Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Os historiadores e estudiosos analisam a guerra de Tróia como um fato recheado de mitologia. Só Homero e Virgílio, porém, foram capazes de produzir obras como a Ilíada, a Odisséia e a Eneida. Todos nós, pobres mortais, quando deparamos com um bloco de mármore, imediatamente intuímos seu peso, resistência e durabilidade. Mas Michelangelo foi capaz de extrair dele Lá Pietà, uma das mais belas obras da humanidade.
Os mesmos pobres mortais, ao tocarem a pedra, logo identificam a consistência da matéria bruta. Antonio Francisco de Lisboa, o Aleijadinho, a transforma nas imortais esculturas dos profetas, em Congonhas do Campo - MG. A multidão que transita pelas ruas da cidade escuta ruídos, pisa o asfalto e atravessa a selva de concreto. Charles Baudelaire, Vinicius de Morais e Fernando Pessoa forjam a partir dela a rima, a poesia e a música. O sertanejo desbrava os campos e os cultiva para sobreviver. Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Gabriel García Márquez descobrem no Grande Sertão da existência humana as mil veredas por onde a alma descortina os mistérios da vida.
Todas as pessoas guardam na memória os momentos mais significativos da própria existência, fazendo deles verdadeiras pérolas da trajetória pessoal, familiar, comunitária. Neles se apóiam como trampolins para novos passos. Mas somente Marcel Proust e Jaime Joyce fizeram desse resgate uma monumental busca do tempo perdido, seguindo as pegadas de um Ulisses contemporâneo. Juscelino Kubitschek empreendeu o sonho de uma nova capital, mas foram Lúcio Costa e Oscar Niemayer que lhe conferiram o desenho e as curvas de uma nova estética urbana.
Essa é a diferença entre o artista e as pessoas comuns. Embora todos nós sejamos dotados de uma dimensão estética, são poucos os que conseguem expressá-la de forma tão viva, bela e profunda. A tradição os chama de gênios da arte: pintura, música, literatura, escultura, arquitetura, etc. Sua visão transcende o olhar do senso comum, elevando-se ou aprofundando-se no mistério da criação.
O mesmo ocorre com o místico. Também ele é um artista dos fatos cotidianos ou da história humana. Esta se apresenta como uma enorme matéria bruta, constituída de amores, dores e temores, sonhos lutas e esperanças. Em seus caminhos nos movemos em meio a um oceano turbulento de medos e angústias, tormentos e contradições. Mares e ventos bravios ameaçam constantemente nossas frágeis embarcações. A fúria das ondas desfaz ilusões, acumulam tribulações. Com freqüência, somos submetidos à travessia de áridos desertos e mutismos intransponíveis, como cegos tentando vencer a mais densa escuridão.
Na oração e na contemplação o místico é capaz de ver, por trás das nuvens sombrias e da tempestade, os raios de um sol radiante. Detecta as indecifráveis pegadas de Deus no chão duro e absurdo da história. Seu olhar transcendente as imagens do dia-a-dia, enxergando na provisoriedade traços indeléveis do absoluto. Transita pelas estradas do mundo como um peregrino em busca de algo sólido e definitivo. No mármore indefinido da trajetória humana, sabe identificar os caracteres deixados pela mão invisível dos anjos.
Aí está a química da oração e da contemplação. Da mesma forma que o artista transforma a pedra, as cores, os fatos e as notas musicais em obras primas para o patrimônio cultural da humanidade, o místico transfigura a matéria bruta do cotidiano em verdadeira arte. Confere-lhe, através da estética, um sentido oculto e profundo. Vários nomes poderiam ser citados. Em primeiro lugar, Jesus, Maria, Buda, Confúcio, Mestre Eckhart; mas também São João da Cruz, Santa Tereza de Lisieux, Santa Teresinha do Menino Jesus, São Francisco de Assis; e mais contemporaneamente, Madre Tereza de Calcutá, Dalai Lama, Dom Hélder Câmara, Oscar Romero, Cardeal Martini, entre tantos outros.
Mais que inteligência, entra em cena a sabedoria. É ela que realiza a grande metamorfose dos conflitos e discórdias em pedras vivas para a construção da justiça e da paz. O místico, depurando os instintos, paixões e necessidades aparentes e superficiais, mergulha no desejo mais profundo do ser humano: regressar ou avançar para à própria casa ou pátria. A sede do além, do infinito, do absoluto o faz caminhar sempre, superar a cada dia os próprios passos, descortinar novos horizontes. Sabe que nenhuma formação humana, social, econômica, política ou cultural, por mais perfeita que seja, esgota o desejo insaciável de repousar no mistério da eternidade. Aliás, místico vem de mistério, significando aquele que transcende as aparências comuns e procura entrar em sintonia com o ser infinito.
O caminho não é espontâneo. Exige esforço, disciplina e persistência. Exige intensos momentos de silêncio e escuta. É uma tarefa longa e extremamente laboriosa. Tarefa que começa e recomeça a cada dia. Nele há avanços e recuos, luzes e sombras; desertos prolongados, seguidos de deslumbrantes iluminações. Como num dia instável, o sol se revela e se esconde. O importante aqui não é tanto obter a água viva que nutre e mata a sede momentânea, mas aprender o caminho da fonte.
Enquanto o artista ao terminar sua obra volta a ter sede e parte para nova criação, o místico também é guiado por uma sede que o eleva a patamares cada vez mais altos, ou a profundezas cada vez mais incógnitas. Dessa contínua superação dos próprios limites, forja-se o artista e o místico. Ambos, por vias diferentes e muitas vezes convergentes, engendram uma estética que confere beleza, sabedoria e sentido à existência humana. Numa palavra, todo artista tem algo de místico e todo místico tem algo de artista.
Fonte: Revista Missões