Alfredo J. Gonçalves , CS*
Esse é o título de um livro do filósofo italiano Umberto Galimberti, voltado especialmente para quem lida com a juventude. Na obra, o adjetivo inquietante tem a ver com o niilismo e com o filósofo Nietzsche, fazendo claras alusões à falta de referências do mundo contemporâneo. Sobressaem, entre outros "ismos", o individualismo, o hedonismo e o relativismo do que se convencionou chamar de sociedade pós-moderna.
Mergulhado em semelhante estado de coisas, as pessoas em geral, ao invés de projetar sua vida, tendem a buscar respostas imediatas para problemas pontuais. O planejamento lento e laborioso é facilmente substituído pelos remédios que o marketing expõe em profusão de luzes, cores e apelos. Como os analgésicos são muitos e muito diversificados, e estão sempre à mão, poucos se dão ao trabalho de digerir o próprio fracasso ou sofrimento, dele tirando novas lições. Mais fácil que ruminar a dor é correr à primeira farmácia da esquina!
Evidente que isso não ocorre somente com a juventude. Esta apenas costuma ser mais vulnerável e mais espontânea às vibrações ocultas do momento. Uma espécie de termômetro da sociedade em que vivemos. Ou um violão cujas cordas são mais sensíveis à música da moda. De fato, os jovens são os primeiros a "virar a mesa" para escancarar as debilidades, máscaras e hipocrisias de um determinado tempo histórico. Normalmente são também os primeiros a sair às ruas quando percebem "algo de podre no reino da Dinamarca", para usar a expressão de Shakespeare.
Os exemplos a esse respeito poderiam ser multiplicados à exaustão. É o caso dos Beatles e, de modo particular, de John Lennon. Mas é também o caso da brasileiríssima banda dos Mamonas Assassinas. É o caso dos movimentos juvenis de 1968, em especial na França, mas é também o caso das multidões de "caras pintadas", que contribuíram decisivamente para o impechemant do ex-presidente Fernando Collor.
O que marca a juventude atual, segundo Galimberti, é uma alfabetização díspar: desenvolvida precocemente em termos tecnológicos, informacionais e sexuais, por um lado, protelada no que se refere ao amadurecimento afetivo e emocional, por outro. Numa palavra, os jovens hoje costumam chegar simultaneamente muito cedo e muito tarde. Muito cedo, quando se trata de um aprendizado técnico ou informático; muito tarde, quando está em jogo um projeto de longo prazo envolvendo a própria vida. É mais cômodo realizar experimentos provisórios e descartáveis do que firmar compromissos definitivos. Daí a substituição, em não poucos casos, do "namorar" pelo "ficar", para citar um exemplo bem prático.
Namorar implica relacionamento profundo. Exige mudanças de comportamento, que interpelam e questionam o cotidiano de cada um. Expõe o indivíduo ao confronto consigo mesmo e com a alteridade. Exige o difícil aprendizado do perdoar e aceitar o perdão. Obriga a pensar o passado e o futuro, numa perspectiva relacional. Já o ato de ficar se caracteriza por um momento de prazer passageiro, que não deixa maiores conseqüências nem cria raízes mais fundas. Até o nome e o endereço do outro/a podem ser ignorados. No caso de não dar certo, é bem mais fácil romper do que um compromisso sólido.
Mas, vale insistir, esse comportamento entre os adolescentes e jovens põe a nu um descompromisso mais geral da sociedade em que vivemos. Se as décadas anteriores foram fortemente marcadas pelo engajamento político, a luta pela justiça e o direito, o bem-estar social, nos tempos atuais prevalece o bem-estar pessoal, o "estar numa boa", o culto ao corpo e ao "eu" com a proliferação de academias, a veneração das celebridades... Se é verdade que Che Guevara, por exemplo, permanece no imaginário, nas tatuagens e nas camisetas de muitas pessoas, deixou de ser um convite à ação sociopolítica para tornar-se um ícone quase sempre inconsequente.
Entre tantos autores, alguns alertam com mais vigor para esse cenário de fixação sobre a falta de grandes referências éticas e para o retorno ao prazer pessoal como última referência. Zygmunt Bauman tem insistido com certa veemência sobre o rompimento do contrato social e das relações sólidas, que vão dando lugar a relacionamentos cada vez mais líquidos e temporários. Marc Augé, por sua vez, bate na tecla do esquecimento do passado e do futuro, em vista de um presente eterno e consumista, prática comum dos impérios, incluindo neste caso a tirania do mercado. Tirania é também o conceito que J.C.Guillebaud utiliza para enfatizar o prazer pelo prazer. Enfim, dois livros de Gilles Lipovetsky, só pelo título, ilustram bem essa convergência da civilização ocidental para as novidades, o consumismo exacerbado e o centralismo em si mesmo: o império do efêmero e a era do vazio.
O hóspede inquietante do filósofo Nietzsche incomoda por suas perguntas sem resposta, ou por sua enfermidade sem remédio. Num mundo sem referência de ordem moral, prevalece a liberdade de fazer o que se quer e o que se pode. O conceito de liberdade como "fazer o que constrói ou o que contribui para criar ambientes felizes e fraternos" entra em total esquecimento. E aqui, repetimos pela terceira vez, os jovens não passam de porta-vozes de uma espécie de "mal estar da civilização" muito mais amplo e profundo (Freud). Como termômetro, o jovem mede a temperatura social, cultural e política do momento.
Temperatura que se reflete de forma bem mais nociva, por exemplo, na corrupção histórica, endêmica e estrutural da política brasileira. Raro o dia que o Planalto Central não produz alguma notícia que faz estarrecer os pobres mortais da planície. Desvio de recursos públicos, tráfico de influência, prevaricação, superfaturamento, salários exorbitantes, toma lá dá cá, uso indevido do orçamento - são algumas das práticas corriqueiras dos representantes dos três poderes da União. Salvo raras e notáveis exceções, grande parte deles faz jus ao título da obra de Raymundo Faoro "os donos do poder". No palco da administração publica brasileira, o hóspede inquietante do niilismo e do relativismo dá margem ao sepultamento puro e simples da "ética na política". Em termos mais gerais, o projeto de conquistar e manter o poder, digamos com clássico Maquiavel, toma o lugar de um projeto de nação.
* Alfredo J. Gonçalves, CS, é superior provincial dos missionários carlistas e assessor das pastorais sociais.
Fonte: www.paroquiasantoafonso.org.br