Paulo Aido*
O homem estava calado dentro do silêncio da igreja. Faltavam ainda alguns minutos para o começo da missa das nove, a primeira do dia, e quase ninguém ocupava ainda os bancos corridos do templo. Duas ou três mulheres vestidas de luto e pouco mais. O homem, a um canto, estava como que perplexo. Olhava sem ver o altar e assim ficou depois do padre ter entrado na igreja, ter dito em voz clara "em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo" e mesmo depois de todos terem respondido "amém". O homem continuou fechado sobre si, retido ainda nos últimos pensamentos, nas palavras escritas a negro, corpo oito, em times new roman. Foi num texto alinhado à esquerda, impresso a uma cor, que leu a carta que colocou um ponto final no seu emprego. Foi despedido em três linhas cordiais, numa carta assinada pelo administrador, que até escreveu, pelo seu punho, "muitas felicidades". Caramba. Despedido aos 52 anos! Toda a sua vida fora revisor de textos e agora estava à margem do mundo do trabalho. Obviamente que ainda não tinha dito nada lá em casa. Obviamente. A mulher estava a milhas de adivinhar o desastre e ele não sabia também como dizê-lo. Velho demais para conseguir trabalho, novo demais para a aposentadoria, a vida tinha-o atraiçoado aos 52 anos. A carta estava no bolso, amarrotada desde a véspera. Hoje, no primeiro dia depois da demissão, levantou-se como de costume à hora de sempre e como sempre apanhou o mesmo ônibus, percorreu as mesmas ruas e foi visitar Deus na igreja do costume. Agora estava ali, sem palavras, sem saber o que fazer a seguir. Como é que se inventa a vida depois dos 52 anos?
Podia não escrever mais nada. A Agência Ecclesia pediu-me um texto sobre o desemprego e eu recordei-me deste pequeno conto que publiquei, há uns anos, no jornal Destak, numa pequena coluna em que diariamente registava imagens do cotidiano de Lisboa, como se fotografasse a cidade com palavras. O texto tem mais de cinco anos mas podia ter sido escrito agora, neste instante.
Até já se disse que o fim do emprego pode ser uma oportunidade, mas é, em primeiro lugar, quase sempre, um murro no estômago, um sinal da enorme precariedade que é a nossa vida na sociedade atual. Que ninguém tenha certezas absolutas. Sabe-se lá o que nos vai trazer o dia de amanhã...
"Como é que se inventa a vida depois dos 52 anos?", pergunta, a si próprio, o homem calado dentro do silêncio da igreja.
Este homem é apenas personagem de um conto. No entanto, no dia a dia das nossas vidas, agora, neste instante, quantos homens e mulheres não terão também um papel amarrotado no bolso, qual sentença de morte, a dizer-lhes que o emprego acabou, que a empresa fechou, que não é possível manter o seu posto de trabalho pois é preciso haver redução de custos, que os tempos estão difíceis, que a culpa é da crise?
Nestes dias em que o flagelo do desemprego está impresso em letras escuras, fúnebres, nas primeiras páginas dos jornais, e é repetido até à exaustão pelas manchetes dos noticiários das televisões e das rádios, ninguém pode mais afirmar que não sabe, que não conhece, que nunca ouviu falar em alguém que está mais pobre porque ficou sem trabalho, em alguém que está mais só porque ficou sem esperança. Todos nós conhecemos alguma pessoa que está assim, como o senhor do conto, provavelmente velho demais para voltar a ser contratado, mas ainda novo demais para ter direito à aposentadoria, fechado sobre si mesmo, na impossibilidade de ultrapassar os seus problemas. Todos nós conhecemos alguém encurralado, sem soluções, rasteirado por uma crise que o apanhou desprevenido e que agora olha à sua volta e não vê ninguém, olha-se ao espelho e nem se reconhece.
O que fizermos - ou não fizermos - nestes dias de tempestade dirá muito mais sobre o sentido da nossa fé do que podemos imaginar. O flagelo do desemprego que se abateu sobre os portugueses pode ser, de fato, uma oportunidade. Uma oportunidade para provarmos o que queremos dizer quando dizemos que somos cristãos.
Paulo Aido é jornalista português.
Fonte: www.agencia.ecclesia.pt