Eduardo Benes *
Quem come minha carne e bebe meu sangue tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia"(Jo 6,54). Diferentemente do hinduísmo, o cristianismo rejeita a reencarnação e tem como fundamento de sua fé a ressurreição de Cristo. Além disso crê que Jesus é o Filho, Deus com o Pai e com o Espírito Santo.
O Mistério da Trindade Santa e o mistério da encarnação do Filho constituem os dois mistérios centrais da fé Cristã. Dizer que Deus é Amor é o mesmo que dizer que Deus é Uno e Trino. Em Deus temos o amante (Pai), o amado(Filho) e o amor(Espírito). Tudo o que o Pai é, Ele dá ao Filho ser. E dessa comunhão jorra infinito o amor pessoal que é o Espírito Santo. Imagine o(a) leitor(a) um Deus unipessoal. Que tristeza! Seria uma infinita solidão. Criaria o homem por necessidade, não por transbordamento.
A Igreja tem a inabalável convicção de que Jesus é o Filho, enviado pelo Pai na força do Espírito. Este mistério nada tem a ver com reencarnação. Houve um instante em que você, leitor(a) começou a ser uma humanidade concreta. Só que você não preexistia, foi criado por Deus naquele instante. Jesus, não. Ele preexistia como pessoa divina, criador do mundo com o Pai e o Espírito, e houve um momento em que Ele, o Verbo - o Filho - começou a ser um de nós, no seio da bem-aventurada Virgem Maria.
Ele veio e se fez em tudo semelhante a nós, exceto no pecado, para reerguer-nos de nossa miséria e enriquecer-nos com sua vida, a vida eterna. É no encontro com Ele e na força de sua graça que o ser humano pode purificar-se do pecado e chegar à plenitude da vida em Deus. Nesse sentido a teologia cristã teve que se bater contra uma heresia conhecida como Pelagianismo. Pelágio ensinava que Jesus apenas nos deu um bom exemplo, o melhor exemplo, ensinou-nos o caminho e que, firmados apenas em nossa liberdade, poderíamos chegar à perfeição espiritual. Aliás, a salvação não consiste, em primeiro lugar, em sermos perfeitos, mas em acolhermos o amor misericordioso do Pai.
A melhor e mais bonita túnica, o anel no dedo, as sandálias para os pés machucados, o banquete da vida com músicas e danças, é consequência do amor que nos cobre de beijos. (cf. Lc 15,22-24). Pelágio, como tantos em nosso mundo, se esqueceu de que Ele afirmara: "Eu sou o caminho, a Verdade e a Vida"(Jo 14,6). A fé cristã afirma a absoluta necessidade da graça - luz e força divina atuando em nós - para que nossa liberdade possa aderir plenamente ao bem. A consciência de sermos pecadores e o grito pela misericórdia divina é que nos coloca no caminho da salvação. Também Platão admitia a reencarnação. O corpo não entraria na constituição da identidade da pessoa humana: seria apenas um cárcere da alma ou, quando muito, um instrumento quase exterior. Aristóteles pensava diferente: matéria e forma são constitutivos essenciais de todos os seres materiais.
A alma humana é a forma que atua a matéria e faz de nós seres humanos. Por isso Santo Tomás, o grande filósofo cristão da Idade Média, toma do hilemorfismo aristotélico as bases de sua antropologia. Ser homem e ser mulher não são expressões passageiras e secundárias de ser humanidade. Ser mãe não é ser a quarta ou a quinta numa série de gestações onde volta de novo a mesma pessoa. Por isso o cristianismo católico mantém firme a convicção de que Maria, bem como todas as mulheres santas, continuam mulheres no mistério da eternidade e os homens da mesma forma.
Uma única vez nascemos neste mundo, criados por Deus no ato mesmo no qual somos gerados. E morremos uma só vez: "O destino de todo o homem é morrer uma só vez e depois vem o julgamento"(Hb 9,27). A existência do purgatório é ainda expressão do amor misericordioso do Pai. O amor dará o acabamento ao processo de nosso voltar para o Pai. O egoísmo é fechamento. Provavelmente muitos de nós morreremos em estado de amizade com Deus, mas sem ter chegado a abertura total de nosso ser para Deus.
Ao morrermos, em estado de graça, experimentaremos, como jamais experimentamos nesta existência, o amor de Deus. E haveremos de exclamar: "Deus me ama tanto e amei tão pouco no tempo da vida". Esta é a dor da purificação que vem logo depois da morte. Mas seu amor nos puxará para dentro de seu mistério e seremos totalmente livres para amá-lo eternamente. Nosso rosto espelha nossa alma, nossa identidade nesse mundo.
Teremos no céu um rosto novo, o mesmo rosto que tivemos na terra, mas transfigurado, iluminado como o de Cristo ressuscitado. Isto se manifestará no final quando Ele se vier para julgar a história humana enfim chegada a seu termo. É parte integrante de nossa fé o crer na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém.
* Dom Eduardo Benes, Arcebispo de Sorocaba-SP
Fonte: www.cnbb.org.br