Duas palavras sobre o ano da Vida Consagrada

Alfredo J. Gonçalves *

A metáfora dos porcos-espinhos, do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, pode servir de ponto de partida para duas palavras sobre a Vida Religiosa Consagrada (VRC), neste ano dedicado à mesma. De acordo com o autor, os porcos-espinhos, quando juntos, colocam-se vizinhos uns aos outros o suficiente para aquecer-se reciprocamente, mas mantêm distância bastante para não se ferirem. Ou seja, são capazes de usufruir da energia provocada pela aglomeração, mas incapazes de um confronto mais incisivo, aberto e interpelador.

Emergem duas observações interpretativas. Conforme a primeira, de caráter positivo, os porcos-espinhos evitam delicadamente uma aproximação mais íntima, evitando igualmente ferir os companheiros e, ao mesmo tempo, ferir a si mesmos. A segunda observação, ao invés, interpreta negativamente o comportamento dos animais. Eles absorvem o calor da manada, beneficiando-se uns dos outros, mas fogem de qualquer tipo de relacionamento que possa deixar feridas. Temem as consequências de uma aproximação mais comprometedora.

Transportando a metáfora para o âmbito da Vida Religiosa Consagrada, convém reconhecer de início que todos nós, os seres humanos, pobres mortais, assemelhamo-nos aos porcos-espinhos. A imagem soa um pouco grotesca, é bem verdade, mas cada pessoa possui um lado luminoso, carregado de energia vital, uma espécie de descarga elétrica que transmite calor e afeto, aquece o ambiente, incrementa a solidariedade, a convivência e a alegria cotidianas. Por outro lado, possui de igual forma um lado obscuro, espinhoso, terreno selvagem e desconhecio, onde, soltos e indomáveis, pastam os instintos e interesses, paixões e desejos inconfessados e inconfessáveis. Em tal região estranha e ignota, anjos e demônios se dão as mãos, joio e trigo crescem juntos, misturam-se ambiguamente as flores e os espinhos, o bem e o mal.

O fato é que na VRC, não raro os membros que compõem determinada comunidade se beneficiam individualmente das energias que o conjunto comporta e pode oferecer, mas evitam com cuidado comprometer-se num relacionamento mais íntimo. Relacionamento que exija abertura, escuta, diálogo, perdão, correção fraterna, aceitação da alteridade, renovação e crescimento recíproco... Numa palavra, recusam uma relação que revele não somente o lado bom da energia que está em jogo, da luz e da força, dos valores e contribuições de cada um; mas que exponha, também, sua contraface formada de espinhos, vale dizer, os limites e fraquezas, medos e dúvidas, inquietudes e agressividades, contradições e incongruências...

Em geral, limitam-se a aproveitar as vantagens da vida comunitária, mas sem o esforço de colocar sobre a mesa a face oculta e distorcida das desvantagens. Temendo a nudez própria e alheia, fogem sistematicamente a uma reflexão mais séria sobre estas últimas. Escapam ao empenho coletivo de vencê-las, ao esforço lento, árduo e trabalhoso que, passo a passo, degrau a degrau, possa conduzir a um processo de superação da condição humana de egoísmo, pecado, individualismo. Frente a tais dificuldades, aparentemente insuperáveis, prevalece a inércia da água parada. Acabam por ignorar que águas paradas costumam apodrecer, além de não mover moinhos, de não provocar mudanças históricas, nem abrir novovos horizontes na marcha dos acontecimentos.

O mais grave, contudo, é que em não poucas ocasiões os religiosos ou religiosas, de maneira consciente ou inconsciente, usam o conjunto da comunidade para esconder os própros vícios, falhas e defeitos pessoais (espinhos), como o criminoso que, de forma implícita ou explícita, procura diluir-se e neutralizar-se anonimamente em meio à multidão, para fugir às forças da ordem. Desse modo, e simultaneamente, "escondem-se, defendem-se ou protegem-se" dos vícios, falhas e defeitos (espinhos) dos outros. Instala-se, com isso, uma espécie de cumplicidade corporativista, viciosa e corrupta, onde um acordo tácito ou um véu de mutismo encobre a realidade nua e crua das dificuldades inerentes à vida em cmum. O mesmo pode ocorrer no matrimônio, seja com o casal ou com a família: em lugar de abertura, transparência e diálogo, prevalece o silêncio surdo, mudo e cego da auto-defesa. Ao invés de combater os cupins que corroem a madeira, enverniza-se o imóvel para dar-lhe uma aparência de mercadoria nova, mas enganosa.

E assim muitas vezes as tensões e problemas (espinhos), or comodismo, acabam sendo deixados de lado. Enfrentá-los, de fato, fere o "eu" e o "outro" e fere própria comunidade, acarreta dor e sofrimento, desencadeia discórdias, revela opiniões diferentes, leva a confrontos inevitáveis. Mas pior ainda será deixá-los submersos sob o manto de uma paz aparente, a paz do cemitério, tal como água e azeite justapostos. Uma coexistência pacífica, de mera tolerância. "Fazer verdadeira comunidade", entretanto, vai muito além disso: trata-se de uma tarefa onde é necessário, sim, abordar os espinhos, deixar-se ferir pelas incogruências e incompreensões dos outros, de todos e de cada um. Partilhar, condividir e internalizar as "alegrias e esperanças, tristezas e angústias" de cada um, para usar a expressão de abertura da Gaudium et Spes (nº 1).

Concretamente, é preciso assumir conjuntamente a cruz pessoal e comunitária, debater e dialogar sobre as dificuldades, diferenças e conflitos - com a confiança de que "toda a ferida, cedo ou tarde, há de cicatrizar". A crítica construtiva, fundamentada na caridade evangélica, é como o bisturi do cirugião: fere e rasga o tumor, não para expor a chaga e a carne pútrida em praça pública, aos olhares curiosos, e menos ainda para acelerar a fase terminal da doença, mas única e exclusivamente para curar, para sanar o mal em forma definitiva. O mesmo faz o olhar penerante de Jesus sobre a situação de pecado: penetra o coração e a alma não para acusar e apontar a ferida com o dedo em riste, e sim para perdoar e salvar. Condena o pecado, mas aceita o pecador arrependido.

Vale aqui o alerta de que, se é verdade que a existência humana sobre a face da terra consiste numa "floresta de plantas belas, mas espinhosas", também é certo que ninguém pode atravessá-la sem correr o risco e sofrer alguns arranhões. O importante é manter uma disposição permanente para uma avaliação regular e periódica, uma revisão de vida e, se preciso for, uma mundança de rumo e de método, isto é, uma conversão no sentido bíblico da palavra. A nudez e a transparência, o perdão e o ato de recomeçar são moedas indispensáveis na vida em comum. E o Ano da Vida Consagrada oferece justamente tal oportunidade de renovação. O que significa buscar a identidade primordial, beber da própria fonte do Evangelho e do carisma, para avançar em direção à fronteira e às periferias. É o que na VRC se convencinou chamar de "fidelidade criativa".

Somente assim haverá espaço para a luz da Palavra de Deus e da intuição do Fundador ou Fundadora. Brilho que penetra, ilumina e dissipa as trevas que procuram esconder vírus e vícios, mentiras e erros, comportamentos nocivos e nefastos. Entra em cena, não sem dor, lágrimas e sofrimento, o combate recíproco de depuração e purificação dos valores e antivalores. Nessa encruzilhada, ao mesmo tempo dolorosa e libertadora, abre-se o leque das possiblidades e das opções: o desafio antigo e sempre novo de nascer e renascer, crescer e rvigorar-se. È relevante ter presente, porém, que nascimento e crescimento passam, necessariamente, pelas dores de parto.

* Alfredo J. Gonçalves, CS, é Conselheiro Geral e Vigário dos Missionários de São Carlos.

Fonte: Revista Missões

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