Elaine Tavares *
Desde bem menina gosto de futebol. Era comum acompanhar meu pai, repórter esportivo, aos jogos dos dois clubes que havia em São Borja: Cruzeiro e Internacional. Meu coração pendia irremediavelmente para o Inter. Não sei o motivo. Nunca soube. Apenas amava aquela camisa vermelha brilhando ao sol. Quem pode saber o que nos faz amar algo ou alguém? É coisa que nos toma e não há explicações a dar. Já, em Porto Alegre, era o Grêmio que me tinha. Como entender essa confusão? Impossível. Amor! O rolo só se desfez quando Cruzeiro e Inter se fundiram dando lugar ao São Borja. Fiquei só com o Grêmio. E, assim, o futebol foi encontrando seu lugar na minha vida. A bola rolando, os dribles, os meneios de corpo, as firulas, o voleio, o gol. Nunca me importei com ganhar ou perder. Apenas me encanta aquela correria no quadrado, a arte de dominar a bola.
Há 24 anos vivo em Florianópolis e por força da profissão me vi setorista do Figueirense, escrevendo para o Jornal "O Estado". Em pouco tempo o furacão do estreito já tinha me ganhado, apesar de o Avaí ser azul, como o Grêmio. De novo, o não-sabido, o incompreensível. Importa não. O que vale é aquela alegria que assoma na hora do gol.
Repórter de esporte sempre soube o que estava em jogo no futebol. O espetáculo é uma mercadoria do capital, feito para render lucros a alguns. Também sempre tive muito claro que os mais variados esportes, entre eles o futebol, são, como muito bem aponta o professor Nilso Ouriques, no livro Megaeventos Esportivos, "produtos de transplantes culturais produzidos pelas elites ociosas", em busca de elementos culturais e simbólicos que garantissem riqueza e poder. Tanto que o futebol, introduzido no Brasil pelos ingleses e jesuítas, era um jogo da elite, completamente proibido para os pobres. Igualmente compreendo o papel do Estado na institucionalização do esporte, iniciada em 1941, com os dirigentes políticos do país definindo que confederações e federações poderiam existir. Obviamente um espaço dominado e atravessado pelo jogo do poder.
Nos anos 50, quando o Brasil se associa definitivamente ao universo dos dois maiores eventos esportivos, as Olimpíadas e a Copa do Mundo, toda essa herança de coronelismo, clientelismo, desmandos e corrupção se fortalece e, desde aí, estamos cada dia mais submetidos à lógica do esporte/espetáculo/mercadoria, sem mudanças no quadro político.
Mas, apesar de tudo isso, a vida mesma se encarrega de colocar sua cunha nos planos das elites. E o futebol, antes proibido aos pobres, ganha as ruas e dos campinhos de várzea começam a brotar craques. Sem poder fazer vistas grossas aos ídolos dos campinhos, os clubes se abrem e incorporam os negros e os jogadores da periferia. Espertamente, se apropriam da beleza criada nas ruas e acabam inventando uma sofisticada forma de escravidão. Em pouco tempo, os jogadores passaram a ser comprados e vendidos como se fossem coisas. Mas, vez em quando, eles subvertem a ordem, que o digam Sócrates, Casagrande, Nelinho, Éder, Albeneir, Renato e tantos outros. É a dialética.
É nessa contradição, entre a arte da rua, com o jogo sendo puro prazer, e o espetáculo montado para uns poucos ganharem dinheiro, que seguimos. Nesse sentido, parece muito importante compreender o caldo onde estamos metidos quando falamos de futebol. Não é só esse espaço de amor intraduzível que nos toma de paixão. É também campo de luta de classe e de confrontação com o sistema capitalista que oprime e exclui.
Assim, por compreender todo o jogo político e de poder que se mistura ao esporte, é que fiz coro ao grito de "não vai ter Copa" que tomou o país quando começaram as obras faraônicas e inúteis dos estádios novos, financiadas com dinheiro público para que meia dúzia de empresários tenham lucros exorbitantes. Porque, além de o governo permitir que poucos encham os bolsos, ainda é responsável por toda a sorte de destruição da vida que advém dessas. Mortes de operários, remoções forçadas de milhares de famílias, gente que tem suas casas destruídas, que não têm para onde correr, que não recebe uma indenização justa, que não tem chance de discutir uma opção. Tudo feito de forma autoritária e impiedosa, porque é da natureza do sistema capitalista não se importar nenhum pouco com aqueles que explora. Não são pessoas, são números, cifras, entraves, coisas, que podem ser removidas ou eliminadas. Tanto faz.
Não se trata de ser oposição cega à Dilma, à Lula ou ao PT, e muito menos de atuar na lógica da direita - que faria exatamente a mesma coisa que hoje faz o governo do PT. É uma posição clara diante do que representa para a maioria das gentes essa "festa do futebol". A festa mesmo será apenas para muito poucos. Os turistas que podem pagar os preços exorbitantes dos ingressos, as grandes redes de hotéis e restaurantes e principalmente as grandes empresas transnacionais que "patrocinam" o evento. Afinal, por força de lei, apenas os seus produtos poderão ser comercializados. Nem mesmo os ambulantes, que acabam pegando carona nos grandes eventos, com seus badulaques falsificados, poderão comer as migalhas desse banquete. Conforme a Lei da Copa, se forem pegos vendendo coisas nas proximidades dos estádios, serão presos.
Sempre haverá aqueles que dirão: "melhor, não teremos pobres enchendo o saco na entrada dos estádios". Mas, fatalmente, esses "pobres" saltarão nas suas caras quando menos esperarem, porque afinal, os estádios podem ser uma bolha protegida, mas a vida não é. E a violência que hoje se mostra quase endêmica não brota do nada. Ela é fruto do processo de exclusão e desumanização promovido pelo capital. Sabe-se que há uma camada até significativa da população que acredita piamente nas benesses que a Copa vai trazer. Confia nas mensagens de propaganda sobre melhorias nos transportes ou em outras questões estruturais. Mas, aqueles que sabem, que conhecem a raiz dos eventos e sua origem, não podem dar-se ao luxo do engano, ou da visão ingênua. Por isso dizem "não vai ter Copa".
É certo que os movimentos contrários ao evento não lograram vencer a batalha de ideias, afinal, a ideologia vomitada pelos meios de comunicação acabou prevalecendo. Assim, é certo também que os jogos vão acontecer, ainda que certamente cercados de protestos, lutas, prisões, violências, como soe acontecer quando o poder decide solapar a crítica. Porque a responsabilidade daqueles que sabem assoma, a despeito das ameaças de, inclusive, enquadrar os que ousarem lutar em lei de segurança nacional, como terrorista.
Então, para aqueles que, sem argumento, preferem enxovalhar os que lutam com comentários do tipo: "são contra a Copa, mas vão ver os jogos", "são do contra, mas vão torcer para o Brasil", tenho a obrigação de dizer que precisam se informar melhor sobre o tema. Ser contra os gastos públicos exagerados, contra o domínio das multinacionais, contra o evento caça níquel, contra os novos senhores de escravos, ou contra os figurões da Fifa, não tira de nós o amor que constituímos pela arte do futebol. Uma coisa não tem nada a ver com a outra e só usa esse tipo de argumento quem não quer ver a realidade.
O esporte, seja ele o futebol, ou outro qualquer, está para além dos jogos vorazes do capital. A alegria do jogo, a festa dos corpos brincantes ultrapassa a dominação a qual os cartolas e políticos insistem em impor. E desses corpos em festa sempre há de escapar a flor deliciosa do prazer que se esconde no drible perfeito, no gol de placa. E, nessa hora, vamos vibrar, sim. A diferença é que a gente sabe muito bem o que tudo aquilo significa, qual aparato está montado e a quem serve, em última instância.
Nos dias da Copa vamos ver, sem dúvidas, toda essa nossa gente sofrida, excluída do banquete, espremida em frente às lojas que apresentarem grandes televisores, vibrando pela seleção do Brasil. Mas, não se iludam. Mesmo aqueles que não sabem, na sua pureza, vibram pela beleza do jogo. E, apesar de estarem mergulhados até o pescoço na armadilha do capital, haverão de encontrar - alguns - o caminho de saída. A Copa é só mais uma batalha ideológica do sistema que nos oprime. Outras virão. Seguiremos lutando, engordando os batalhões...
* Elaine Tavares é jornalista.
Fonte: Revista Missões