Lula caiu num silêncio enigmático de um refugiado

Joaquim Gonçalves

Se Lula fosse outro Chavez, já teria convocado seus adeptos para ir para a rua liderando manifestações nas quais não teriam faltado atos violentos como nas que aconteceram nas últimas semanas.
Mais uma vez, o ex-presidente revelou uma espécie de esperteza carismática cujos frutos não aperfeiçoam a verdadeira democracia, tão sonhada pelo povo, correspondida no comparecimento nas urnas, e tão mal administrada pelas elites tradicionais e as que foram acopladas e se deixaram corromper pelas benesses do poder.

A primeira saída para a rua foi apenas a faísca que deu origem a um incêndio numa temperatura ambiental muito elevada. Os governantes e os políticos, tão fechados em si mesmos e cegos perante os anseios e privações sofridas pela população, não tiveram a adequada percepção da situação enquanto se preparavam para ocupar os quartos de hotel já reservados, perto dos estádios de futebol. A direita ajudou muito, por seus interesses políticos, a aumentar a graduação da temperatura nas arruaças.

Essa onda da direita, olhando para as fraquezas de Dilma, esperava pelo momento certo para erguer a voz. A faísca se soltou no ato da contestação do aumento das tarifas. Na verdade, a oposição deixou entender que esperava por uma situação favorável para abrir as cavernas e soltar os ventos fortes contra o poder instalado e assim respirar fundo em vista das eleições de 2014. Inicialmente, a interpretação dos acontecimentos pela grande media ia na direção de jogar as culpas no governo. A polícia foi colocada em maus lençóis por causa de sua atuação exagerada. Mas quando se constatou que entre os baderneiros também havia gente de classe média com violência nos pés e nas mãos, o discurso mudou de tom. Afinal, a baderna não é uma questão de ser de esquerda ou de direita, de ser pobre ou rico, mas de colocar interesses sociais e políticos na mesma rota. Aqueles jovens que queimaram os carros das TVs não eram da periferia.

As estatísticas captadas de imediato, após as grandes manifestações, sobre a presidente e seu governo tinham uma intenção só: colocar Dilma contra a parede, desacreditar o governo. Na verdade, desde que Lula foi eleito, a elite nunca engoliu a novidade de um líder popular ocupar o mais alto grau de poder e nunca aprendeu a ser uma verdadeira oposição com propostas alternativas para melhoria da sociedade, com melhor distribuição de renda. A idéia dominante era a de aproveitar bem a mão direita de Lula e cortar-lhe sem violência a esquerda.

Apesar das melhorias que se verificaram na estabilidade política e social, Lula deixou à sua sucessora, eleita num contexto social de messianismo lulista, uma herança mal registrada em cartório político. Antes de assumir o governo, Dilma deveria ter feito um curso de costureira para resolver bem os rasgos que Lula deixou no vestido social. Podemos acenar rapidamente alguns.

Ele se vangloriou de ter pagado a dívida externa e lavou a mãos do "dólar dívida" e da dependência americana com certa ousadia. A dívida não se paga com discursos nem com os oportunismos de atração de capitais externos. Pagou, mas endividou ainda mais o Brasil com dívida interna os bancos de nossa casa, imaginando que iriam ser melhores benfeitores. A dívida pública é assinada pelos que governam, mas paga pelos trabalhadores, se houver bons administradores. Essa dívida só se paga lentamente com renda, com lucro bem investido e exportação competitiva. Num mundo globalizado como o nosso, isso é difícil. Não basta o consumo interno, por maior que seja, para saldar a dívida pública. Os bancos colocam prazo para o reembolso e aumentam o valor da dívida se for renegociada. A crise europeia revelou que na sua base estavam as dívidas dos Estados com a banca interna e externa e os serviços públicos mal geridos.

Lula conseguiu criar um messianismo importante que teve seus êxitos e reflexos nos mais pobres que receberam ajudas inusitadas e também nos mais ricos que se aproveitaram das circunstâncias para aumentar seu patrimônio. Tanto é verdade que a distância entre os mais ricos e os mais pobres cresceu, apesar do sistema das bolsas e os novos empregos terem ajudado os pobres a crescer um pouco no consumo.
Os bancos de Estado, os já existentes e os novos (BNDES, Caixa, Banco Popular) veicularam empréstimos fabulosos para ricos empresários e para a construção de casas populares, muitas delas mal acabadas, de pouco valor. Basta ver os novos bairros da periferia de Manaus com casas de 10 metros quadrados e sem hipótese de poder fazer algum acréscimo ou as casas construídas na margem dos igarapés com boa visibilidade e a parte interna inacabada e inadequada para uma família morar. O conluio entre empresas, a Caixa e os políticos locais é escandaloso. Nas inaugurações dessas casas, os governantes nunca esclarecem ao povo que o dinheiro gasto faz parte de um empréstimo do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) a ser pago em 20 anos.

Infelizmente, o Partido dos Trabalhados perdeu a alma popular e se deixou contaminar pelo espírito da elite. Fez alianças inacreditáveis para poder segurar o poder na mão. O PT abandonou as ruas, fechou seus escritórios nas periferias. Alguns de seus advogados que prestavam assistência aos pobres passaram a mediar a atribuição de novos apartamentos para pessoas que já tinham sua casa própria (caso concreto de Sacomã e Heliópolis, em São Paulo e de Santa Etelvina, em Manaus).

Volta-se a falar de reforma política, mas é importante saber que ela nunca irá sair da caneta dos políticos instalados no poder porque não querem perder privilégios adquiridos e mantidos à custa de muitos dos impostos injustos. A administração pública é a maior consumidora dos bens de arrecadação e por isso pouco sobra para melhoria dos serviços sociais. Agora querem ainda mais: que o Estado subsidie as campanhas eleitorais. Todos os partidos e prefeitos já têm o seu caixa 2, organizado há muitos anos. Não há licença nem projeto de valor, aprovado pelas administrações locais, que não exija verba clandestina. Se nos Estados Unidos só o presidente da Câmara tem motorista e carro à disposição, por que aqui cada deputado tem que ter apartamento, motorista, carro, viagens, tudo pago pelo dinheiro arrecadado por meio dos impostos? A reforma política tem que ser abrangente e muito aberta. Um plebiscito não é a saída adequada.

Mas, a população também tem suas culpas nos entraves atuais. Falta ainda muito zelo e respeito pelos bens públicos, nas ruas, nas calçadas, nas escolas. Não podemos fazer lixo e jogar lixo fora de qualquer jeito. O apadrinhamento para conseguir favores especiais está embutido em todo o lado. É necessário assumir a responsabilidade de trabalhar com mais responsabilidade e rentabilidade. Necessário corrigir o hábito dos fura-filas. Sem qualidade nos produtos produzidos, nem disciplina de trabalho, não podemos concorrer e vender para ter lucro e renda que melhore a vida dignamente.

Agora a batata quente está nas mãos de Dilma. É a grande hora da prova diante do cenário das próximas eleições. Apetites pelo poder não faltam. Rasgos na organização social e no código de uma ética sincera há muitos. Não adianta remendar pano velho e fazer uma nova comida com o mesmo sabor. Não é através de um plebiscito que a popularidade dela vai melhorar, mas com propostas concretas de mudanças na organização de governo, na combinação do enxugamento das despesas públicas com os novos investimentos de curto e longo alcance. Com os meios de comunicação de que dispomos hoje ainda precisamos de tantos deputados e tantos senadores consumindo tanto dinheiro? As alianças devem ser feitas não em torno de estratégias de interesses de grupo, mas de projetos concretos de melhoria de vida para todos, começando do básico. Os referenciais do transporte, da saúde e da educação são fundamentais. É urgente acabar com as verbas de deputados porque esse dinheiro é sujeira pura. Nem metade vai ser gasta nos projetos apresentados por eles.

Podemos até acreditar que alguns deputados não transfiram nada para seu bolso pessoal, mas usam parte desses recursos para favorecer organizações, algumas de ficção, ou empresas de seus interesses. É hora de os deputados olharem mais para o povo e menos para seus umbigos.

Joaquim Gonçalves, diretor da Revista Missões.

Fonte: Joaquim Gonçalves / Revista Missões

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