Maria Clara Bingemer *
Na década de 70, quando comecei o curso de Teologia na PUC-Rio, a Rocinha era algo assim como um lugar especial. Maior favela urbana do Brasil, para ela estavam voltados os olhos, os cérebros e as mãos de cientistas sociais, agentes de pastoral e teólogos. Inseridos na luta pela libertação dos mais pobres, comprometidos em encontrar saídas dignas e promissoras para fazer dos oprimidos sujeitos de sua história, a Rocinha era um verdadeiro laboratório dessas ideias e práticas.
Ali conheci a atuação pastoral e comunitária de dois jesuítas belgas, que posteriormente se converteram em amigos queridos: Cristiano e Thierry. Cristiano, posteriormente, deixou a Companhia de Jesus, continuando, porém, fiel às marcantes experiências vividas na comunidade favelada. Thierry, embora viva em Brasília, até hoje fica na Rocinha quando vem ao Rio. Seus muitos amigos não permitiriam que assim não fosse.
Lembro-me da cerimônia dos últimos votos de Thierry na capela da Rocinha. Seus pais, vindos da Bélgica, emocionadíssimos, acompanhavam a Eucaristia, na qual a entrega definitiva do filho ao serviço de Deus e de seu povo, na Companhia de Jesus, se consumava no meio dos pobres. Os cantos soavam cheios de fervor, o povo participava e dava testemunho. Ali senti desejo de trabalhar com e para este povo por algum tempo de minha vida.
A oportunidade veio pouco depois. Thierry me conduziu pela primeira vez ao encontro de Dona Rocilda, que coordenava um círculo bíblico. Ali cheguei, ouvindo mais do que falando, para aprender. Só não sabia que aprenderia tanto! Foram pouco mais de dois anos acompanhando os círculos bíblicos, dando formação aos coordenadores, celebrando o mês de Maria com a procissão da coroação de Nossa Senhora no último dia do mês de maio.
Cada encontro era cheio de graça para mim ao constatar que a Bíblia era terreno de total intimidade e conaturalidade para aquele povo. Às vezes, o Evangelho do domingo me parecia hermético e ia apreensiva. A Palavra de Deus abria de par em par corações e lábios e jorrava em torrente luminosa e simples. E o Espírito Santo derramava seus dons com abundância sobre aqueles homens e mulheres, que liam e comentavam o que Deus queria ensinar-lhes.
Após dois anos, meus compromissos na Universidade começaram a avolumar-se e eu vi que devia deixar a Rocinha. Não sem dor, não sem saudade. Não sem provocar dor e decepção em muitos, estou disso consciente. Foi uma opção que fiz e creio que foi discernida e comprovada. Saí da Rocinha, mas a Rocinha de mim nunca mais saiu. Aqueles dois anos ficaram gravados em meu peito e tudo que ali aprendi vem me acompanhando em todos esses anos a mais de vida já vividos.
Tive a oportunidade de lá voltar posteriormente, por ocasião da celebração dos 25 anos de sacerdócio de Thierry. Já a Rocinha estava literalmente tomada e comandada pelo tráfico. Em meio à missa alegre e participada, homens armados apareciam na igreja e fora dela, junto às portas, nos caminhos. Saí chocada em ver a transformação do lugar que frequentara em época tão diferente e que agora se apresentava com aquela configuração.
Apesar de acompanhar pela mídia o crescimento do poder do tráfico e do crime organizado naquela grande comunidade, foi diferente vê-lo ao vivo e de perto. Conversar com pessoas conhecidas há muito tempo e que lá residiam me testemunhava o sofrimento que enchia a vida dos moradores pacíficos e tranquilos, que só queriam viver, trabalhar e criar seus filhos, e se encontravam em permanente sobressalto, com medo dos tiroteios que aconteciam entre polícia e chefes do tráfico, deixando feridos e mortos em profusão.
Por isso, a ocupação da Rocinha no último domingo pelas UPP, acontecida pacificamente, sem um tiro sequer, juntamente com a prisão do chefão do tráfico, o Nem, dão esperança. Ninguém é ingênuo nem acha que as UPP são ilibadas e perfeitas. Mas pelo menos são uma chance dada a esta imensa comunidade, verdadeira cidade dentro da cidade, situada em um dos mais belos lugares do Rio, de se reconstruir e voltar a ser um espaço de dignidade e luta pela libertação dos deserdados do progresso. Não mais um lugar de violência e criminalidade onde a morte, deixando um rastro macabro de sangue atrás de si, vai dizimando, sobretudo as novas gerações.
* Maria Cçara Bingemer é teóloga e escritora. Professora da PUC - RJ.
Fonte: www.adital.com.br