Augusta Viapiana *
Quem ama e acredita não se rende facilmente.
Missionária há 35 anos em Roraima, sou uma pessoa feliz, pois tenho a convicção de estar contribuindo para o crescimento do Reino de Deus entre os Povos Indígenas. Sou neta de imigrantes italianos, que chegando ao Brasil, instalaram-se na colônia gaúcha Nova Pádua, região conhecida ainda hoje, pelos parreirais e vinho saboroso. Venho de uma família numerosa - somos ao todo 14 filhos. Desde cedo em nossa casa aprendia-se a ver a vida, embora difícil e sacrificada, com alegria e otimismo. Meu pai foi um homem firme e até severo na educação dos filhos. Seu olhar de aprovação ou reprovação era mais que suficiente e todos entendíamos a sua linguagem.
O despertar da vocação
A comunidade católica local era composta de descendentes de italianos, poloneses e alemães. Entre as famílias havia muita harmonia, colaboração e partilha. Neste clima eu fui crescendo e amadurecendo a minha vocação cristã e também a vocação religiosa e missionária. Como adolescente e jovem, fazia parte do grupo da Pia União das Filhas de Maria da comunidade e era catequista. Gostava muito das festas e trabalhos da Igreja; e também, participava dos torneios de futebol e baralho organizados pela comunidade. Um dia, numa reunião de adolescentes e jovens, já no município de Três de Maio, o pároco, padre José Radici, imc, tratou o tema da vocação, como o chamado que Deus faz a cada pessoa e a necessidade de dar uma resposta. Ouvindo, aquilo foi despertando em mim um forte interesse pela vida religiosa e pela missão, pois o padre terminou o encontro contando fatos de missionários e missionárias da Consolata que anunciavam o Evangelho na África. Voltei para casa dizendo que queria ser missionária. Percebi logo que o meu entusiasmo se chocou com o desapontamento do meu pai. Pessoa de fé e de Igreja, provavelmente, ele nunca havia pensado que um membro da sua família poderia sair daquela normalidade, que era a de constituir uma família. E essa questão levou tempo para ser resolvida.
Simpatia pela Consolata
Partir em missão para a África! Isso era muito distante para eles. E em último caso, eu poderia escolher uma congregação local sem querer ir para o outro lado do Atlântico. Mas, eu me sentia atraída por aquela e ponto final. Encurtando a história, eu contava com apenas 17 anos quando me separei da minha família para fazer parte da Família da Consolata. Os primeiros dias foram bastante difíceis. Mas, eu sentia dentro de mim uma grande força e dizia com meus botões: "o ideal missionário é muito grande; deve ser por isso que alcançá-lo é difícil".
Como qualquer candidata, fui acolhendo e vencendo as etapas da formação religiosa, missionária e profissional, até que chegou a hora de ser enviada para a missão. Eu estava muito contente. Definitivamente, não iria para a África; mas para o extremo norte do Brasil: Roraima, onde missionários e missionárias da Consolata já atuavam há anos, especialmente, no campo da saúde e da pastoral indígena. Especializada em enfermagem, por alguns anos trabalhei em hospitais, postos de saúde, como em Caracarai, o único posto que atendia o povo daquela região e mais os funcionários das firmas que estavam abrindo a Estrada 174, ligação Boa Vista-Manaus. Diante da urgência do momento, tive que aprender a detectar doenças tropicais como malária e hepatite e a imobilizar fraturas. Porém, a obstetrícia sempre foi o meu forte. As várias expe-
riências foram me firmando na profissão e dando-me agilidade nos diagnósticos, o que contribuiu para salvar muitas vidas. No hospital eu tinha sempre a orientação dos médicos, mas, longe deles, no interior, em casos graves e difíceis, eu devia apelar à proteção divina - que, aliás, nunca me faltou - e à minha experiência.
Com o Povo Macuxi
A disponibilidade de deixar um lugar e recomeçar tudo de novo num outro - o que não é nada fácil - é o que ajuda o missionário e a missionária a não se estagnar; a estar sempre aberto ao novo, ao diferente. A região de Normandia compreendia o Baixo Cotingo e a Raposa Serra do Sol - RSS, em Roraima. O objetivo proposto era o de melhorar a área da saúde que estava precária e formar catequistas para a coordenação das comunidades e para realizarem os cultos dominicais nos vários grupos. Cuidar da vida, física e espiritual das pessoas é uma missão que empolga. Procurar que todos tenham boa saúde, que as mães cheguem felizes à realização dos seus partos, não é menos importante que preparar e acompanhar as pessoas no crescimento da fé. Amei esse trabalho que teve a duração de 10 anos.
Crime e destruição
Surumu é outra área indígena onde atuei. Nessa comunidade o trabalho foi um pouco diferente. Era realizado em equipes mistas, compostas por missionários e missionárias da Consolata, missionários de outra congregação e leigos missionários. Uma experiência muito rica, embora com desafiadoras exigências de adaptação. Porém, tudo foi interrompido com o triste episódio da "queima da Missão de Surumu", em 2005. Na missão funcionava o centro de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol ou Escola Surumu, lugar que teve, e continua tendo, uma grande importância histórica na caminhada dos indígenas e por isso, vinha sendo alvo de ameaças e ataques pelo poder econômico e político dos arrozeiros. Com a homologação da terra, estas ameaças aumentaram. Porém, as investidas contra a Escola Surumu, ao invés de intimidar, iam tornando os alunos mais conscientes na luta pela autonomia dos Povos Indígenas. E na madrugada de 17 de setembro de 2005 o crime aconteceu. As chamas criminosas sepultaram anos e anos de trabalho incansável de muitos missionários, missionárias e voluntários leigos em favor da formação dos indígenas. Todos nos perguntávamos: por que tanta maldade contra um patrimônio tão respeitado e amado por centenas de jovens, adultos e crianças indígenas, que ali começavam a ver a própria vida com olhos diferentes e cheios de esperança? Mas, o Povo Indígena não se rendeu. Ergueu a voz e o mundo todo ouviu o seu grito: "Vocês destruíram nosso Centro, mas jamais conseguirão destruir os nossos sonhos". De fato, hoje, com o apoio de muita gente, eles já reconstruíram os dois dormitórios masculinos e a cozinha. Faltam ainda, o hospital, a igreja e o alojamento feminino. Com determinação e união de forças hão de chegar lá.
Quem ama persevera
A partir desse fato, nós irmãs, tivemos que voltar a morar em Boa Vista; mas, continuamos visitando e apoiando as comunidades indígenas de Surumu, mesmo com todas as dificuldades da distância. O que deixa a gente feliz é constatar que os Tuxauas com suas lideranças estão muito animados e esperançosos quanto ao futuro do seu povo. Agora que a turbulência maior passou, eles planejam com liberdade, garra e coragem, seus programas de desenvolvimento de auto-sustentabilidade. E nós que vivemos com eles, na pele, a dura experiência, somos muito gratos a Deus pela sua força, coragem e contínua proteção. (ver matéria sobre a Raposa Serra do Sol nesta edição, pag. 28-29).
* Augusta Viapiana, MC, é missionária em Roraima.
Publicado na edição Nº05 - Junho 2010 - Revista Missões.
Fonte: Revista Missões