Políticas para mulheres avançam em âmbito federal, mas barram no Congresso

Por Marcela Belchior

Atuando como lideranças na agroecologia e à frente de lutas políticas e sociais históricas, as mulheres brasileiras ainda estão longe de contarem com equidade nas políticas públicas do país. Levantando a bandeira de questões que envolvem as lutas femininas e feministas, nos próximos dias 11 e 12 de agosto, milhares de mulheres estarão reunidas em Brasília, capital federal, na 5ª Marcha das Margaridas.

Para discutir o atual contexto do movimento e os avanços na garantia e ampliação dos direitos das mulheres, a Adital entrevistou Alessandra Lunas, secretária das Mulheres Trabalhadoras Rurais da Contag [Confederação dos/as Trabalhadores/as da Agricultura] e coordenadora geral da Marcha das Margaridas 2015. Alessandra afirma que o movimento mantém diálogo com o governo federal sobre a necessidade da destinação de recursos para políticas públicas específicas dirigidas à população feminina.

Essas conquistas, porém, esbarram num Congresso Nacional retrógrado e imaturo no que tange às discussões de gênero. Veem-se impedidas de se estender, ainda, pelos estados e municípios, despreparados para atender às demandas das mulheres quanto ao mercado de trabalho, saúde feminina, segurança alimentar, entre outras questões.

ADITAL - A Marcha das Margaridas é uma ação estratégica de organização e mobilização dos movimentos femininos e feministas no Brasil. Como está esta luta hoje? O movimento social tem encontrado caminhos de diálogo e fortalecimento entre si e com outras instâncias da sociedade brasileira?

Alessandra Lunas - Nós estamos numa conjuntura bem desafiadora. Vemos, hoje, a necessidade de as mulheres estarem se posicionando coletivamente, de forma unitária, extremamente necessária. Não só pelas questões da luta da mulher rural como um todo; há questões que vão além e que trazem a necessidade de as mulheres fazerem a luta conjuntamente. Um exemplo é a luta contra a violência contra as mulheres. A dimensão disso ainda é muito grande para que as mulheres vítimas de violência possam ter um atendimento adequado e uma resposta para a sua necessidade.

O Plano Nacional de Educação já foi uma derrota no que diz respeito à necessidade das escolas discutirem questões de genro. Foi uma ação orquestrada da bancada conservadora. Para a gente, é um retrocesso na sociedade ao extremo. Houve também uma derrota das mulheres no Congresso Nacional, na Câmara dos Deputados, com relação à minirreforma política, onde a gente tentava passar algo mais considerável para a participação das mulheres na política.

ADITAL - Quais as diferenças conjunturais dentro do movimento desde que foi realizada a primeira Marcha das Margaridas, no ano de 2000?

AL - São muitos os desafios que a gente costuma olhar, inclusive não só de 200 para cá, quando a gente se organizou para a primeira marcha como resultado de um diálogo muito forte. Foram mais de 20 anos de luta internamente para que a gente conseguisse ganhar o direito à filiação dos nossos sindicatos. Foi um processo primeiro de construção internamente no movimento sindical.

Depois, pensamos que precisávamos pautar as demandas públicas, não só as lutas com os companheiros. A Marcha das Margaridas nasceu num momento desafiador, num governo neoliberal, exigindo a reparação pelos crimes cometidos, homenageando Margarida Alves por um crime da ditadura, um dos nomes da lista da memória camponesa.

Foi um momento bem desafiador. Tanto é que a Marcha das Margaridas de 2000 nunca obteve uma resposta do governo, sequer fomos recebidas pelo governo. Em 2003, já foi outra conjuntura, com o governo Lula [Luiz Inácio Lula da Silva, presidente brasileiro de 2003 a 2010], uma conquista da classe trabalhadora. Surgiram várias políticas de recorte para as mulheres. Houve o de 2007 e, depois, com o governo de Dilma [Rousseff, presidente da República do Brasil desde 2011], de mulher para mulher.

E, agora, a necessidade de trazer para a Dilma também a necessidade de pautar marchas municipais e estaduais. Em cada instância, há um diálogo diferenciado. Talvez um dos maiores desafios, hoje, para as conquistas que nós tivemos e que realmente aconteçam na vida das mulheres.

Das eleições [de 2014] para cá tivemos muitos retrocessos. Tivemos muitos estados que tinham secretarias específicas para as mulheres e que foram extintas e criadas uma mesma com vários outros órgãos juntos. Isto gera uma dificuldade no que diz respeito às políticas para as mulheres, já que são pautas diferenciadas. Em nível nacional, também com a responsabilidade de trazer para a Dilma um balanço dos últimos quatro anos, com a gestão de problemas e quais as nossas expectativas para as mulheres.

ADITAL - As decisões sobre a destinação dos recursos públicos do Estado brasileiro têm levado em conta as desigualdades de gênero no país?

AL - Em algumas políticas, sim. Algumas começaram a fazer esse recorte no enfrentamento da violência, com prioridade para as mulheres. Outro exemplo é o último Plano Safra, que é a política pública de paridade na assistência técnica. Têm várias políticas que começaram. São conquistas nossas esse recorte diferenciado de políticas públicas. No entanto, o desafio maior é que, nos estados e municípios, não haja o mesmo nível de prioridade para fazer isso acontecer.

ADITAL - Em quais âmbitos isso pode ser mais visivelmente observado (mercado de trabalho, saúde reprodutiva etc.)?

AL - Na verdade, no que diz respeito às mulheres no meio rural, algumas políticas começaram a acontecer. A política de documentação da mulher trabalhadora rural é uma conquista da Marcha e que, hoje, tem uma designação direta dos recursos. Tanto é que a gente comemora mais de 22 milhões de documentos. Isso mostrava a necessidade de um programa específico.

Outro ponto é que mais de 70% dos títulos de terras no país estão em nome de mulheres, de maneira compartilhada. Isto faz um diferencial grande na vida delas. Não adianta fazer um investimento se não se dá meios que garantam. Um documento da terra, um documento pessoal é o que vai dar condição de ela depois acessar o crédito.

ADITAL - O que é necessário para promover uma redistribuição econômico-social que atenda às necessidades do enfrentamento das desigualdades existentes hoje no Brasil?

AL - A necessidade é revisar o pacto federativo. Entendemos que precisa haver uma política para as mulheres, em que haja uma certa obrigatoriedade de inclusão, senão o recurso não acontece. As creches, por exemplo, são uma luta histórica. Elas precisam se adaptar às necessidades das mulheres e, hoje, isto não acontece. Assim como as delegacias das mulheres: hoje, você conta nos dedos onde tem uma. Como é que a gente vai fazer um enfrentamento para a conquista da autonomia das mulheres se quem precisa executar isso na ponta não está preocupado?

ADITAL - E com relação à saúde reprodutiva da mulher?

AL - Estamos trazendo como pauta central a necessidade da retomada da Política Nacional de Saúde da Mulher. A gente tem visto que avançou bastante o apoio a uma política materna, com o pré-natal e os atendimentos. Mas entendemos que é preciso colocar mais força no que diz respeito à própria saúde da mulher. Os índices de câncer no colo do útero continuam assustadores. Justamente, porque não se consegue ter acesso a todos os atendimentos que deveria ter.

ADITAL - Juntamente com outros setores dos movimentos sociais, o movimento de mulheres apoiou a reeleição de Dilma Rousseff à Presidência da República, em 2014. Após sete meses de governo, que perspectivas a gestão têm sinalizado e/ou efetivado na garantia dos direitos e ampliação das conquistas femininas e feministas?

AL - Esses passos a serem dados são extremamente desafiadores porque muito depende de um Congresso Nacional que, infelizmente, está tão conservador e retrógrado. Acho que a gente não teve um Parlamento assim nem na época da ditadura. É assustadora a forma como a bancada conservadora vem atuando. Muitas dessas políticas precisariam passar pelo Congresso para dar um passo maior.

No que diz respeito ao diálogo com o governo federal, temos conseguido conversar, trazer para a mesa, fazer alguns marcos, ter prioridade com os ministérios. Um exemplo é a Casa da Mulher Brasileira. Há dois anos, os recursos estão disponíveis, esperando que os estados resolvam questões de terrenos e outras. O recurso está lá, posto, mas há dificuldade em fazer acontecer. Como ele está destinado à construção de casas, se a gente for nesse ritmo... A expectativa é que até o fim do mandato da Dilma a gente tenha entregue as 27 casas.

ADITAL - O Congresso Nacional, de perfil amplamente conservador, tem imposto graves retrocessos às lutas dos movimentos sociais nesses primeiros seis meses de legislatura, atingindo, diretamente, a democracia do Estado brasileiro. A Marcha das Margaridas cita, em sua Pauta 2015, exemplos de propostas que tratam da questão agrária, que podem agravar a situação de violência e injustiça no campo; ou até alterações negativas à Lei Maria da Penha. Quais seriam esses projetos?

AL - Uma coisa que preocupa muito é essa tentativa do Congresso Nacional de que a demarcação das terras indígenas só aconteçam se aprovadas pelo Congresso Nacional. A gente sabe que uma investida dessa não para por aí. Achamos que essa questão das terras indígenas e várias outras podem sofrer um retrocesso. Você pode desencadear um processo que, para a reforma agrária, se já é difícil falar do tema, agora piorou. Quando o Congresso foca no campo, é com a tentativa de colocar forças para que o capital estrangeiro possa comprar as terras.

ADITAL - Como reagir aos riscos de retrocesso?

AL - A gente tem feito várias lutas, tem gritado, tentado se organizar na ponta. Os conflitos têm tido um debate muito forte junto à terra legal, para que ela seja destinada à agricultura familiar. São lutas homéricas. Não é fácil. Não é à toa que, nos últimos anos, os conflitos de terra têm sido algo bastante assustador em vários estados.

ADITAL - A Marcha também alerta que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres também vêm sendo ameaçados, em contra-ataque a direitos conquistados. Como isso se dá?

AL - A ameaça maior é essa visão conservadora. Falando em relações de gênero, está todo mundo impulsionando lutas. Mas os parlamentares do Congresso Nacional têm uma dificuldade de leitura. Para eles, discutir relação de gênero é incentivar as relações homoafetivas. Para se ter uma ideia, desde abril de 2014, o Projeto de Lei que resulta da CPMI da Violência [Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher], que o próprio Congresso Nacional fez, em 2013, está pronto para ir a plenário e não foi por essa relação.

ADITAL - Qual a crítica, a partir de uma ideologia feminista, ao atual modelo hegemônico de desenvolvimento no Brasil?

AL - A crítica maior, na verdade, se mostra na necessidade de uma reforma política séria, que não se está fazendo dentro do Congresso. A construção da igualdade precisa ser tomada como uma política de Estado, não como uma luta somente das mulheres. Precisa haver uma tomada de decisão efetiva. As mulheres estão tendo acesso aos espaços de poder. No processo eleitoral, uma mulher que decide enfrentar uma candidatura pra valer (não como bode expiatório, quando o camarada não consegue mais ser eleito e coloca a esposa), muitas ficam falando sozinhas, porque não têm garantias e condições iguais para fazerem o processo. A gente precisa de mudanças mais sérias. É nas escolas que as mulheres sofrem as primeiras violências de gênero.

ADITAL - Quais são, hoje, as causas estruturantes da insegurança alimentar e nutricional no país? Quais as especificidades dessa questão quando se referem à população feminina?

AL - É um dos grandes desafios. A Marcha trata disso como questão central. É exatamente por um desenvolvimento sustentável, com democracia, liberdade e justiça, que se trata a segurança alimentar. A segurança alimentar não é só um problema do campo, ela une campo e cidade. É pôr na mesa o alimento que está chegando, sob quais condições, saber o que não é acontecimento da reforma agrária, que quanto mais terras concentradas em grupos empresariais, mais alta nos preços dos alimentos. Isso vem como eixo central. São temas necessários para que a gente possa tanto quanto possível discutir as relações de gênero, a necessidade de unificação de produtos, de novos consumidores, pelo direito a uma alimentação saudável.

O que a gente tem trazido é, principalmente, a necessidade de reconhecer o papel das mulheres nesse processo de garantia da segurança alimentar. As mulheres têm sido guardiãs de sementes, de plantas. Muitas vezes, aquele quintal, que está numa casa, parece um jardim botânico. Esse papel da produção de mulheres não é só para a segurança alimentar das famílias, mas também para o excedente que vai para a mesa das pessoas. É preciso que as políticas públicas garantam esse diferencial das mulheres na agroecologia. A gente entende que é um caminho.

ADITAL - Que propostas as mulheres do campo, das florestas e das águas defendem, atualmente, na construção de um desenvolvimento rural voltado para a sustentabilidade da vida humana e do meio ambiente?

AL - Uma das pautas centrais é a necessidade de se reconhecer, se apoiar o debate em torno do uso de transgênicos e agrotóxicos. É uma pauta bem ousada, que envolvem direitos, especialmente dos que vivem no campo. A gente tem visto, na televisão, a utilização de agrotóxicos que passam de escolas e envenenam. A gente está vendo um grito de toda a sociedade pelo direito a uma alimentação saudável. Combater, principalmente, o uso de agrotóxicos no país é uma das grandes questões. Precisamos ter uma tomada de decisão mais efetiva. Banir do país alguns agrotóxicos que já foram banidos em outros países; que o Brasil continua utilizando, como se não soubesse das consequências.

ADITAL - De que maneira essas ações poderão incidir no cotidiano dessas mulheres e suas comunidades?

AL - Citando um exemplo bem concreto: Brejo da Madre Deus, em Pernambuco, é um município onde a gente vê uma mudança significativa. Compra 100% da merenda escolar da agricultura familiar, que é também 100% orgânico. Por uma decisão política. Isso incide, de maneira muito prática, na vida da população. Não diz respeito somente à vida delas, mas à sociedade como um todo. E quem têm estado no centro desse enfrentamento são as mulheres. Elas são quem têm defendido mais essa alternativa.

 

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