Por Raúl Juárez com informações de IHU Online
Frei Betto é frade dominicano brasileiro, é teólogo, romancista, jornalista, pedagogo. Grande conhecedor da Revolução Cubana, durante anos favoreceu a unidade latino-americana, com atividades solidárias e de mútuo intercâmbio entre os povos latino-americanos. Nos anos 1980, começou a assessorar alguns governos de países socialistas, como Cuba, Tchecoslováquia, China,União Soviética, Nicaráguae Polônia acerca das relações entre a Igreja Católica e o Estado. No Brasil, sobreviveu a duas detenções ilegais e torturas durante a ditadura militar no país. Assessorou diversos movimentos, entre os quais estão as CEBs [Comunidades Eclesiais de Base], o Movimento Fé e Política, e las Pastoral Operária. Justamente, é aí e estando inserido nas periferias de São Paulo, no cordão industrial de São Bernardo do Campo, que Frei Betto acompahou o surgimento de novos líderes políticos, partindo da base sindical, que foram se organizando no que logo se cristalizou, primeiramente, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT), de onde saiu o líder emblemático Luiz Inácio da Silva. Frei Betto fez parte do primeiro governo de Lula, como assessor da Presidência, e como executivo e assessor do Programa "Fome Zero", principal programa social na primeira etapa de Lula no poder. Renunciou logo por ter opiniões diferentes de membros do Poder Executivo.
Estimado Betto, obrigado por conceder-nos esta entrevista. A partir do conhecimento que você tem de Cuba, de seus processos, das etapas que a Revolução foi vivendo, o que poderia significar, neste momento, a visita de Francisco à ilha?
Frei Betto: Assim como o Brasil, Cuba tem o privilégio de ter recebido, em períodos relativamente curtos, as visitas de três papas: João Paulo II, Bento XVI, e, agora, Francisco. A diferença é que o Brasil é considerado o país com o maior número de católicos do mundo, ao passo que Cuba é uma nação socialista e apenas 5% dos quase 12 milhões de habitantes declaram-se católicos.
As visitas papais a Cuba encolerizaram profundamente a Casa Branca. É do conhecimento de todos que, durante a preparação da visita de João Paulo II, Bush fez todo tipo de pressão para frustrar essa visita, para que ela não se realizasse. Ao não conseguir isso, tentou influenciar o Papa para que, quando chegasse a Havana, condenasse o socialismo e a Revolução Centro-Americana. Contrariamente, João Paulo II não somente elogiou as grandes conquistas sociais da Revolução, mas também se converteu em um grande amigo pessoal de Fidel Castro.
Atualmente, as relações entre a Igreja Católica e o governo cubano são excelentes. No passado, houve muitos atritos. Apesar disso, nenhuma igreja foi fechada pela Revolução e nenhum padre foi fuzilado. E os bispos de Cuba condenaram, em numerosas ocasiões, o bloqueio criminoso imposto ao país pelos Estados Unidos da América do Norte.
O que se poderia esperar dessa visita do Papa a Cuba?
Como todos sabem, Francisco teve um papel muito importante na reaproximação dos Estados Unidos com Cuba. O restabelecimento das relações diplomáticas já foi realizado. Faltam ainda a suspensão do bloqueio e a devolução a Cuba da base naval de Guantánamo, utilizada pelos norte-americanos como prisão ilegal de supostos terroristas, sequestrados mundo afora pelas forças de segurança dos Estados Unidos. (Diz-se ilegal neste contexto porque muitos dos detidos em Guantánamo não foram condenados, nem foram submetidos a um julgamento legal e são cidadãos de outros países. Nota do entrevistador).
O destino da viagem papal, no fim de setembro próximo, era, originalmente, os Estados Unidos. Mas o Papa, deliberadamente, quis passar anteriormente por Cuba, onde ficará três dias.
Entre os cubanos dissidentes há sinais de não aceitação da atuação do Papa Francisco, sobretudo, no que diz respeito à influência que teve na reabertura do processo de normalização das relações entre os Estados Unidos e Cuba. De que modo estas críticas podem influenciar na opinião pública dos moradores da ilha?
Não existe a menor possibilidade de que estes dissidentes encontrem eco dentro da ilha. A população cubana em sua maioria é muito religiosa, embora, grande parte dela não seja oficialmente católica. O que predomina entre eles é o sincretismo, isto é, a mistura da tradição cristã com religiões de origem africana, trazidas pelos antigos escravos, como acontece no Estado brasileiro da Bahia.
Para os cubanos anticastristas e os fundamentalistas da direita norte-americana, a retomada das relações entre Estados Unidos e Cuba e o fim do bloqueio constituem um duríssimo golpe. Automaticamente, passam a ser oficialmente criminosos, caso se oponham a estas relações. Além disso, agora, os turistas estadunidenses conhecerão, com seus próprios olhos, a realidade cubana e poderão perceber quanta mentira foi divulgada pelos meios de comunicação a serviço dos interesses capitalistas com respeito à ilha, aonde não se veem meninos de rua nem famílias sem teto vivendo debaixo de pontes.
O modelo da Revolução parece mostrar a necessidade de renovação, de atualização em muitos aspectos, sobretudo, na questão econômica ou em termos de participação popular. É assim? Em caso positivo, quais seriam, na sua opinião, as transformações mais importantes a realizar neste momento?
Cuba é o único país socialista da história do Ocidente. E, na minha opinião, o único país verdadeiramente socialista no mundo. Mas asfixiado pela globalizada hegemonia capitalista, e sem contar agora com o apoio da ex-União Soviética, Cuba vive em uma situação economicamente muito difícil, agravada mais ainda pelo bloqueio made in USA...
Deve-se a isso a necessidade de promover reformas estruturais no país, abrir-se aos investimentos estrangeiros, mas sempre como forma de melhorar o socialismo, e não de permitir que o país se transforme em capitalista. Os cubanos não querem que o futuro de Cuba seja o que é, hoje, o presente de Honduras ou da Guatemala.
O papel das igrejas foi importante, embora diverso. Por exemplo, a Igreja Batista é muito mais próxima do projeto revolucionário, é bem vista pelo governo cubano em geral. Qual é, na sua opinião, o papel que se deveria esperar da Igreja católica de Cuba?
As igrejas protestantes, embora de origem estadunidense, sempre mantiveram muito boas relações com a Revolução. A Igreja Católica, no início do socialismo, o combateu duramente, aliando-se aos contrarrevolucionários. Felizmente, esta etapa está superada e, hoje, a Igreja Católica exerce um papel preponderante, mediando entre governo e dissidentes, tendo ajudado na libertação de presos políticos.
Atualmente, não há presos políticos em Cuba e o próprio cardeal Jaime Ortega, arcebispo de Havana, faz a defesa de como Cuba respeita os direitos humanos. No entanto, apesar disto, ainda persiste, atualmente, uma forte campanha internacional querendo-nos convencer do contrário.
De acordo com o seu conhecimento, quais são as maiores conquistas da Revolução?
Isto já foi reconhecido devidamente pelos papas que visitaram Cuba; as conquistas nos campos da educação e da saúde. Diria, honestamente, que Cuba é o único país da América Latina que garante à totalidade do conjunto de sua população os três principais direitos humanos: alimentação, saúde e educação.
Papa Francisco tem sido fundamental para a retomada dos diálogos entre Cuba e Estados Unidos.
Os cubanos preferem viver em uma sociedade pobre, sem miséria, de partilha dos bens essenciais próprios de uma vida digna, a viver em uma sociedade marcada pela desigualdade, na qual alguns poucos têm muito e muitos quase nada.
Conhecendo pessoalmente Fidel Castro há muitos anos, como um irmão, o que pode o Papa Francisco esperar em sua visita por parte do governo cubano?
O reconhecimento do seu protagonismo pela paz no mundo, pelo combate às desigualdades sociais, pelas denúncias das causas da opressão, pela defesa dos mais pobres e pela preservação ambiental, manifestada, recentemente, na encíclica Louvado sejas (Laudato si'), o mais importante documento socioambiental de todos os tempos.
É muito conhecido o conceito de cooperação internacional que o modelo cubano praticou, como um modo de solidariedade entre países irmãos. Poderia contar-nos um pouco mais em que consiste a novidade deste estilo de ajuda mútua entre países?
A Cuba socialista sempre compartilhou o pouco que possui com os pobres do mundo. Assim, por exemplo, participou da Guerra de Angola, favoreceu a independência da Namíbia, o fim do Apartheid na África do Sul. Hoje, distribui médicos e professores em mais de 100 países do mundo, incluindo o Brasil.
O símbolo do bloqueio econômico sofrido por Cuba, além de expressar a prepotência dos Estados Unidos e seus sócios, constituiu também uma forma muito clara de fazer ver que um país muito pobre pode sobreviver a este bloqueio de modo engenhoso, e pode dizer ‘não' a qualquer pretensão de imposição. É um símbolo de que não se pode ter medo de dizer NÃO às imposições de todo tipo e que, embora com dificuldades, pode seguir em frente. Que reflexão lhe surge como aprendizagem para todos nós ao recordar toda esta parte da história que está chegando ao seu fim?
Ainda não chegou ao seu fim (o bloqueio)... Corresponde ao Congresso dos Estados Unidos anular o bloqueio. Eu espero que faça isso antes que o Papa desembarque em Havana, no próximo dia 19 de setembro.
O próprio fato de que Obama [Barack Obama, presidente dos EUA], no dia 17 de setembro de 2014, tenha reconhecido, publicamente, que o "bloqueio fracassou", representa um elogio à resistência do povo cubano. É como se o próprio presidente dos Estados Unidos, a mais poderosa potência bélica e econômica da história da humanidade, admitisse, publicamente, ter sido derrotada pelo povo pobre do Vietnã.
A abertura ao contexto mundial por parte da ilha faz sentir dúvidas sobre como a cultura e a sociedade cubana receberão determinados resultados negativos do modelo capitalista, como as drogas entre a juventude ou a desnutrição das classes mais pobres. O que devemos esperar desta nova etapa?
O governo cubano está muito atento a estes riscos, embora esteja consciente de que, com a entrada de turistas dos Estados Unidos, virá um choque entre o tsunami consumista e a austeridade revolucionária... Cuba não quer transformar-se em uma "mini China"... Estão sendo tomadas muitas medidas para evitar a volta do país ao capitalismo e seus defeitos.
Podemos considerar o povo cubano um povo religioso?
Sim. Bastaria ler aquela entrevista que eu fiz com Fidel, em 1985, publicada no livro "Fidel e a religião". Colonizada pelo Cristianismo ibérico, Cuba está marcada em sua religiosidade por raízes africanas. Na ilha, o ateísmo, como crença popular, não deitou raízes, apesar dos esforços realizados nesse sentido pelos soviéticos.
O Papa Francisco espera uma não muito boa recepção por parte dos setores conservadores dos Estados Unidos, sobretudo, pelas últimas condenações ao modelo social-cultural-econômico do sistema neoliberal, que o Papa fez na Laudato si' e em discursos e homilias, feitos em sua última viagem apostólica aos países mais pobres da América do Sul. Quais poderiam ser os principais ataques? De que Francisco poderia ser acusado por parte dos setores mais conservadores?
Tanto a direita dos Estados Unidos como os cristãos fundamentalistas rezam deste modo por Francisco: "Senhor, ilumina-o ou elimina-o...". Francisco não tem nada de ingênuo e sabe que será duramente criticado pelos donos do dinheiro, que provocam genocídios globais. Assim como Jesus, Francisco nada teme. Nem sequer preocupa-se com sua segurança pessoal, como eu mesmo pude constatar em sua viagem ao Brasil, em 2013, para a Jornada Mundial da Juventude, no Rio [de Janeiro], e ao visitá-lo em Roma, em abril de 2014.
Finalmente, descobrimos a importância da simbologia em nossa vida. Com que símbolo ou imagem descreveria esta viagem histórica do Papa Francisco a Cuba e aos Estados Unidos?
Eu diria que esta viagem equivale, em sua visita a Cuba, ao encontro de Jesus com a multidão para compartilhar e repartir pães e peixes; e, em sua etapa pelos Estados Unidos, à entrada de Jesus no Templo para dar chicotadas nos mercadores da fé.