Rótulos Obsoletos

Alfredo J. Gonçalves *

Nas instâncias, escritórios e corredores da administração pública, fala-se de esquerda e direita. Durante os regimes de exceção (especialmente no Cone Sul, América Central e Caribe), os jornalistas classificavam os bispos como progressistas, moderados e conservadores. No campo da arte, a distinção estava entre os vanguardistas do impressionismo e expressionismo, cubismo, dadaísmo e surrealismo contra os convencionais da academia e dos museus. A militância oposisionista ao status quo, no decorrer das tiranias e dos séculos, cunhou os conceitos de revolucionários e classe dominante, proletários e burgueses. No que se refere à prática religiosa, existem os bons e os maus, os fiéis e infiéis, os salvos e os condenados, os de dentro e os de fora da comunidade.

Nas últimas décadas do século XX e início do século XXI, com a chamada transição epocal de paradigma, tudo indica que se borraram essas distinções e definições. Hoje, na economia globalizada e na sociedade contemporânea (moderna ou pós-moderna), o pluralismo cultural e religioso, por um lado, e a porosidade das fronteiras políticas e ideológicas, por outro, mesclam, alternam e confundem os limites. Sem mais, damo-nos conta que um militante "incendiário" na juventude, quando adulto converte-se muitas vezes em um sisudo e sensato "bombeiro". Não poucos artistas de vanguarda, no fundo, viviam à sombra (ou às custas) de burgueses pródigos e exóticos, que tinham suficiente dinheiro para consumir as obras que combatiam sua própria classe. Nos dois lados do Oceano Atlântico, floresceu uma espécie de mecenato moderno!

Boa safra de revolucionários que enfrentaram os tempos da ditadura militar assumiram depois um punhado de cargos nos governos democráticos, os quais, a bem da verdade, seguiam sendo capatazes (ou cúmplices?) do capital financeiro e neoliberal. Quanto ao universo plural, complexo e diversificado da religião, boa parte dos fiéis (ou inféis?) transita e circula sem escrúpulos entre as mais diversas igrejas e movimentos confessionais autônomos. Em busca de algo autêntico e verdadeiro, faz experimentos aqui e ali, numa espécie de religiosidade self service, onde cada um escolhe o próprio cardápio com os ingredientes de um vasto menu no amplo "restaurante da fé". Os padres, pastores e líderes religiosos, por sua vez, parecem aturdidos e perplexos, procurando, cada um a seu modo e a todo custo, defender as próprias ovelhas dos lobos que rondam perigosamente o rebanho, com uivos de proselitismo.

De tudo isso resulta que a convivência diária com o "outro, estrangeiro e diferente" (real ou virtual) desencadeia um conflito duplo e aparentemente contraditório. De um lado, há uma tendência ao acirramento das tensões éticas e étnicas, políticas, ideológicas e religiosas. A defesa das identidades primordiais em alguns lugares ganha força redobrada. Parece a chocar-se frontalmente com o processo intensivo e extensivo da globalização. A via percorrida por este, aliás, costuma ser acidentada: jamais é linear e tampouco irreversível. De outro lado, fronteiras e diferenças tradicionalmente rígidas e precisas tendem a flexibilizar-se e, em casos extremos, a serem simplesmente eliminadas, em particular onde a atividade do comércio e os fluxos de migração colocam as pessoas em contatos cotidianos vivos, dinâmicos e ativos.

Algo mais profundo vem à tona. Emerge por tada parte a consciência de que a fronteira entre o bem e o mal, os progressistas e conservadores, os vaguardistas e convencionais, os revolucionários e burgueses, na verdade, passa pelo interior da alma humana. O terreno ambíguo do coração, numa tensão latente e vívida, abriga os dois pólos do espectro. O que quer dizer que tal fronteira passa, igualmente, por dentro de cada grupo, partido, entidade, instituição, organização de base, igreja, movimento social, povo, raça, cultura ou nação. "Tudo é muito misturado, viver é perigoso", diz o protagonista Riobaldo Tartarana, na obra prima de Guimarães Rosa, Grande sertão, veredas.

Duas observações se impõem a esta altura. Primeiramente, no elástico espectro que configura a amgiguidade da condição humana, são muitos os fatores que determinam uma determinada tomada de posição. Muitos e muito variados! Alguns conscientes, mas grande parte permanece inconsciente; alguns vinculados à situação socioecômica ou politico-cultural, outros reflexo das dimensões moral, emocional ou espiritual de todo ser humano; alguns relacionados à herança genética e ao ambiente familiar, outros influenciados pelo cargo, papel ou função que cada pessoa ocupa. Na maioria das vezes, desconhecemos boa parte das motivações que nos levam a esta ou àquela decisão.

Em segundo lugar, de um ponto de vista socioecônomico, até mesmo a classificação de Primeiro e Terceiro Mundo se torna obsoleta. Numerosos analistas hoje em dia preferem falar em termos de países de maioria rica, cercada de ilhas de pobreza (Estados Unidos, Alemanha, Japão, Inglaterra, França assim por diante); ou países de maioria pobre, rodeada de ilhas de riqueza (Indía, Brasil, México, Rússia, Peru, Arábia Saudita, e outros). Numa palavra, a própria fonteira entre primeiro e terceiro mundos passa por dentro de cada nação. No interior desta coexistem, lado a lado, regiões ricas e desenvolvidas e regiões periféricas e subdesenvolvidas.

Por que rótulos obsoletos? Os parágrafos acima procuram mostrar que a realidade de cada ser humano, de cada grupo ou de cada instituição - seja esta social, política, cultural, religiosa ou acadêmica - tal realidade, repetimos, é muito mais rica, viva e dinâmica que nossos pobres esquemas mentais. Os argumentos político-ideológicos ou cultural-religiosos não dão conta de explicar todas as dimensões do ser humano, e tampouco suas múltiplas formas de conviver. A existência humana, bem como sua comunicação, segue sendo polifônica e polissêmica. "Coração de gente é terra selvagem", diz ainda Guimarães Rosa. O metro da razão, da lógica e da matemática jamais esgotará seu mistério.

Los Angeles - CA (USA), 15 de agôsto de 2014

* Alfredo J. Gonçalves, MC, é Conselheiro Vigário Geral dos Missionários Carlistas.

Fonte: Revista Missões

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