Gursen De Miranda *
Quando juridicizei o estudo do posseiro (De Miranda: 32) destaquei que o típico caboco vive às margens dos rios, igarapés, furos e paranás, totalmente alheio ao sistema jurídico vigente e desconhece o regime de propriedade privada do capitalismo selvagem dos dias atuais. Para esse trabalhador rural o importante é estar à beira do rio de onde tira seu alimento e serve de via de acesso à cidade; numa zona bem delimitada de terra extrai o açaí para beber e, numa área mais alta, cultiva um roçado de mandioca para obter a farinha, o que complementa sua alimentação. A caça é feita somente quando o peixe não vem, quando o rio está panema. O extrativismo é sua atividade "econômica" principal, pois, em alguns casos, existe o artesanato rústico com seus paneiros, abanos e coisas mais. A terra como terra não tem nenhum valor; o importante é o que a natureza produz sobre essa terra.
O caboco, historicamente, é reconhecido pelos brasileiros em geral como o tipo humano característico da população rural da Amazônia; como o homem do campo da Amazônia. Nesse sentido, caboco é o amazônida típico, essencialmente rural e, normalmente, ribeirinho. Inegavelmente, o caboco faz lembrar a figura de uma pessoa no ambiente amazônico. Portanto, caboco é uma designação específica e exclusiva do amazônida do âmbito rural, especialmente o ribeirinho.
Certamente, na Amazônia, também existem os trabalhadores rurais, com características da modernidade, chegados pela necessidade nas diversas levas de migrantes e pela esperança para os "grandes projetos".
É oportuno destacar que, na Amazônia, caboclo é coisa de dicionário. O termo usado, normalmente é caboco, tanto no Pará, como no Amazonas, no Amapá ou em Roraima. Não observei em Rondônia e no Acre, e ainda tem o Tocantins. Aliás, em Roraima, o indígena que já assimilou os elementos culturais do não índio também é chamado de caboco, considerando-se a interação e a possível mestiçagem, pois, algumas malocas têm tuxaua não índio.
Ademais, não pretendo, nos limites deste trabalho, perquirir a etimologia da expressão caboclo. Se deriva do tupi caa-boc, "o que vem da floresta"; se do tupi kari'boca, "filho do homem branco"; ou se "caboclo foi inicialmente usado como sinônimo de tapuiu, termo genérico de desprezo que os povos indígenas usavam quando se referiam a indivíduos de outros grupos" (Lima: 9).
O certo é que não existe, no Brasil, uma política atuante direcionada aos interesses regionais, preocupada com o bem estar e a produção de alimentos para o povo amazônida. Os organismos internacionais, na mesma linha, ficam mais preocupados com os bichinhos e as plantinhas da Amazônia, atentos a sua água, a sua biodiversidade e ao seu potencial genético, e abstraem as pessoas nascidas e criadas na região, com suas necessidades naturais.
O índio, desde o período colonial, com a Carta Régia de 10 de setembro de 1611, tem ampla legislação amparando seu direito às áreas que tradicionalmente ocupa. O negro, com a Constituição Federal, de 1988, conquistou o direito às áreas quilombolas (ADCT: art. 68). Nada dizem sobre o caboco ribeirinho da Amazônia.
Raras são as pesquisas etnográficas, antropológicas ou sociológicas sobre o caboco, até o final dos anos 60 eram praticamente inexistentes.
A ficção literária foi a única fonte de conhecimento sobre o caboco. A literatura amazônica reconhece o caboco como o principal tipo humano da Amazônia. Exemplo marcante é o Manuel dos Santos Prazeres e a Maria de Todos os Rios descritos por Benedicto Monteiro, maior romancista vivo da Amazônia, cm Verde Vago Mundo, Minosauro, A Outra Margem, Aquele Um, Maria de Todos os Rios.
Na seara do Direito a abordagem sobre o caboco é inexistente. O caboco não é reconhecido como sujeito de direito na Amazônia. O Direito não apreendeu a importância que a figura merece no contexto amazônico. Não existem estudos jurídicos sobre a figura do caboco. Por certo, não é por acaso.
O caboco é um exemplo de adaptação do ser humano ao ambiente, ou seja, teve habilidade suficiente para obter os meios necessários para viver no vale amazônico.
O caboco, no âmbito agrário amazônico, tem como principal atividade econômica o extrativismo agrário (animal e vegetal), com destaque à pesca artesanal e a agricultura temporária (de sobrevivência); ocupa um ambiente de várzea ou terra firme; tem fortes laços de parentescos locais com os compadres, professa religião do "mundo dos encantamentos" e o catolicismo popular, tem hábitos alimentares peculiares e padrões de moradia distintos. Come farinha e dorme em rede.
Como bom caboco do centrão da Ilha de Marajó, lá da cidade de Anajás, pelo menos uma vez por semana tomo mingau de farinha na casa de meus pais, tomei muito chibé (farinha com água) acompanhado de um camarão ou um peixe salgado, um charque, tudo assado na brasa; sempre lembro do bolinho doce de farinha que minha mãe fritava à tarde para merendarmos; meu pai, com o ar de seus 85 anos de idade, todos os dias, após o almoço, bebia uma boa cuia de açaí com farinha. Tenho certeza que os italianos, se conhecessem, colocariam farinha no macarrão - é uma delícia.
Eu sou caboco. Sou caboco amazônida. Caboco marajoara.
* Gursen De Miranda é Presidente da Academia Brasileira de Letras Agrárias, professor-adjunto da UFRR e juiz de Direito de Roraima. Publicado na Folha de Boa Vista, de 15 de junho de 2005, p. 02.
Fonte: Folha de Boa Vista