Alfredo J. Gonçalves, CS *
Migrações e nova evangelização, esse é o tema da mensagem do Papa Bento XVI para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, em janeiro de 2012. Tema intimamente ligado à idéia de Migrações como sinal dos tempos, desenvolvido pelo mesmo pontífice em outra Jornada do Migrante. Como insiste o documento Era Migrantes Caristas Christi, do Pontifício Conselho da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes, em sua apresentação, "as migrações hodiernas constituem o maior movimento de pessoas de todos os tempos. Nessas últimas décadas, tal fenômeno, que envolve cerca de duzentos milhões de seres humanos, transformou-se em realidade estrutural da sociedade contemporânea e constitui um problema cada vez mais complexo do ponto de vista social, político, religioso, econômico e pastoral".
1.Pêndulo entre emigração e imigração
De acordo com uma matéria do Jornal "O Globo", Rio de Janeiro, publicada no dia 31 de outubro/2011, quase metade dos brasileiros que estava no exterior já voltou ao país. E prossegue o movimento de retorno, devido especialmente às turbulência econômicas nos países mais desenvolvidos. Por outro lado, verifica-se uma nova onde de imigração. Os grupos mais significativos de imigrantes são, por ordem decrescente, os portugueses, os bolivianos e os chineses.
O primeiro grupo é formado, em geral, por pessoas relativamente qualificadas que procuram oportunidades deste lado do Atlântico; os bolivianos são constituídos por migrantes socioeconômicos, e se dirigem particularmente à indústria têxtil por toda a extensão da capital paulista; já o grupo dos chineses busca normalmente o comércio, às vezes em sua versão informal. Ou seja, o Brasil, historicamente país de imigração, desde o final dos anos 1970 tornou-se região de saída, voltando agora a ser novamente lugar de atração. Convém mencionar, além disso, a chegada de alguns milhares de haitianos via Tabatinga e Manaus, no estado do Amazonas, e outros tantos refugiados em especial de países africanos. Conclui-se que hoje o pêndulo dos deslocamentos humanos oscila em vários países do planeta, fazendo-os passar de ponto de partida (país de origem) a ponto de chegada (país de destino), e vice-versa, em ciclos cada vez mais acelerados.
No caso do Brasil, dois fatores explicam esse fenômeno: por um lado, o país vem se destacando no cenário internacional como economia emergente e relativamente aquecida, juntamente com a Rússia, a China, a Índia e a África do Sul (o chamado grupo BRICS); por outro lado, a crise vem castigando cada vez mais as economias das nações do Primeiro Mundo. Assim que, enquanto os brasileiros emigrados desistem de sua "aventura" nos países ricos e procuram regressar à terra natal, um número cada vez maior de imigrantes faz do Brasil um novo Eldorado.
Lamentavelmente, o país dispõe de uma Lei de Estrangeiros que não responde a esses deslocamentos humanos, cada vez mais intensos e crescentes, dinâmicos e complexos. Em não poucos casos, a legislação voltada para os imigrantes ainda sofre as mazelas do contexto sombrio da Lei de Segurança Nacional. Semelhante visão, associada à prática de criminalizar os movimentos migratórios, sobretudo a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, chega a fazer da mobilidade humana não uma "questão social" e ser devidamente estudada, e sim um caso de polícia. Ao invés de soluções programáticas, prevalece a improvisação. O desafio é superar a cultura do medo e da Segurança Nacional pela cultura da paz, através do intercâmbio de valores entre povos e nações.
2.Haitianos e bolivianos
Dois casos bastam para ilustrar: Por ocasião do terremoto no Haiti, o governo brasileiro de alguma forma incentivou a vinda de seus habitantes para cá, oferecendo-lhes um visto de permanência que permite arrumar emprego com carteira assinada. Ao mesmo tempo, porém, não desenvolveu nenhuma política pública de acolhida. Esta, no caso de Manaus, recaiu toda sobre a Igreja Católica, com a ajuda de outras instituições, entidades e pessoas. A paróquia São Geraldo, dos padres scalabrinianos, é o ponto de referência de todo haitiano que desembarca na capital do Amazonas.
A Polícia Federal limita-se a fornecer aos haitianos os vistos a partir de Tabatinga, jogando-os depois à própria sorte sobre a grande metrópole de Manaus. Isto para não falar da penosa trajetória desses imigrantes, vindos em geral através de Porto Príncipe, República Dominicana, Panamá, Equador, Colômbia e, por fim, Tabatinga, na região da tríplice fronteira (Brasil, Colômbia e Peru), onde se amontoam para esperar o visto de entrada. Um percurso que, além de durar três a quatro meses, pode custar mais de U$ 4.000,00 (quatro mil dólares), deixando-os exaustos e sem dinheiro para recomeçar a vida. Cidadãos pela metade, vulneráveis a todo tipo de exploração, inteiramente à mercê da caridade alheia.
O segundo caso refere-se aos bolivianos em São Paulo, para limitar-nos a esta cidade. Neste caso, entram no país muitas vezes de forma invisível através de Guajará-Mirim, Corumbá, Ponta Porã, Foz do Iguaçu, entre outros pontos da fronteira seca com os países vizinhos. Já em território brasileiro, buscam regularizar a própria situação, o que custa dinheiro e meses ou anos de espera. Nesse tempo, em termos de mercado de trabalho, procuram algum tipo de ocupação informal. A porta de entrada para eles costuma ser, além dos serviços em geral, a indústria têxtil de fundo de quintal, muitas vezes operada por empreiteiras terceirizadas, que não raro trabalham para empresas de marca.
Boa parte foi beneficiada pelo recente tratado de anistia, logrando regularizar os próprios documentos. Mas outros permanecem, também eles, como cidadãos pela metade. Da mesma forma que os haitianos, estão sujeitos a todo tipo de exploração, sem qualquer possibilidade de reclamar os direitos laborais (trabalhistas). A situação irregular no emprego, em efeito cascata, gera dificuldades de acesso a outros direitos básicos, seja pelo medo de expor-se ao risco de repatriação, seja pela falta de papéis para apresentar na escola, no posto de saúde, ao dono de um imóvel quando se trata de alugar casa, e assim por diante.
3.Migrações e nova evangelização
Mesmo em meio a tantas adversidades, os migrantes são sim protagonistas privilegiados da evangelização. De fato, as granes ondas migratórias, quais verdadeiros tsunamis causados pelos terremotos econômicos, políticos, sociais, culturais e naturais, aparecem como um "sinal dos tempos", em dupla perspectiva. De um ponto de vista negativo, interpelam e denunciam uma civilização que sequer conseguiu oferecer, na terra natal, uma sobrevivência mínima a milhões de seres humanos. Desterrados do solo pátrio, erram pelas estradas do êxodo. Nem cidadãos deste ou daquele país, nem cidadãos do mundo. Trabalhadores para os serviços sujos e pesados, mas sem direito ao status de cidadania. Errantes que nos dirigem olhares e gestos silenciosos, mas nem por isso menos questionadores. O grito dos mutilados da história, dos sem voz e sem vez, justamente por seu silenciado, costuma vir carregado de apelos mais eloquentes.
Em termos positivos, as migrações são um "sinal dos tempos" na medida em que clamam por mudanças. Mudanças urgentes, profundas, substanciais, seja em nível interno de cada nação, seja nas relações internacionais da economia mundializada. Neste caso, os migrantes entram em cena como profetas e artífices, às vezes sem o saber, da busca de alternativas. O simples fato de pôr-se a caminho, faz marchar a história. Movem-se e movem as engrenagens da sociedade em permanente mutação. Podem, com isso, apontar veredas novas para horizontes mais largos e abertos, plurais e democráticos, solidários e sustentáveis.
São antes de tudo protagonistas da "nova evangelização". Como afirma com ênfase o Documento de Aparecida, "os migrantes que partem de nossas comunidades podem oferecer valiosa contribuição missionária às comunidades que os acolhem" (Nº 415). Através do processo migratório, como uma entre as várias alternativas de sobrevivência, superam a fome e a fuga, caminhando em busca em de uma nova sociedade e, quem sabe, de uma nova civilização.
* Alfredo J. Gonçalves, CS, é superior provincial dos missionários carlistas e assessor das pastorais sociais.
Fonte: www.provinciasaopaulo.com