Políticas e gestão no rumo da sustentabilidade

por Vilmar Berna *

Entre as declarações de políticas e promessas ambientais e a realidade, existe um vazio proporcionalmente tão grande e profundo quanto nossa capacidade de sonhar. Um vazio que pode e precisa ser preenchido com gestão, planejamento, investimento de tempo e dinheiro.

Apesar da mudança para a sustentabilidade ser tarefa e obrigação de todos, aquelas pessoas e organizações já conscientizadas e engajadas no processo de mudança devem ser o exemplo que querem ver no outro, até por uma questão de credibilidade do discurso e promessas.

Penso especialmente nas empresas com políticas de responsabilidade social, nas prefeituras com secretarias de meio ambiente, nos órgãos de controle e fiscalização ambiental, nas comissões de meio ambiente de parlamentos, nos organizadores de eventos ambientais, nas escolas com programas de educação ambiental ou cursos na área de meio ambiente.

Deveriam ser os primeiros a demonstrarem na prática a implantação de políticas e gestão ambiental que vá além do marketing.

Deveriam ter um sistema de gerenciamento de resíduos que vá além do descarte ambientalmente correto de um produto, para abranger não apenas a ponta final do consumo, mas todo o ciclo do produto, desde o processo de aquisição adotando uma política ecológica de compras que considere a redução do consumo, a origem ambientalmente correta dos produtos, a substituição de tecnologias sujas e desperdiçadoras de recursos por outras mais ecoeficientes e reaproveitáveis, e dê preferência a produtos locais com menor pegada carbônica e promova a geração de trabalho e renda na base da pirâmide social.

E mesmo assim, ainda com uma gestão ambiental cuidadosa e responsável, não existe impacto zero. Então, deveriam fazer o inventário das pegadas ambientais como a pegada hídrica, a pegada florestal, a pegada carbônica, e compensar e neutralizar essas pegadas através, entre outras soluções, do plantio de árvores nativas da região para a produção de água, recuperando nascentes e matas ciliares, preservando as árvores das unidades de conservação, recuperando as árvores das reservas florestais legais, etc.

Também deveriam adotar uma política de comunicação ambiental para todos os públicos de interesse, pois a informação sobre os bons resultados ambientais ajuda a fortalecer a motivação dos que estão produzindo as mudanças e estimula a caminhada de quem ainda não começou.

E ainda mais. Deveriam interligar a política de gestão ambiental com a de educação ambiental, pois a mudança não se dá de fora para dentro e muito menos por portaria de cima para baixo, mas de dentro para fora.

A informação e a educação ambiental que libertam
Tanto a informação quanto a educação têm o poder de influir e estimular novas mudanças, valores, atitudes, comportamentos. O desafio está em usar uma linguagem que seja acessível a todos, o que pode ser uma grande dificuldade numa sociedade ainda com grandes massas de analfabetos funcionais, pessoas que sabem ler e escrever, mas não conseguem compreender as idéias contidas num texto.

As mudanças dependem de nossas escolhas e estas dependem das informações e valores que recebemos.

O que temos nas mãos é a possibilidade aqui e agora de arregaçar as mangas e trabalhar pelas mudanças, a partir de nós próprios, assumindo que somos os resultados de nossas escolhas, e que o nosso sucesso ou fracasso resultarão de nossos sonhos e da capacidade realizá-los.

As raízes da crise
A nossa doutrinação para o consumismo começa nas escolinhas de catecismo que se transformaram a babá-televisão e a babá-videogame, quando somos crianças, e estamos mais vulneráveis aos apelos criativos do marketing e da publicidade e, neste ponto, o Brasil é famoso pelo talento dos seus profissionais que ganham prêmios atrás de prêmios. Este talento tem sido colocado mais a serviço da escravização da sociedade ao consumismo que à sua libertação.

As crianças brasileiras passam em média 4 horas e 54 minutos diante da televisão enquanto ficam em média 4 horas e 26 minutos na escola, segundo pesquisa do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana. A cada dois ou três minutos, durante a programação infantil, as crianças são doutrinadas ao consumo através de anúncios criativos e bem elaborados que as estimulam a pedir aos pais para comprar brinquedos, roupas, alimentos. Para manter o alto padrão de consumo, os pais precisam trabalhar, e muito fora de casa, e com eles fora do caminho, sem possibilidade de estabelecer limites ou refletir sobre valores com as crianças, a babá-televisão fica à vontade para cumprir o seu papel de associar entretenimento a consumo, felicidade a consumo, prazer a consumo. Na maioria dos países democráticos, este assédio além de considerado imoral é ilegal. No Brasil, existe mais de uma centena de iniciativas no parlamento para tentar impedir ou limitar a propaganda para a infância, mas sem sucesso até agora.

Se mudar já não é fácil, persistir na mudança é mais difícil ainda. O consumismo equipara-se a uma espécie de vício. Nossa sociedade é viciada em desperdício, em consumir além das necessidades e mesmo além da capacidade de pagar, o que torna aos consumidores uma espécie de escravos, entregando tempo de vida, talento, criatividade, para produzir numa ponta e consumir na outra.

Por detrás de todo vício existem raízes e motivos mais profundos, que na maioria das vezes permanecem ocultos, no consumismo também.

Há muito o consumo deixou de atender nossas necessidades materiais para atender as nossas necessidades espirituais.

É através da capacidade de consumir que se dá o rito de passagem para a vida adulta, em nossa sociedade. Um jovem só é devidamente aceito depois que alcança sua autonomia para consumir sem depender dos adultos.

É também através da capacidade de consumir que se dá o pertencimento à sociedade. Somos avaliados a que classe social pertencemos pelo poder do consumo. Daí a associar poder de consumo à importância social é um pulo, explorado pela propaganda para vender produtos com a promessa de felicidade e reconhecimento social, levando muitas vezes as pessoas a se endividarem, não para atender a necessidades materiais, mas a desejos espirituais de estarem na moda para serem reconhecidos socialmente ou se sentirem bem.

Numa sociedade assim o valor das pessoas não é mais medido pelo seu caráter ou sabedoria, mas na quantidade e na qualidade dos bens que demonstra possuir ou que é capaz de doar ou de presentear. O afeto precisa ser traduzido em bens materiais, em lembrancinhas e presentes, transformando datas comemorativas em pretexto para mais consumo como o Dia dos Namorados, das Crianças, dos Pais, o Natal.

Sustentabilidade e desigualdade social
Não basta mudar na superfície atacando os efeitos, é preciso ir à raiz do problema e atacar as suas causas.

De maneira simplificada, a crise não é ambiental, é civilizatória, ética, moral, espiritual. As mesmas forças que superexploram o Planeta são as que superexploram o trabalho humano e a grande arma de dominação não são os mísseis ou correntes, mas a manipulação da informação. Pelo lado ambiental, a crise se baseia num sistema de superexploração dos recursos naturais fundamentado no princípio do crescimento crescente e ilimitado, em larga escala, com a falsa idéia de que o Planeta é uma propriedade da espécie humana e seus recursos são inesgotáveis. Pelo lado social, baseia-se na superexploração do trabalho humano, que cria e se prevalece das desigualdades sociais como forma de se apropriar mais e melhor dos recursos naturais que são patrimônio comum de todos.

Então, mudar não pode significar a mesma coisa para todos. Como a pegada ecológica é desigual, os que pegam demais e desperdiçam terão de pegar mais leve e com maior responsabilidade, entretanto, não devemos enganar ou sermos ingênuos neste ponto. Gerações antes de nós tentaram que os poderosos cedessem em seus privilégios e poder, só conseguindo a duras penas e com grande sofrimento. Então, não será agora que conseguiremos apenas no amor e no convencimento. Os poderosos só pegarão mais leve se virem alguma forma de continuar lucrando no novo modelo, caso contrário, aproveitarão os recursos que sobrarem dos que estiverem pegando leve - por escolha própria ou por impossibilidade mesmo - para pegarem mais pesado ainda.

A saída passa pela mudança para outra economia. Os que ganham dinheiro com as tecnologias sujas e impactantes do Planeta precisam ser estimulados a ganhar dinheiro com as tecnologias limpas e perdê-lo se escolherem persistir com as antigas práticas poluidoras. Os consumidores conscientes podem ajudar, mas não é o mercado quem cria as regras, ele apenas aproveita as oportunidades e só consegue ser uma solução para quem está dentro dele e tem dinheiro. Para os demais, são necessárias políticas públicas. Os lucros dependem de existir um Estado que estabeleça as regras do jogo e seja capaz de garantir que as regras valham para todos, e, claro, que não gaste mais do que arrecada, para não ter de sangrar a parte da população que paga impostos com uma sobrecarga que torne melhor negócio produzir na China, na base do trabalho quase escravo e consumindo energia a partir do carvão.

O Planeta é um só, e não significa mudança deixar de poluir aqui para financiar a poluição e a exploração injusta do trabalho humano do outro lado do Planeta.

Os quatro pilares da mudança para a sustentabilidade
Não se pode ser ingênuo de imaginar que todos querem mudar. Alguns irão reagir para manter as coisas como estão, ou por insegurança quanto a um futuro que desconhecem ou para manter privilégios e lucros.

Uma política para mudança deve considerar quatro pilares. O primeiro é o da informação que esclarece e convence, pois a maioria das pessoas colabora e muda naturalmente apenas recebendo a informação sobre como proceder diante das mudanças.

Outra parcela precisa de sensibilização, de formação, de treinamento, e por isso a educação é o segundo pilar da mudança, uma educação que promova novos valores para a mudança.

O terceiro pilar é o do incentivo, pois muitos se movem se tiverem alguma vantagem, ou reconhecimento, ou lucros.

O quarto pilar é a punição para aqueles que mesmo sabendo das novas mudanças e dos estímulos, escolhem resistir e permanecer com as mesmas práticas anteriores, ou preferem ir mais devagar, assumindo riscos de forma calculada e ajustando condutas.

As várias faces da mudança
Precisamos sonhar com a possibilidade de um futuro, de um mundo melhor, pois os sonhos nos motivam para a ação, nos animam a romper com a inércia e a suportar a dor do esforço no rumo a outro jeito de ser e estar no Planeta e na sociedade, ambientalmente sustentável e socialmente mais justo. Os sonhos nos dão energia para as boas práticas e a confiança de que é possível.

Mudar é um processo com várias etapas. A primeira delas é em nosso mundo interior, onde criamos e recriamos nossas utopias e inventamos e reinventamos o mundo. Como uma espécie de iceberg, a parte visível de nós é a menor. A maior parte do que somos, nosso mundo interior, é oculta aos sentidos e é onde habitam nossos sonhos, desejos, subjetividades. Então, antes de mudar, antes de transbordar em boas práticas, precisamos estar cheios de boas idéias, de boas intenções, de boa motivação, dai a importância de uma informação e educação para a sustentabilidade, para que nossos sonhos e idéias não sejam comprometidos por falsas informações e falsos valores, que apenas aprofundarão a crise e não nos farão evitar o colapso já anunciado.

É natural que entre a intenção e o gesto exista um tempo de maturação para que promessas se transformem em realidade. Se os sonhos forem pouco ambiciosos - apenas para produzir uma pequena mudança, o esforço requerido para realizá-los será menor, mas os resultados podem nem valer à pena. Não adianta fazer pouco e tentar compensar depois no marketing, por que o tiro pode sair pela culatra, e uma reputação manchada é de difícil recuperação depois. Se os sonhos forem grandes demais, parecerão inatingíveis. Ainda assim poderão valer a pena, pois podem nos ajudar a seguir em frente, apesar das adversidades. Muitas mudanças na Humanidade começaram em pequenos desvios, às vezes imperceptíveis, como o empreendedorismo dos tropeiros que se arriscavam no comércio ambulante entre as cidades da Idade Média e que resultaram no mercantilismo e no fim da estrutura feudal de poder.

A maneira como cada um lida com as mudanças é diferente de um para outro. Enquanto uns se limitam a reclamar, geralmente dos outros, e se satisfazem em encontrar alguém para colocar a culpa, outros tentam encontrar um jeito de fazer a parte que é possível ser feita. Enquanto uns só conseguem ver o que está errado, outros só querem saber do que pode dar certo, e outros, ainda, preferem manter um olho no lado cheio do copo e o outro no lado vazio, aprendendo tanto com as boas práticas quanto aprendendo com os erros alheios.

Precisamos ajustar nossas percepções para saber aproveitar as oportunidades como elas se oferecem e não como gostaríamos que aparecessem. E saber lidar com a frustrações e com a dor do esforço e da incapacidade de alcançar certos objetivos, por que talvez ainda não seja a hora ou ainda não estejamos prontos.

Alguns sonhos podem ser sonhados sozinhos, e ainda assim serem possíveis de se realizar, como o de sermos consumidores mais responsáveis, ou menos gananciosos e mais solidários. Outros, devido à complexidade e ao tamanho da mudança, precisam ser sonhados juntos, e requerem o esforço de sensibilizar e convencer aos demais. A mudança de uma sociedade inteira para a sustentabilidade é uma obra coletiva, que irá requerer não só a ajuda de muitos, mas por muito tempo. As catedrais da Idade Média, por exemplo, levavam gerações para serem concluídas, e ainda assim puderam ser realizadas por que existiram pessoas que sabiam que se não fizessem bem a sua parte, a geração que viria depois teria de começar do zero. Ainda que não colhamos os frutos agora, terá valido a pena ter começado a luta pela mudança, pois poderá ser a única esperança de futuro para os que virão depois de nós.

* Vilmar Sidnei Demamam Berna é escritor e jornalista, fundou a REBIA - Rede Brasileira de Informação Ambiental (www.rebia.org.br ) e edita deste janeiro de 1996 a Revista do Meio Ambiente (que substituiu o Jornal do Meio Ambiente) e o Portal do Meio Ambiente ( www.portaldomeioambiente.org.br ). Em 1999, recebeu no Japão o Prêmio Global 500 da ONU Para o Meio Ambiente e, em 2003, o Prêmio Verde das Américas - www.escritorvilmarberna.com.br

 

Fonte: www.rebia.org.br

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