Entrevista ?? Ivone Gebara: Bem Viver exige cautela para que não haja uma apropriação indevida da tradição indígena

Rogéria Araújo, Jornalista da Adital

A filósofa e teóloga Ivone Gebara, que participou do 8º Encontro Nacional Fé e Política, em Embu das Artes, São Paulo, conversou com a Adital um pouco antes de começar sua plenária temática "Relações de Gênero, Raça e Etnia".

Para ela o Bem Viver precisa ser tratado com certa cautela, para evitar uma apropriação indevida da cultura ancestral indígena. "Tenho um certo receio que esse vocabulário coopte esse Bem Viver para outra ideologia, quer a ideologia capitalista, quer a ideologia libertária", disse.

Com um olhar analítico, Gebara afirma que ainda falta muito para que as conquistas das mulheres e dos povos indígenas sejam concretizadas.

Adital - O 8º Encontro Fé e Política aborda o Bem Viver. Como a senhora irá relacionar este tema com sua atividade sobre gênero, raça e etnia?

Ivone Gebara - Primeiro confesso um pouco a minha ignorância em relação ao tema do Bem Viver. Quero dizer ignorância também situada pelo fato de eu não estar lidando muito com as comunidades indígenas. Minha abordagem vai ser um pouco para uma chamada de atenção para uma certa romantização que a gente faz dos povos indígenas e das mulheres.

Vou denunciar também uma certa apropriação da cultura indígena. Vejo que agora todo mundo, em vez de falar dos temas clássicos, está encontrando um novo vocabulário. Eu tenho um certo receio que esse vocabulário coopte esse Bem Viver para outra ideologia, quer a ideologia capitalista, quer a ideologia libertária. Minha reflexão vai se desenrolar nesses pontos

Adital - O que significaria essa apropriação da cultura indígena?

Ivone Gebara - Há uma espécie de romantização do mundo indígena.Qual é e por onde vai a esperança hoje? Na minha perspectiva feminista é a busca de uma cidadania integral e para os indígenas também. Então temos que pensar outra relação do estado com as comunidades indígenas, temos que pensar uma outra relação das comunidades indígenas com as comunidades não indígenas.

E aí estou falando um pouco como pessoa ordinária, porque não estou fazendo teologia nem filosofia disso... Mas pensando sobre a vida, me pergunto se nós também não teríamos que nascer como nação brasileira e não só como nação brasileira, mas como planeta terra, e tentarmos um outro tipo de convivência. Porque [essas] convivências em que vamos criando guetos, tenho a impressão que elas são perigosas.

Mas também estou consciente de que as minhas afirmações podem ser recuperadas. Eu denuncio isso. Por exemplo, nós temos mais de 270 deputados e senadores ruralistas e um indígena que é deputado... Então, o que significa isso do ponto de vista de você lutar para que os indígenas digam a sua palavra no mundo das organizações políticas e sociais do Brasil? Precisamos pensar mais sobre isso.

Aceitei trabalhar este tema mas estou, ainda, pisando em ovos. Não me sinto muito à vontade com o resgate dessa temática. É diferente no Equador, na Guatemala, na Bolívia. Tenho muito receio que os intelectuais de esquerda se apropriem e se apropriem indevidamente, como se quisessem colocar nesses novos conceitos a mesma coisa que existia no mundo das análises sociológicas dos anos 80,90, que por trás estejam as ideologias socialistas - ao contrário, eu sou a favor do socialismo - mas eu acho que é um socialismo que precisa ser reinventado hoje.

Adital - Não estaríamos preparados (as) para assumir um conceito vindo do passado, mas que hoje soa como uma busca urgente?

Ivone Gebara - Acontece que essa ideia do Bem Viver, a gente precisaria rediscutir em diferentes setores. O que é o Bem Viver para o pessoal Sem Terra? Para as mulheres? O Bem Viver para as mulheres significa uma sociedade que ultrapasse essa situação sexista. E o sexismo também é muito presente nas comunidades indígenas, sobretudo as que tiveram muito contato com "a civilização" branca.

A questão hoje, embora se trabalhe regionalmente ou localmente, é de ordem planetária. Então como implementar uma nova compreensão do ser humano, das culturas? Essa ideia de fazer a volta ao passado não é possível, o passado está lá como grande inspiração. Mas a grande inspiração para mim é o presente. Que perguntas que o presente está me fazendo?

Eu resumira minha intervenção como uma chamada ao pensamento desses conceitos todos que parecem novos, mas acho que não tem muita coisa de novo. Porque as conquistas que propusemos na sociedade civil nos anos 80 e 90, nós conseguimos alguma coisa, mas falta muito.

Adital - E a Igreja, e aí entra a sociedade também, tem uma dívida muito grande com as mulheres e com os povos indígenas...

Ivone Gebara - As Igrejas possuem uma dívida muito grande com as mulheres. Muito grande. Então, não respondemos ainda as demandas das mulheres e aí nos contentamos com muito pouco, de dizer ‘Deus é pai e mãe', ‘a terra é mãe', ‘homem e mulher', ‘meninos e meninas'. Há apenas uma retórica de linguagem sem a questão fundamental que é a prática. Qual é a prática que a gente pode observar hoje nas igrejas? Isso pra mim ainda é um grande ponto de interrogação.

Fonte: www.adital.com.br

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