As estrelas, o Araguaia e nós somos testemunhas

Antônio Canuto *

Praticamente nos mesmos dias em que dom Leonardo Ulrich Steiner deixa o pastoreio desta Igreja e Dom Eugênio Rixen assume como administrador apostólico, completam-se quarenta anos da ordenação de Pedro Casaldáliga, como bispo.

Foi no dia 23 de outubro de 1971. Um momento da maior importância para a Prelazia que assim tinha seu primeiro bispo. Um momento que não pode ser esquecido. Foi um acontecimento que marcou profundamente a Igreja e sobretudo os que tivemos o privilégio dele participar.

Três anos depois de Pedro chegar à região, no segundo semestre de 1968, acompanhado do Irmão Manoel Luzón, para iniciar um novo campo de missão, a Igreja da Prelazia se consolidava com a ordenação de seu primeiro bispo. Pedro foi ordenado pelas mãos de Dom Fernando Gomes dos Santos, Arcebispo de Goiânia, Dom Tomás Balduino, bispo da Diocese de Goiás e Dom Juvenal Roriz, bispo de Rubiataba, GO.

Três elementos, mais que significativos, imprimiram àquela cerimônia um caráter totalmente inovador e profético que alcançaram forte repercussão não só na Igreja do Brasil, mas também em muitas igrejas do mundo e na sociedade.

O primeiro: A ordenação se realizou na maior e mais rica catedral do mundo. A abóbada desta catedral era ornada pela multidão incalculável das estrelas do céu. As paredes eram formadas por um lado pelas águas livres do Araguaia, e pelo outro pelas areias do morro de São Félix. Ao fundo, a igrejinha pequena e pobre da comunidade. Ao pé do morro, como a lembrar a provisoriedade e a fragilidade da vida, o cemitério onde tantas pessoas, morridas ou matadas, descansavam , ao lado do secular cemitério karajá.

O segundo: Pedro recusou qualquer sinal exterior que o diferenciasse na igreja. Posso estar enganado, mas acho que é o único bispo deste Brasil, talvez do mundo, que fez questão de nunca usar qualquer insígnia episcopal. As insígnias episcopais, dadas ao bispo na sua ordenação hoje são o anel, o báculo, a mitra e a cruz peitoral. Sinais externos do lugar que o bispo ocupa numa igreja estruturada em forma hierárquica.

Sinais de sua autoridade e poder. O bispo ainda ostenta um escudo que representa seu lema de vida e serviço. Suas vestimentas também se diferenciam das dos simples padres. (Tempos atrás os bispos ainda usavam, nas celebrações, luvas, calçados especiais e paramentos diversos. Tudo para indicar sua importância na Igreja.)

Pois bem. Naquela noite de 23 de outubro de 1971, a abóbada celeste, as águas do Araguaia e todos nós que lá estávamos fomos testemunhas de que algo novo acontecia. Um bispo recusava as marcas do poder para mergulhar totalmente na vida do povo. Estas palavras profético-poéticas ecoaram:
Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo; o sol e a lua; a chuva e o sereno; o olhar dos pobres com quem caminhas e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor. Teu báculo será a verdade do Evangelho e a confiança de teu povo em ti.

Teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e a fidelidade ao povo desta terra. Não terás outro escudo que a força da esperança e a liberdade dos lhos de Deus, nem usarás outras luvas que o serviço do amor. O terceiro elemento que marcou esta ordenação, deixou um rastro de luz e de esperança.

Despertou, por um lado, a adesão imediata de cristãos e cristãs em toda a Igreja e nos mais diversos setores da sociedade. Por outro, provocou reação irada e violenta dos agentes da ditadura Militar e dos que se locupletavam com os incentivos públicos às custas, do sacrifício, da dor e da escravidão de muitos.

Foi sua carta pastoral divulgada naquela ocasião e que se intitulava: uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social.

Um documento que marcou época e que se tornou como que um divisor de águas, no seio da Igreja do Brasil. A carta pastoral não olha para dentro da Igreja. É um olhar da Igreja sobre a realidade nua e crua do povo, ao qual esta igreja veio servir. Nela se relatam as situações vividas pelos posseiros que eram expulsos das terras ocupadas e trabalhadas há dezenas de anos; a realidade dos índios cujos territórios eram invadidos pela ganância do capital; e a exploração dos peões, trabalhadores trazidos de diversos cantos do país e submetidos às mais degradantes condições, em situação similar à dos escravos.

Uma palavra clara e profética que denunciava as injustiças que se cometiam contra o povo e que ecoou no Brasil e no mundo. Pedro dizia na introdução: "Se a primeira missão do bispo é ser profeta" e "o profeta é a voz daqueles que não tem voz" (Card. Marty), eu não poderia, honestamente, ficar de boca calada ao receber a plenitude do serviço sacerdotal".

A ordenação não foi só uma celebração. Ela se concretizou, em todos os cantos da Prelazia, em formas simples e pobres de vida, na partilha da vida com os sertanejos e sertanejas e indígenas, numa tomada de decisões de forma coletiva e irmã, onde leigos e leigas, religiosos e religiosas e padres tinham voz, sempre olhando o povo e sua história.
40 anos se passaram. E esses marcos fundantes não se pode esquecê-los.

 * Antônio Canuto é jornalista e secretário da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Publicado no "Alvorada". Boletim da Prelazia de São Felix do Araguaia, MT. N. 289, set-out de 2011.

Fonte: Antônio Canuto

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