Dirceu Benincá *
Vivemos um período de crise socioambiental sem precedentes. Ela resulta de uma opção do capitalismo desenvolvimentista baseado na exploração desmedida dos bens naturais, na concentração da riqueza, no consumismo e na manutenção de gritantes desigualdades sociais. Sob a lógica do mercado total, aumentam cada vez mais as demandas por energia, o que exige a construção progressiva de barragens. É indiscutível a importância da energia e inimaginável viver sem ela. Entretanto, no processo de geração, distribuição e comercialização da mesma verifica-se uma série de problemas.
No conjunto dos efeitos negativos provocados pelas hidrelétricas, constam graves impactos de ordem social, ambiental e simbólica. No Brasil, são poucos os rios de médio e grande porte que ainda não foram barrados no mínimo em um ponto para a instalação de usinas hidrelétricas. De acordo com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a cifra dos expulsos de suas propriedades e locais de vida por tais projetos já transcende um (1) milhão de brasileiros, sendo que cerca de 70% deles não têm seus direitos garantidos. Dessa maneira, acabam por aumentar o contingente dos sem terra, sem trabalho e sem perspectivas, ampliando a fome, a violência e a miséria.
A presente pesquisa lança um olhar sobre este cenário, tentando entender o modelo energético vigente, vinculado de modo estreito aos impulsos do capitalismo, o qual se move pelo lucro a qualquer custo. Água e energia para a vida - O Movimento dos Atingidos por Barragens no Brasil (1991-2009) tem por objetivo principal analisar alguns aspectos da trajetória do MAB, sobretudo suas formas de organização e resistência aos grandes projetos hidrelétricos. Para tanto, investiga-se a articulação das questões sociopolíticas com a dimensão ambiental em sua história recente. Procura-se também compreender seu projeto e suas estratégias de ação, destacando os principais valores e práticas que emergem de suas lutas.
O assunto é abordado com base em duas categorias analíticas, quais sejam: desenvolvimento sustentável e cidadania ecológica. A noção do desenvolvimento sustentável dá suporte a múltiplas e divergentes visões. Os movimentos populares e outros sujeitos sociais questionam princípios constituintes do referido conceito, bem como determinadas finalidades do seu emprego. Nesse sentido, uma questão fundamental que emerge é: Como garantir um desenvolvimento que seja ao mesmo tempo socialmente justo, economicamente viável, politicamente democrático e ecologicamente sustentável? A indagação se configura crucial e complexa dado que o desenvolvimento "saudável", equitativo e equilibrado é obstaculizado pelos interesses capitalistas que geram concentração e exclusão, poluição e depredação.
Outro ponto que se busca compreender neste trabalho é o processo através do qual os indivíduos se constituem em sujeitos sociais. Em diferentes palavras, como as populações afetadas com a construção de barragens no Brasil podem resgatar sua dignidade, preservar seus direitos ameaçados e conquistar outros que jamais obtiveram. Tem-se como pressuposto que, ao fortalecerem a consciência coletiva de sujeitos de direitos e deveres, esses indivíduos se habilitam ao exercício de uma cidadania ecológica, como aquela que se caracteriza por uma visão mais integradora das diversas dimensões da vida humana.
Os posicionamentos teóricos, as múltiplas formas de resistências e denúncias, a defesa dos direitos dos atingidos por barragens, as conquistas e proposições concretas do Movimento ao longo de sua trajetória dão a estrutura da outra parte da tese. Nela, procura-se demonstrar que os objetivos e a luta do MAB não se restringem à obtenção de medidas paliativas e compensatórias, mas se voltam para a construção de um projeto energético distinto e, em última instância, para a instauração de uma sociedade sustentável, justa, solidária, democrática e protetora do meio ambiente.
A temática é tratada sob o enfoque sociológico, em constante diálogo com questões ecológicas e éticas, por considerar que o assunto requer essa importante interlocução de saberes. Para orientar a investigação, parti da hipótese de que o Movimento é um espaço privilegiado para construir a identidade política dos atingidos e fortalecer a sua cidadania em diversos aspectos, realidade que se mostrou amplamente verdadeira ao longo da pesquisa.
Para a elaboração do trabalho utilizei os seguintes recursos metodológicos: a observação participante, a entrevista com roteiros semi-estruturados e a análise de fontes primárias. Tive acesso à vida interna do Movimento, podendo consultar toda a base documental existente e as respectivas produções. Recorri a notícias, informações e textos diversos disponíveis em sites e jornais de circulação nacional e regional. Também desenvolvi estudo de amplo acervo bibliográfico em conexão com o tema em foco.
Durante o período de pesquisa e elaboração da tese, participei de diversas atividades como: Cursos do MAB realizados em Cajamar/SP e na Universidade Federal do Rio de Janeiro/RJ, com a presença de militantes e membros da coordenação do Movimento provenientes de todas as regiões do Brasil; reuniões em São Paulo com articuladores do Movimento oriundos de várias localidades dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro; encontros e debates em Eldorado/SP com população ameaçada pelas barragens do Vale do Ribeira/SP; assembleia dos atingidos/as pelas barragens do Rio Madeira, em Porto Velho/RO, entre outras.
Realizei 30h04min de gravações, sendo 23h50min de entrevistas e mais 6h14min de depoimentos, exposições e palestras. Entrevistei 12 pessoas (homens e mulheres), membros da coordenação do MAB e que continuam militando na base. Colhi depoimentos de outros 18 militantes atingidos por barragens, além de mais 31 pessoas: três bispos, um promotor de Justiça, um advogado, um senador boliviano, um cacique indígena, dois representantes de empresas construtoras de barragens, cinco professores e pesquisadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra/Portugal - onde desenvolvi estágio doutoral entre fevereiro e julho de 2009 - (entre os quais, Boaventura de Sousa Santos). Também dialoguei com oito professores (UNICAMP, USP, UFRJ, PUC/MG, PUC/Campinas), outros cinco militantes e estudiosos do Movimento ou de questões correlatas, bem como os expoentes Leonardo Boff, a ex-ministra Marina Silva, João Pedro Stédile e Frei Betto.
O primeiro capítulo do trabalho visa demonstrar o significado das barragens, normalmente apresentadas como sinônimo de progresso e desenvolvimento capitalista. Trata-se de pontuar os principais impactos diretos sobre as populações atingidas e sobre o meio ambiente, bem como os conflitos que emergem no processo de construção desses empreendimentos hidrelétricos - espécie de "dilúvios planejados". Em linhas gerais, procura-se descrever a situação das "vítimas", o que revela a legitimidade de sua organização e resistência.
No segundo capítulo, retrata-se de modo conciso o contexto econômico, sociopolítico, eclesial e ecológico no qual se deu a emergência dos submersos, isto é, dos atingidos por barragens, através das primeiras organizações regionais. Após circunscrever o nascedouro dessas iniciativas que posteriormente desembocaram na criação do MAB (em 1991) - como um movimento de alcance nacional -, apresento alguns elementos que considero centrais em sua trajetória, identidade e estrutura organizacional.
Os temas da ecologia, do desenvolvimento sustentável e da cidadania perpassam todo o trabalho. Na verdade, eles se constituem em grandes questões que permanecem como pano de fundo nas lutas empreendidas pelo Movimento dos Atingidos por Barragens. Com a finalidade de estabelecer um referencial teórico mínimo para dialogar com o pensamento e as práticas do MAB, desenvolvo, no terceiro capítulo, uma reflexão em torno dos referidos conceitos.
As concepções e a postura crítica do Movimento, sobretudo de membros de sua coordenação, acerca da questão energética, da perspectiva de desenvolvimento e dos princípios estruturantes do tipo de sociedade que defendem são analisadas no quarto capítulo. A democracia e a cidadania retornam sob a análise dos entrevistados, que apontam de maneira praticamente unânime a necessidade de construir outro sistema social mais justo e igualitário, identificado por eles com o socialismo.
O quinto e último capítulo objetiva explicitar diversas formas de resistência desenvolvidas pelo Movimento no âmbito do discurso e das ações concretas. Objetiva-se, com isso, vincular sua prática com um amplo conjunto de reações ao sistema capitalista em sua versão neoliberal, o que vem sendo caracterizado como globalização contra-hegemônica e/ou altermundismo. Em consonância com o mote da reflexão, também são elencadas algumas conquistas e proposições do MAB diante do atual modelo energético e sociopolítico, o que revela o perfil do seu protagonismo.
Nas considerações finais, retomo algumas questões que considero relevantes no conjunto do trabalho, bem como coloco em evidência alguns desafios que, a meu ver, o Movimento dos Atingidos por Barragens tem à sua frente. Apresento também sugestões que julgo pertinentes no que concerne à atuação do Movimento, visando à mudança de comportamentos da sociedade em relação à utilização da energia e à implementação de outro projeto no qual a água e a energia estejam a serviço da vida!
* Dirceu Benincá, doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP.