quem é capaz de ouvir. Nasce e cresce, com certa naturalidade, uma propensão ao entendimento. A sabedoria de ouvir com atenção toma o lugar do ressentimento ou da resposta pronta, imediata e quase sempre inadequada, abrindo espaço a uma simpatia recíproca, flexível e até mesmo amigável.

Nesta, a convivência pacífica prevalece sobre a conflitividade latente e não raro gratuita. Constrói-se um caminho que, não obstante as diferenças e obstáculos, pode ser percorrido de forma recíproca e enriquecedora. Em vez de privilegiar aquilo que é distinto, divergente e estranho, confere-se maior importância àquilo que é convergente. Adquire relevância não o que nos separa, e sim o que nos aproxima. A disposição prévia ao intercâmbio substitui o contraste e as arestas pontiagudas. Um clima propenso à fraternidade e à solidariedade tempera as palavras e os silêncios, os olhares e os gestos. Descortina-se, com isso, um novo horizonte de diálogo, onde a verdade, longe de exibir dogmas, moralismos e leis rígidas, torna-se uma busca comum. Não está num ou no outro lado, mas no diálogo e no próprio caminho.

Além disso, as duas caricaturas descritas mais acima representam, como vimos, tendências extremas. A realidade é, ao mesmo tempo, bem mais rica, tortuosa e complexa: entre um polo e outro do espectro, existe uma infinidade de posições intermediárias, mais próximas de um extremo, e mais distantes do outro. Por outro lado, convém não esquecer que cada pessoa em particular, em em situações e circunstâncias particulares, possui algo de caramujo e algo de serpente, avizinhando-se de um ou outro lado do espectro. “Virtus in medium est” (a virtude está no meio) – diria o velho Aristóteles. Fica de pé a pergunta: entre o caramujo, que ao menor toque esconde-se para fugir ao confronto, e a serpente, sempre pronta a saltar sobre o adversário – como cultivar uma relação equilibrada e harmoniosa, sem que nenhum dos dois tenha necessariamente de “perder” ou “ganhar”? Por que a história sempre deve apontar “derrotados” de um lado, e “vencedores”, de outro?

Eis o grande desafio. Na sociedade pós-moderna ou pós-industrial, cada vez mais tropeçamos com os “mil rostos” do outro. A crescente mobilidade humana, com deslocamentos humanos de massa em todas as direções, de um lado, e a revolução das comunicações, da informática e dos transportes, de outro, fazem do globo uma pequena aldeia. O pluralismo multiétnico e a mistura de povos, culturas, religiões e visões de mundo é hoje uma realidade irreversível. O outro, o estranho e o diferente batem continuamente à nossa porta. Por isso, torna-se pertinente a pergunta que dá o título a um dos livros de Alain Touraine: podemos viver juntos?

*Alfredo J. Gonçalves, cs, é Conselheiro e Vigário Geral dos missionários de São Carlos.

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