O conflito na Síria - análise desde dentro

Elaine Tavares *

Cientista política Sara al-Suri fala sobre seu país e as raízes da revolução.

A Assembleia Nacional dos estudantes Livres (Anel) e a CSP Conlutas em uma ação conjunta com estudantes do Direito trouxeram à UFSC a jovem cientista política Sara Al Suri, 24 anos, síria de nascimento, que vivia em Damasco até sete meses atrás quando teve de sair do país por conta de sua militância política contra o regime de Bashar al-Assad. Exilada no Líbano, ela tem trabalhado na denúncia do regime sírio e na disseminação de informações que não chegam até o conhecimento das pessoas pelos meios de comunicação normais.

Antes de iniciar a conversa Sara passou trechos de um documentário que mostra a organização das mulheres sírias na produção de um jornal que visa passar informações para a população do país. Segundo Sara, na Síria existem apenas dois jornais e ambos pertencem à família de Bashar. Como o país ainda tem características agrárias e comunitárias muito fortes, poucos são os que tem acesso a internet e outros instrumentos tecnológicos. Daí que o jornal "Inab Baladi" (Uvas locais) produzido por mulheres, acaba sendo a única possibilidade de informação sobre coisas que o sistema de comunicação do país jamais publicaria. O trabalho é arriscado, uma vez que há muita repressão, mas as mulheres perseveram e distribuem o informativo nas casas e nas ruas.

O outro vídeo mostrou a organização comunitária livre e soberana da localidade de Kafarnubol, na região insurgente de Homs, que instituiu uma Constituição própria desde primeiro de abril de 2011, quando iniciou o que hoje é reconhecido como revolução síria. Segundo os moradores, essa Constituição é necessária, para que a população não caia nas armadilha de passar de um regime para outro sem que haja verdadeira mudança. Em Kafarnubol, a população escolheu 40 pessoas para dirigir o processo, essas 40 delegaram a 11 delas a tarefa de propor o texto da nova Constituição, e 25 outras formam o comitê de organização das gentes. Depois, o vídeo avança para cinco de novembro de 2012, e mostra a mesma cidade, antes envolvida com a aprendizagem da liberdade, totalmente destruída pelos bombardeios comandados pelo regime.

Segundo Sara, essas zonas livres são espaços importantes no processo de revolução porque ensinam como é possível a própria população tomar nas mãos o seu destino sem depender de ONGs ou outras entidades. E é a junção dessas experiências de zonas liberadas ou cidades levantadas em armas que forma o Exército Livre da Síria. "Não é uma coisa muito organizada aos moldes dos exércitos normais. É uma organização horizontal, uma rede, mas que já está encravada no imaginário do povo".

A jovem militante mostrou-se bastante indignada com a versão comumente passada pela mídia de parte da esquerda do ocidente que busca minimizar ou até ignorar o papel da população no processo revolucionário. "A mídia fala que não é uma revolução, que é uma guerra civil. E a esquerda diz que quem está fazendo a luta são mercenários pagos pelos Estados Unidos. Isso não é verdade. O Exército Livre não recebe dinheiro dos Estados Unidos e o nosso levante não está desvinculado das outros revoluções árabes tais como a da Tunísia e do Egito. São 40 anos de ditadura da família de Bashar al-Assar. E uma ditadura violenta". Ela diz que esse exército começou a se formar a partir da deserção de soldados que se recusavam a atirar contra o próprio povo. Esses jovens fugiam levando suas armas e assim foram montando uma resistência. Famílias foram criando batalhões armados para proteger os seus e a coisa foi crescendo. "Não houve uma vanguarda, tudo é horizontal. Há os grupos armados e há a população organizada que se manifesta. Um grupo não existe sem o outro. É por conta do Exército Livre que os civis conseguem ir às ruas, protegidos. E é por conta dos que estão nas ruas que o ELS se fortalece".

Sara conta que tão logo começaram as mobilizações no mundo árabe, em março de 2011, uma professora de uma escola síria, da cidade de Deera, conversou sobre isso com as crianças e elas decidiram fazer alguns grafites no muro da escola para retratar as revoluções, reproduzindo as palavras de ordem da primavera árabe que era "queda do regime". Quatorze crianças foram presas por isso, algumas torturadas violentamente. A mobilização pela libertação das crianças foi o estopim para que a chama da rebeldia começasse a se espalhar por todo o país, uma vez que no protesto pacífico, cinco pessoas acabaram mortas pela polícia. Depois disso, os levantes começaram por todo o país.

Ela não nega que os Estados Unidos estejam aproveitando as lutas do povo sírio para tentar impor a sua política, muito menos que não haja mercenários ou até colaboradores do império atuando no processo. E também aponta o imperialismo russo como outra força atuando na área, buscando cooptar a ação popular. Mas, faz questão de enfatizar que a maioria da população que está nas ruas ou no Exército Livre da Síria é gente comum, que quer um país livre da opressão que o regime tem efetivada por décadas. "E nós vamos lutar até o fim para decidir sobre nossas vidas, para estabelecer a nossa vontade e não os interesses imperialistas dos Estados Unidos ou da Rússia".

Sara também criticou duramente os governos de Hugo Chávez e Fidel Castro que, segundo ela, apoiam a ação de Bashar contra o povo sírio baseado nas mentiras de que a revolução é coisa dos estadunidenses e que Bashar defende o povo palestino. Sobre o primeiro ponto ela torna a frisar: se os EUA ali estão, buscando apoio inclusive junto a grupos religiosos, isso não significa que a revolução não seja também popular e autônoma. E sobre o apoio aos palestinos ela nega de forma veemente. "Desde os anos 60 a família de Bashar tem como prática expulsar a assassinar palestinos que não se submetam a seu comando. No início dos anos 70, o exército sírio chegou a invadir o Líbano para atacar os palestinos refugiados e acampados na fronteira. Naquela ação, conjunta com fascistas cristãos, mais de quatro mil palestinos morreram. Esse é o apoio que Bashar dá aos palestinos". Na verdade, a questão palestina também é uma teia intricada de grupos e facções nem sempre possíveis de ser entendidos ao olhar ocidental. A família de Bashar sempre esteve aliada ao grupo liderado por Yasser Arafat e, por conta disso, combateu aqueles que conspiravam contra ele. São as diversas caras de um conflito difícil.

A jovem síria aponta que é justamente o petróleo cedido pelo governo venezuelano que abastece os aviões que bombardeiam o povo em luta. "Ele (Chávez) apoia Bashar dizendo que é socialista, anti-imperialista. Mas isso não é verdade. Bashar transformou nossa economia, que era baseada na terra e na produção, em uma economia rentista, com 70% dela privada e dirigida para os petrodólares. Bashar tem desenvolvido uma política de choque contra a população fortalecendo os bancos, as grandes empresas, exatamente como fazem os países capitalistas. E é a burguesia que o apoia que chama o povo de "gente de segunda", meros atrapalhos ao desenvolvimento. Por conta disso eles bombardeiam favelas, prendem militantes e mantém praticamente toda a população do nordeste do país dependente da ajuda da ONU. Esse é o socialista". Para Sara, os dois políticos de esquerda latino-americanos estão muito longe da verdade que acontece dentro dos muros do país.

De fato, a história do levante do povo sírio não se diferencia muito do que ocorreu na Tunísia, no Egito e na Líbia. Como é tradição no mundo árabe, famílias, clãs e tribos que assumem o poder político em determinado momento da história, no mais das vezes buscam se perpetuar no mando, escapando muitas vezes para regimes totalitários. Por conta disso, as revoluções que aconteceram desde 2011 se revestem de forte caráter popular. Se, no andar dos acontecimentos países imperialistas vão colocando a sua cunha, estabelecendo novas alianças e misturando-se ao poder, isso não significa que se deva desvalorizar a força motora que deu início ao processo.

E é justamente isso que os militantes populares sírios querem evitar. Que outras forças, alienígenas, se apropriem da fenda de liberdade que a população vai abrindo com seus corpos e sangue. Sara al Suri acredita que isso não deverá acontecer na Síria. Ela avalia que o engajamento da população e o processo revolucionário tem politizado bastante o povo. Segundo ela, agora, o desafio é avançar no modelo democrático de participação social.

A Síria hoje tem uma posição estratégica no globo, fazendo fronteira com o Líbano, o mar Mediterrâneo, a Jordânia e Israel, encravada no meio da disputa pela região petrolífera. Sua história é milenar, tendo sua capital, Damasco, uma das cidades mais antigas do mundo, vivido vários tempos de apogeu, tanto na civilização de Ebla, três mil anos antes de Cristo, como no império Omíada, de dominação árabe. A região também fez parte do grande império Otomano e esteve submetida ao governo turco até 1918, quando o final da primeira grande guerra estabeleceu a presença europeia na região. O governo francês assumiu a divisão de território que criou a Síria e o Líbano, e o governo britânico criou a Palestina, a Transjordânia e o Iraque. A independência só veio em 1946.

O partido Baath, que está no poder até hoje, foi criado em 1963, sob a liderança do pai de Bashar, Hafez, e sempre se colocou como de natureza socialista tendo sido, inclusive, muito ajudado pela então União Soviética.

* Elaine Tavares é jornalista.

Fonte: www.eteia.blogspot.com

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