Roberto Malvezzi (Gogó) *
Durante uma palestra de Gustavo Gutierrez na cidade do México, quando foi elaborado o Compêndio de Doutrina Social da Igreja da América Latina, um participante se levantou e lhe perguntou: "a Teologia da Libertação está morta?"
Ele olhou o rapaz com um sorriso e respondeu: "se ela morreu, eu não fui convidado para seu funeral".
Já citei esse fato em outro artigo, mas foi inevitável sua retomada diante das revelações do Wikileaks sobre uma conversa entre o representante do Vaticano e o embaixador dos Estados Unidos a respeito da América Latina, da atuação da Igreja Católica no continente, do crescimento dos evangélicos e, sobretudo, de uma tal "ressurreição da Teologia da Libertação".
Primeiro, chama a atenção a declaração do Monsenhor Stefano Migliorelli, afirmando que a fé por aqui é inconsistente, tendo a evangelização que recomeçar do zero, sendo ainda o continente praticamente um território de missão.
Que seja um território de missão até os bispos latino-americanos sabem, tanto é que o Documento de Aparecida vai ter como centro exatamente a missionaridade. Talvez aí já se explique porque ela se tornou central no documento, isto é, havia a mão de Roma por detrás.
Por outro lado, afirmar que a fé aqui é inconsistente é negar um povo continental. Nosso cristianismo nasceu sob a batuta da cruz e da espada, da escravização e redução indígena, do batismo dos negros nos portos e pelourinhos, da derrubada e usurpação dos templos incas, astecas e maias, da bíblia nas mãos de Cortés como senha para a matança dos Astecas. A matança chegou a tal ponto que Bartolomeu de Las Casas chegou a proclamar: "é melhor índios pagãos vivos, que índios cristãos mortos". Se os índios brasileiros fossem erguer uma cruz para cada um de seus mártires, o Brasil teria que resgatar seu nome de Terra de Santa Cruz.
Mesmo assim, nosso povo costurou sua fé a partir de baixo, de seus sofrimentos, mas também de sua insuperável alegria e fé na vida. Os santos, Maria, Jesus, são seus familiares, que estão no altar de suas casas, nas suas múltiplas manifestações religiosas. E que ninguém diga que aí está uma fé de segunda classe. Quem vive perto do povo sabe que ali está o lugar de encontro do Deus da Vida com seu povo simples. Aliás, o próprio Documento de Aparecida vai fazer justiça à fé popular, reconhecendo-a como uma fé autêntica e verdadeira.
Quanto à Teologia da Libertação - não há um cristianismo de libertação sem uma teologia correspondente -, nem está ressuscitando, nem jamais morreu. Deixou de ser hegemônica e passou a ser a teologia, a espiritualidade, a prática de minorias dentro da Igreja. Porém, não perdeu sua capacidade de fermentação.
Ela prossegue por razões muito simples de serem compreendidas por aqueles que são movidos pela com-paixão do Espírito de Jesus. Hoje no mundo existe um bilhão de famintos, 1,2 bilhões de sedentos e o planeta Terra pode estar entrando numa extinção em massa semelhante às outras cinco que já aconteceram. Deus não abandona seus deserdados, nem a Terra que criou.
Portanto, a opção pelos deserdados da Terra, e pela própria Terra, antes de ser uma opção da Igreja, é uma opção do próprio Deus.
* Roberto Malvezzi (Gogó) é assessor da Comissão Pastoral da Terra.
Fonte: Roberto Malvezzi (Gogó)