Alfredo J. Gonçalves *
Durante seu Ministério Público, por várias vezes Jesus desloca o centro das atenções de sua pessoa para sublinhar sua missão. O mais clamoroso exemplo disso, nos relatos evangélicos, é sua resposta aos enviados de João Batista, os quais lhe perguntavam: "És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?" Jesus parece ignorar o núcleo da questão e responde indiretamente: "Voltem e contem a João o que vocês estão ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa Notícia" (Mt 11,2-5).
Mais do que as palavras, falam as obras! Além disso, nesse e em outros episódios, o profeta itinerante de Nazaré evita falar de si mesmo, para concentrar-se na Boa Nova do Reino. Em outras ocasiões, apresentar-se-á como um simples enviado "para fazer a vontade do Pai". Somente mais tarde, após sua morte e ressurreição, é que as primeiras comunidades cristãs irão introduzir o culto do Senhor, do Cristo-Messias, do Filho de Deus ou do Salvador. Pouco a pouco, a partir de Antioquia, se impõe o nome de "cristãos" para seus seguidores, ao mesmo tempo que começarão a desenvolver-se os títulos da cristologia. Antes disso, os sequazes de Jesus eram chamados "nazarenos" ou o movimento do "caminho".
Temos aqui um critério fundamental para toda ação evangelizadora da Igreja, particularmente em sua dimensão sociopastoral e política. Quando esquecemos que a missão deve prevalecer sobre o discípulo/missionário, dois desvios são inevitáveis e igualmente nefastos: o personalismo individual e o narcisismo coletivo.
Entendemos por personalismo individual não o dom de si mesmo e da própria energia na ação evangelizadora, evidentemente, mas a tentação e tendência em centrar tal ação missionária sobre os próprios esforços, quando não sobre os supostos méritos. Disso resulta um número considerável de obras - de caráter espiritual, social ou político - batizadas com o nome de pessoas ainda vivas, o que, por si só, faz suspeitar de estridente centralismo. Outros "ismos" se escondem naturalmente atrás desse, tais como egoísmo, autoritarismo, despotismo, e assim por diante. Semelhante modo de ser e agir, além de extremada autosuficiência e arrongância, do ponto de vista religioso ou teológico denota falta de fé na presença do Espírito. Em vez disso, apela-se para expressões como "alvo e estratégia", "correlação de forças", "ataque e defesa", " brigada e vanguarda", "palavra de ordem" - todas sintomaticamente relacionadas ao imaginário bélico.
O personalismo individual confia na própria força para vencer os obstáculos e adversidades, mobilizando todos os instrumentos e individuos para impor seu modo de pensar ou seu projeto pessoal. Daí a prática de "fazer a cabeça" do maior número de pessoas, no sentido de aprovar, a todo custo, sua proposta. Mas não é só isso: verifica-se também uma boa dose de egocentrismo na sua maneira de agir. Não raro é movido a incenso, aplaudos e elogios, muitas vezes sem dar-se conta da falsidade ou ironia dos mesmos. Como se vê, estamos longe, muito longe, da consciência do apóstolo Paulo quando se refere ao "espinho na carne" e à "ação da graça", ao concluir que "é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder" (2Cor 12,1-10). O Espírito não encontra espaço num coração cheio de si mesmo!
O narcisismo coletivo, por sua vez, constuma centrar-se sobre a visibilidade da ação da Igreja, Congregação, Entidade, Movimento, Pastoral ( ou ouras instâncias), e não sobre os desafios históricos a que é chamada a Instituição. Em lugar de colocar-se a serviço da causa, tende a mobilizar todos os holofotes, câmeras e microfones para inflar o próprio balão. Não é à toa que a palavra visibilidade tem emergido com tanta frequência nos últimos tempos. Via de regra, justifica-se seu uso pela necessidade de maior incidência pública, seja esta eclesial, social, política ou cultural. Sem dúvida, deve-se reconhecer que no mundo atual da comunicação online ou instantânea, a visibilidade da ação contribui para as transformações necessárias. O problema é que, em não poucas vezes, a referida ação se limita a isso.
Todos os esforços e energias se concentram sobre a divulgação da auto-imagem, como se se tratasse de medir o próprio desempenho (performace) diante de um espelho imaginário. O exemplo mais eloquente desse espelho voltado sobre si mesmo são as publicações - revistas, jornais, boletins, livros - de inúmeras instituições religiosas, filantrópicas e/ou sociais no interior da sociedade civil e da Igreja. Tais publicações, da mesma forma que o uso dos meios de comunicação social, põem em evidência não tanto os desafios de uma realidade a ser transformada, e menos ainda seus protagonistas reais, e sim as atividades realizadas pela instituição. Ao invés do rosto desfigurado dos pobres, excluídos e marginalizados, costumam desfilar por esses espaços da mídia, ad intra e ad extra, em palavras, imagens e fotos, as faces sorridentes e bem nutridas dos agentes, intelectuais, assessores... É como se o protagonismo de deslocasse dos extratos mais carentes da população para os extratos intermediários.
Vale introduzir no debate os estudos de Max Weber e Antonio Gramsci. Segundo este último, o verdadeiro intelectual orgânico ou o líder, mais do que conduzir o povo, deixa-se conduzir por ele. Torna-se capaz de identificar suas necessidades e aspirações mais profundas, sistematizá-las com seu instrumental teórico, para devolvê-las em vista de uma renovada ação libertadora. Instala-se, assim, um processo dinâmico e dialético de teoria e práxis, onde uma interpela e deixa-se interpelar pela outra, numa evolução crescente em espiral.
Max Weber, por seu lado, alerta para o fato de que muitas vezes uma intuição original, ao burocratizar-se, pode fossilizar seu dinamismo e incidência sociohistórica. O carisma cede o lugar ao poder, para usar a expressão de Leonardo Boff (Cfr, livro Igreja, carisma e poder). Em termos sociológicos. trata-se da passagem do movimento à instituição. Enquanto o primeiro mantém-se aberto e fiel à pressão das bases e se orienta por sua força mobilizadora, a segunda tende a mudar seu objetivo principal (implícita ou explicitamente) na direção da própria estrutura e manutenção de si mesma. O movimento mergulha suas raízes no coração dos embates cotidianos para romper com os tiranos e tiranias, alargando os caminhos da história; a instituição, embora mantendo o mesmo discurso, volta-se predominantemente sobre a própria sobrevivência.
A conclusão nos leva a refletir sobre o confronto inevitável entre, de um lado, a prática de Jesus, centrada sobre a missão e o Reino de Deus, e, de outro, a preocupação da Igreja, com forte tendência e tentação de desviar-se da meta (dos pobres e das exigências do Reino), para concentrar os esforços na "pregação de si mesma". Sem dúvida, a postura do Papa Francisco constitui um bom exemplo de retorno ao Jesus histórico.
Ciudad de Panamá, 14 de maio de 2014
* Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS, é Conselheiro e Vigário Geral dos Missionários de São Carlos, em Roma.
Fonte: Revista Missões