A nova desordem mundial

Teresa de Sousa

1. O acordo obtido em Genebra para travar a escalada na parte oriental da Ucrânia, conseguido pelos chefes da diplomacia dos Estados Unidos, Rússia, Ucrânia e União Europeia, não chegou para tranquilizar ninguém. Se alguma coisa esta crise nos ensinou foi que Vladimir Putin a vai gerindo com uma espécie de "quente e frio", mantendo a aparência do diálogo à segunda-feira e elevando o tom da ameaça militar à quinta. Manda Serguei Lavrov a Genebra para encontrar um "compromisso".

No terreno, faz de conta que são os chamados "grupos de autodefesa" (na realidade controlados por tropas especiais russas) que não querem aceitar esse compromisso. Está preparado para um braço-de-ferro de longo prazo que vá deteriorando a situação política e económica da Ucrânia e minando a unidade ocidental. De tal modo que, daqui a algum tempo, não deixe aos ucranianos outra solução que não seja aceitarem um país enfraquecido e fragmentado, disposto a inclinar-se perante a vontade de Moscovo. A sua próxima etapa são as eleições de 25 de Maio e um hipotético referendo sobre uma revisão constitucional que, através de um alegado "federalismo", consagre a divisão da Ucrânia e mantenha em Kiev um governo sem poder. Criou uma narrativa para justificar a sua estratégia tão distante de qualquer realidade que só mesmo os russos, dentro e fora da Rússia, estão dispostos a aceitar: uma mistura de orgulho pátrio, de vingança, de diabolização dos "inimigos externos" passados, presentes e futuros, que alimenta quase todos os nacionalismos extremos. De caminho, coloca sob ameaça as antigas repúblicas soviéticas, da Arménia à Moldova, passando pela Geórgia, sobre o que lhes poderia acontecer, caso tentassem assinar com a União Europeia os acordos de associação já negociados.

Sabemos que, no longo prazo, o objectivo de Putin é o restabelecimento do "império", com as suas fronteiras difusas e a sua influência alargada. A ideia de uma grande nação russa mais ou menos cooperante com o Ocidente não faz parte dos seus planos. Em suma, não é preciso muito para perceber que vamos ter de conviver com uma ameaça constante à estabilidade dos países que fazem fronteira com a Rússia. Putin acredita que o "retraimento estratégico" americano e a eterna fraqueza europeia acabem por oferecer-lhe de novo um lugar de primeiro plano num mundo em que a força volta a determinar as relações internacionais. A sua Rússia é, portanto, uma potência antiocidental que quer "rever" a ordem internacional custe o que custar. "Se a escolha é entre tentar de novo que Putin saia gradualmente do frio, ou conter os seus piores instintos em relação aos seus vizinhos europeus, a última é a única resposta que faz sentido", diz o director da Chatham House de Londres, Robin Nibblet.

2. Obama, no seu estilo frio e racional (que alguns tomam por fraqueza), sabe que as coisas estão para durar e que qualquer sinal de cedência seria agora muito perigoso. Na sua mais recente intervenção, quando os diplomatas estavam ainda reunidos em Genebra, não se limitou a pôr muito pouca fé nos resultados. Putin tinha dito que não tenciona intervir na Ucrânia, a menos que houvesse uma guerra civil (é ele que decide se, como e quando essa guerra vai acontecer, com as suas tropas especiais sem insígnias e com as mais variadas formas de provocação). Obama lembrou-lhe que a capacidade militar convencional da NATO é muito maior do que a russa. Os Estados Unidos já decidiram reforçar a sua presença militar nos bálticos e na Polónia (mesmo que com uma deslocação de tropas muito inferior àquela que o chefe da diplomacia polaca, Radeck Sikorski, desejava), ao mesmo tempo que a NATO garantia a defesa por mar, terra e ar das fronteiras da Aliança. O Presidente americano disse que não intervirá militarmente na Ucrânia. Mas também já disse que a NATO continua a ter no seu centro o Artigo 5.º da Carta do Atlântico.

3. A Europa não estava preparada para esta crise. "Putin está a pôr em causa as normas internacionais fundamentais nas quais a Europa se apoia", escreve Ulrich Speck da Carnegie. A União, incluindo Berlim, acreditou piamente que era do interesse de Putin manter uma boa cooperação assente nos interesses económicos mútuos. Agora percebeu que o objectivo de Putin não encaixa nesta narrativa. Precisa de uma nova estratégia e terá de enfrentar toda a espécie de pressões internas para deixar as coisas andarem. O Financial Times escrevia na semana passada que já começaram as pressões das grandes empresas alemãs com negócios milionários na Rússia ou as da City de Londres onde aterram grande parte dos capitais dos oligarcas e dos novos-ricos de Moscovo. A forma como a Crimeia foi integrada no discurso político europeu como facto consumado (quase) "justificável" não é de certeza um bom sinal. Mesmo que fosse a última convicção a que os europeus se podiam agarrar, para evitar comtemplar a ameaça seguinte: a interferência no Leste da Ucrânia.
Em Bruxelas, os eurocratas já começaram a reproduzir nos jornais, mesmo que sob anonimato, as ideias feitas do costume, que tiram sempre da algibeira em situações como esta: que "nenhum europeu está disposto a morrer pela Ucrânia"; que, para a América, é muito fácil adoptar sanções cada vez mais duras, porque as suas relações comerciais com a Rússia representam apenas um décimo das europeias; que, finalmente, existe uma dependência energética, como se fosse uma grande novidade. Desde 2006, quando a Gazprom fechou a torneira do gás à Ucrânia e aos países da União que dependem maioritariamente dele, que os europeus sabem o risco que correm. Ninguém começou sequer a tentar resolver o problema a sério.

4. Durante 20 anos a Europa e os EUA agiram em função de uma Rússia que, mesmo que cada vez mais autoritária e nacionalista, apenas queria ser um parceiro respeitado do Ocidente. Isso acabou. A Rússia transformou-se numa potência "revisionista" que não aceita a ordem internacional tal como existe e que quer restabelecer o seu poder em confronto com o Ocidente. Essa Rússia está aqui mesmo ao nosso lado. Os Estados Unidos sabem que é um problema que a Europa não pode resolver sozinha. Os governos europeus, sempre preocupados com o dia seguinte ou com a próxima eleição, raramente dizem aos seus eleitores que o mundo não de reduz ao aumento do salário mínimo ou à redução do défice e da dívida. Vão ter de lhes dizer que esta crise na Ucrânia pode ter consequências económicas muito mais devastadoras do que os programas de austeridade. Basicamente, têm de explicar que o tempo de um mundo tranquilo em que se habituaram a viver, primeiro com o chapéu-de-chuva nuclear americano, depois com os dividendos ilusórios do fim da Guerra Fria está a mudar aceleradamente e que isso obriga a Europa a repensar a sua maneira de agir. Pela simples razão de que não há prosperidade sem segurança, para os europeus ou para as suas multinacionais. A Rússia quer puxar-nos de novo para o século XIX. A única esperança é que os EUA e a União Europeia ainda consigam pôr de pé uma política internacional que consiga atrair as novas potências emergentes para o século XXI. A China será o maior dos testes.

Fonte: Jornal O Público

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