Enfrentando o terremoto e a herança colonial. Tecendo a solidariedade de povo a povo

Claudia Korol y Liliana Daunes *

Tradução: ADITAL

Diálogo de Claudia Korol e Liliana Daunes com Camille Chalmers(1)

No dia 27 de janeiro de 2010 foi difundida uma declaração de um conjunto de organizações sociais haitianas dirigida aos movimentos populares aliados, na qual marcam posição frente à catástrofe que sacode esse país e às perspectivas de reconstrução. Nessa carta, assinala-se a necessidade, apesar da dor, de "refletir sobre o que aconteceu e tirar dessa experiência trágica lições e as orientações que nos permitam continuar nosso incansável trabalho de construção de outro país capaz de vencer o ciclo do afundamento e da dependência e de colocar-se à altura dos sonhos de emancipação universal de seus fundadores e de todo o povo haitiano". E agregam: "nos comove profundamente a extraordinária solidariedade manifestada pela população da região metropolitana que durante os três primeiros dias após o terremoto soube responder com auto-organização, construindo 450 campos de refugiados que contribuíram para salvar milhares de pessoas prisioneiras dos escombros e tornou possível a sobrevivência de 1,5 milhão de pessoas graças ao fato de que partilharam comunitariamente todos os recursos disponíveis (alimento, água, roupa). Honra e respeito à população de Porto Príncipe! Esses mecanismos espontâneos de solidariedade devem desempenhar um papel essencial no processo de reconstrução e de reconceitualização do espaço nacional". Para dialogar sobre a situação que hoje vive o povo haitiano, conversamos com um dos coordenadores dessa articulação de movimentos, Camille Chalmers.

- Qual é a situação atual do Haiti depois do terremoto do dia 12 de janeiro e após um mês?

R: Em primeiro lugar, é um choque terrível, um desastre. O sismo não somente levou muitas vidas. Destruiu também muitas coisas na sociedade haitiana. Provocou uma onda impressionante de migração. Fala-se de 480 mil deslocados para outros países e, todavia, não sabemos exatamente qual a cifra total de mortos e feridos. Com certeza, significa um trauma psicológico enorme, uma decomposição social, uma ruptura do tecido social realmente gravíssima. Para entender esse terremoto e as consequências que trará temos que analisá-lo em relação à crise que atinge o país há muito tempo, como produto da situação colonial e neocolonial e também como consequência das políticas neoliberais aplicadas nos últimos 20 anos, que destruíram grande parte do Estado e causaram a hiperconcentração ao redor da zona metropolitana de porto Príncipe.
A centralização ao redor da "República de Porto Príncipe" decidida pela ocupação estadunidense de 1915 é um dos fatores determinantes e, em particular, a liberalização total do mercado imobiliário, totalmente controlado por especuladores, explica que a maioria da população está vivendo em condições muito precárias, em zonas marginais, instáveis e com edificações que não podem aguentar o golpe que recebemos.
Me parece que é muito importante ver que é uma catástrofe natural; porém que se insere nas políticas e é consequência das relações desiguais com as potências, particularmente com os Estados Unidos.

- Nesse contexto, o que está acontecendo com a ajuda humanitária?

R: Por um lado, vemos que em âmbito mundial existe uma onde espontânea muito bonita de solidariedade com o povo do Haiti; uma solidariedade cidadã que se expressou de múltiplas formas. Porém, vimos também instituições dominantes, as ONGs internacionais e as grandes potências instrumentalizar a crise haitiana para fins bélicos que nada têm a ver com o sofrimento e com a dor vividos pelo povo haitiano. Particularmente, devemos sublinhar que os Estados Unidos se aproveitaram da crise haitiana para militarizar ainda mais o Caribe, para implementar um esquema militar: muitos navios de guerra, muitos aviões de ataque que estão sobre e ao redor do território do Haiti e, com certeza, isso nada tem a ver com ajuda humanitária.
O pretexto utilizado foi o de que os militares estadunidenses estão realizando ajuda humanitária; porém, de fato, sabemos que essa militarização faz parte do projeto mais amplo do imperialismo para remilitarizar o Caribe, sobretudo através de dispositivos bélicos, como os que agora existem em Curaçao, como as novas bases na Colômbia, para ter um dispositivo militar que possa responder ao descontentamento e à sublevação dos povos contra o capitalismo neoliberal, contra o imperialismo. Isso está muito claro e pode ser explicado a partir de um contexto geopolítico.
Existe também um dispositivo militar para prevenir ondas de refugiados para os Estados Unidos, o que sempre tem sido uma prioridade de sua política externa. EUA sempre gastou mais dinheiro em reter aos refugiados, em impedir a onda de refugiados, em vez de investir no que chamam "desenvolvimento" no Haiti. Também, considerando o nível de pobreza do povo do Haiti, os Estados Unidos estão pensando que esse último golpe pode desembocar em uma sublevação social, um ‘estouro' social e, com certeza, os 20 mil ‘marines' estão aí para prevenir esse tipo de coisas e poder reprimir ao povo do Haiti, para assegurar os interesses estratégicos dos EUA. Denunciamos isso como um escândalo, já que não somente a intervenção militar não ajudou ao povo do Haiti, mas também, inclusive, obstaculizou a chegada da ajuda humanitária de muitos países, como do Caricom, da Europa ou da Venezuela. Porque os EUA se apoderaram do aeroporto do Haiti e seleciona que tipo de aviões pode aterrizar, dando prioridade absoluta aos aviões estadunidenses e aos jornalistas estadunidenses.
Inclusive, houve um escândalo quando atrasaram a aterrizagem de um avião hospital francês, para deixar aterrizar um avião de Hillary Clinton.
Realmente, é muito importante que se entenda que apesar da enorme onda de solidariedade, inclusive de pessoas dos Estados Unidos, essa ajuda foi canalizada através de organismos e estruturas que desvirtuaram essa solidariedade, colocando esses recursos a serviço dos planos imperiais.
Um jornal dos Estados Unidos assinala que por cada dólar gasto supostamente para as vítimas do terremoto, mais de 33 centavos estão sendo consumidos pelo Exército dos Estados Unidos.
As organizações sociais haitianas não aceitamos esta situação, a denunciamos e não queremos que nosso país seja convertido em uma base militar dos Estados Unidos.

- Vocês assinalam em sua carta: "Desejaríamos ver nascer brigadas internacionalistas de solidariedade que trabalhariam com nossas organizações na luta pela realização de uma reforma agrária e de uma reforma territorial urbana integrada, na luta contra o analfabetismo e para o reflorestamento, na edificação de novos sistemas educativos e de saúde universais, descentralizados e modernos". Que possibilidades vêm para que esse tipo de solidariedade possa concretizar-se hoje, a partir das organizações sociais?

R: Realmente, é um momento muito interessante para poder partir desse interesse sobre o Haiti de forma que não seja apenas um fenômeno midiático conjuntural. A partir desse interesse, necessitamos construir um sistema de solidariedade duradoura, de largo prazo, que mude basicamente a relação do Haiti com o resto do mundo. Porque sabemos que o Haiti foi isolado, foi posto em quarentena desde a revolução de 1804 e, todavia, estamos sofrendo esse isolamento.
É muito importante que se conheça melhor o que está acontecendo no Haiti e que possamos construir uma solidariedade mais profunda, mais massiva e mais duradoura. Creio que esse é o momento para fazê-lo e, por exemplo, denunciar a presença da Minustah(2), denunciar a presença das tropas norteamericanas e construir a solidariedade de povo a povo, que é a única forma de ajudar o povo do Haiti, para que possa decidir estratégias eficazes para sair da crise.

- Peço-te que, nesse contexto, recordes aos latinoamericanos/as o que significou a independência do Haiti na história de nosso continente.

R: É importante recordar esse fato porque a história do Haiti e suas contribuições são silenciados pelos meios ocidentais. Por exemplo, nessa crise, em vez de mostrar a enorme onda de solidariedade do povo de Porto Príncipe, que permitiu salvar muitas vidas, trata-se de mostrar outra coisa.
É importante dizer que o Haiti jogou um papel chave no processo de libertação e de independência do continente, porque a primeira revolução antiescravagista e anticolonial nasceu no Haiti, em 1804, e abriu todo um processo na América Latina. Houve uma colaboração direta entre o Estado novo do Haiti e os projetos libertadores da América Latina através de Francisco Miranda, de Simón Bolívar. Inclusive, combatentes haitianos foram participar nas lutas contra a ocupação espanhola. O Haiti foi um país que lançou um grito de liberdade e que disse ao mundo que a escravidão deveria desaparecer, fazendo um movimento muito importante de mundialização e globalização dos direitos humanos, incluindo a todos os povos da humanidade.
Durante todo o século XIX, o Haiti continuou com esse papel e recebeu muitos convites para participar nas lutas de independência, inclusive por parte da Grécia.
A resposta dos impérios foi brutal. Não somente produziu essa conspiração de silêncio, como também se impôs ao Haiti a famosa "Dívida da Independência", assinada em 1825, que foi o passo para reintegrar a economia haitiana à economia mundial sob a violência da dívida.
Declarou-se uma dívida de 150 milhões de francos ouro, que o Estado do Haiti teve que pagar durante mais de um século e que todavia estamos pagando a partir da transferência dessa dívida para os bancos norteamericanos. Essa dívida serviu para indenizar os antigos donos de plantações de escravos da França. Uma coisa totalmente escandalosa.

- Em uma carta divulgada pelo Jubileu Sul Américas para os líderes de 20 países e organismos internacionais reunidos em Montreal para debater sobre os mecanismos de ajuda ao Haiti, demanda-se precisamente que os governos e as organizações internacionais anulem de maneira imediata e incondicional a dívida externa reclamada ao Haiti e que os recursos dirigidos à reconstrução do Haiti não gerem um novo endividamento, nem sejam utilizados para impor novos condicionamentos, como é a prática das instituições financeiras internacionais, tais como o Banco Mundial (BM), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os chamados países "doadores".

R: Claro. Agora no Haiti estamos falando de reparação e de restituição. Dizemos que essa dívida paga com o sangue e o suor do povo haitiano deve ser restituída ao povo do Haiti. Em vez disso, o processo de endividamento, como elemento chave da dominação, continua. E nessa crise recente do terremoto, o FMI impôs ao Haiti um novo empréstimo de 104 milhões de dólares, dizendo que o Haiti tinha que começar a pagar os juros em 2012. Isso é algo totalmente escandaloso e mostra o cinismo desses organismos que, inclusive na crise humanitária tão extrema, continuam com as mesmas políticas de dominação e continuam incrementando a dívida. Por isso, creio que esse é o momento de intensificar a luta que estamos levando há muitos anos, para exigir a anulação total e incondicional da dívida reclamada ao Haiti, que é ilegítima, ilegal e criminosa.

- Vocês estão exigindo também a retirada das tropas da Minustah. Quais são as consequências da presença dessas tropas nesse momento?

R: Existe uma máscara para dizer que são tropas das Nações Unidas, que não é uma ocupação, etc. Porém, de fato, é uma ocupação militar e é uma ocupação repressiva que está debilitando o Estado do Haiti, as instituições haitianas e que significa violação de nossa soberania. Recentemente, por exemplo, o secretário geral da ONU designou Bill Clinton como coordenador da ajuda externa de emergência ao Haiti. É algo totalmente inaceitável. Devemos intensificar a luta pela recuperação da soberania do Haiti.
Durante a crise que vivemos após o terremoto, a partir do dia 12 de janeiro, vimos muito bem que a presença desses 9.000 militares sob o guarda chuva das Nações Unidas não serviram de nada para ajudar a população a enfrentar a crise.
O primeiro soldado da Minustah que vimos nas ruas foi somente no quarto dia após o terremoto e as pessoas tiveram que enfrentar essa crise com suas unhas, buscando sobreviventes debaixo dos escombros, sem nenhuma possibilidade de utilizar os equipamentos e os conhecimentos das tropas da Minustah. É muito importante sublinhar isso porque se apresentam como uma tropa que também realiza ajuda humanitária. Isso não tem nada que ver. Sua presença contribuiu para debilitar o Estado haitiano, que foi muito lento e muito ineficaz em sua resposta à crise. A Minustah está se aproveitando da crise para reforçar sua presença. Inclusive, demandaram um aumento de efetivos de 3.500 militares mais e é evidente o balanço negativo dessa presença desde 2004, que não contribuiu para ajudar o país a sair da crise. Ao contrário, a crise se aprofundou e se debilitaram os instrumentos que permitiriam sair dela.

- Que resposta vocês receberam por parte das organizações populares ao chamado para coordenar a solidariedade de povo a povo?

R: É uma resposta entusiasta, muito interessante. Devemos sublinhar que redes como Jubileu Sul Américas se mobilizaram de maneira muito rápida depois do terremoto para canalizar ajuda para o Haiti e para fazer um trabalho com a redação de uma nota que foi assinada amplamente por muita gente em todo o mundo e que foi enviada à Conferência de Montreal, onde se reunia o governo do Haiti com os doadores. Foi uma importante contribuição. Também sublinhamos a presença conosco de companheiros/as da América Central, da república Dominicana, de Porto Rico, que vieram fisicamente participar do esforço para responderá crise e que estão dando uma vital contribuição nessa conjuntura e que se oferecem para participar em projetos reais de reconstrução do Haiti.
Porque, quando os Estados Unidos falam de reconstrução, já vimos o que aconteceu no Iraque; são projetos de reconstrução que nada têm a ver com as necessidades do povo. São projetos nos quais as transnacionais norteamericanas enriquecem, pois passam a ter contratos multimilionários e só se aproveitam da crise. É muito importante que o projeto de reconstrução e as estratégias de reconstrução sejam definidos pelo povo do Haiti como ator central desse processo. Os companheiros da América Latina, da Europa, da Ásia e da África que já se manifestaram entenderam essa mensagem chave e vão ajudar-nos a construir a solidariedade duradoura.

- Te agradecemos esse diálogo e recebe nosso abraço. Sabemos que tua família também foi muito atingida e que tua casa foi destruída. Para ti e para todos os irmãos/ãs do povo haitiano, nossa solidariedade.

R: Muito obrigado por tudo o que têm feito, pelo que continuam fazendo e pela ternura que sentimos de parte de vocês.

Notas:

(1) Diálogo realizado no programa ‘Juana Pimienta', da Rádio Nacional da Argentina, no dia 5 de fevereiro de 2010. O entrevistado: Camille Chalmers é economista, professor universitário, Secretário Executivo da Papda (Plataforma pela Defesa de um Desenvolvimento Alternativo). É integrante da rede Jubileu Sul Américas e participante de CADA (Campanha pela Desmilitarização das Américas).

(2) No dia 29 de fevereiro de 2004, uma intervenção militar franco-norteamericana destituiu o presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide. Posteriormente, esse golpe de Estado foi reforçado e "legitimado" com a presença de tropas militares que integram a Missão de Estabilização das Nações Unidas para o Haiti (Minustah), com efetivos de diferentes países da América Latina (entre eles, da Argentina, do Brasil, do Uruguai, do Chile, do Equador, da Guatemala, do Peru, da Bolívia e do Paraguai) e de outros continentes, organizados e financiados pelos Estados Unidos e pela França.

* Programa Juana Pimienta - Rádio Nacional da Argentina

 

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