Reforma agrária e participação

Tarcísio Bráulio Gonçalves *

É fácil constatar, a partir do contato diário com o povo, como o tema da reforma agrária ainda é desconhecido por grande parte dos cidadãos brasileiros. A polêmica parece ficar por conta de alguns grupos mais politizados, enquanto a maioria não consegue captar todas as dimensões do problema, dando margem a opiniões preconceituosas e a um desinteresse assustador.

Não se pode tratar a terra como uma coisa qualquer. Ela é fonte de vida e direito de todos. Existe uma destinação universal dos bens da criação, particularmente da terra e da água, e isso se expressa na função social de qualquer propriedade privada. Recordar tais princípios é muito importante num momento em que a questão agrária está candente, como parte da grande discussão em torno do uso dos recursos da natureza. É ecologicamente imprescindível abordar a reforma agrária à luz de valores sociais ligados às necessidades fundamentais dos seres humanos. A terra é um elemento vital para a sobrevivência da espécie, não devendo ser mercantilizada além do preciso limite que sobrepõe aos interesses do capital a dignidade de cada homem e de cada mulher.

A revisão dos índices de produtividade, conforme prescreve a Constituição, e o estabelecimento de um limite para a propriedade da terra são ações urgentemente reclamadas pelo desenvolvimento do Brasil, segundo a lógica da solidariedade e da justiça. Não existirão melhores condições de vida para o nosso povo sem uma conscientização abrangente acerca da necessidade de uma reforma agrária integral, que contemple, além da distribuição de terra, a educação e o investimento em crédito e agroindústria.

Obviamente, outras reformas pedem para acontecer num país de gigantescas e indevidas disparidades. Sozinha, a reforma agrária não resolve. É preciso um esforço conjuntural, sistêmico, englobando reforma política e tributária, com especial atenção à democratização da mídia e ao melhoramento da atuação do Poder Judiciário, tudo numa perspectiva ecológica, segundo a qual se deve promover uma mudança de mentalidade. Não conseguiremos justiça e paz no campo e na cidade sem que o ideário neoliberal seja substituído pelos valores humanistas de uma ética da alteridade, que coloca a vida do próximo acima do lucro e de qualquer interesse imediatista. Conforme nos estimula o filósofo Emmanuel Lévinas, temos de nos acostumar sempre mais a ver, no infinito manifesto no rosto do outro, um vestígio do próprio Deus.

A causa dos movimentos vinculados à questão agrária emerge desse imperativo ético, colocado na contramão da mercadocracia capitalista. Outro mundo possível surgirá de um jeito de pensar e de viver que priorize o ser e não o ter, a pessoa e não o lucro, a parceria e não a competição. Eis-nos diante de uma escolha determinante para a transformação de um país onde um terço da população vive abaixo da linha de pobreza. Somos chamados a optar pelos pobres com a convicção de que eles podem organizar-se para mudar sua situação. A força da transformação reside na organização popular, lembrou-nos o Grito dos Excluídos deste ano. É um direito e uma necessidade dos excluídos o exercício de sua cidadania através da articulação e da participação política. A democracia brasileira, ainda frágil e imatura, só tem a ganhar com a atividade dos movimentos sociais que lutam por uma reforma agrária verdadeira, feita pelo povo e para o povo.

Olhando o recente censo agropecuário do IBGE, revelador da insistente e escandalosa concentração de terras no Brasil, bem como da importância das pequenas propriedades, não podemos senão enaltecer os grupos que defendem a agricultura familiar. Esta é, de longe, a maior responsável pela alimentação de nosso povo, além de gerar empregos no campo. Já os entusiastas do agronegócio propugnam um modelo agrícola exportador, fundamentado na monocultura, no uso indiscriminado de agrotóxicos e na mecanização intensiva, desconsiderando a função social da propriedade e prejudicando seriamente o meio ambiente. As causas dos movimentos sociais se revelam as mais adequadas para construir um Brasil verdadeiramente democrático, com oportunidade para todos e não só para alguns privilegiados. Os eventuais desvios de conduta de membros de algum movimento, supervalorizados pela mídia, não invalidam o movimento como um todo e muito menos os ideais que o sustentam. Toda instituição ou organização humana é suscetível de apresentar em suas fileiras integrantes mal-intencionados. Isso não anula o valor da instituição, desde que seu espírito se oriente para o bem do povo. Os críticos do MST, por exemplo, não levam em conta a contribuição do movimento para o avanço, mesmo tímido, da reforma agrária. Ademais, a organização, a disciplina e, sobretudo, as nobres causas sociais do MST têm sido fatores determinantes para a educação e a promoção da cidadania no campo.

Contra a falante elite latifundiária, controladora da grande mídia e ciosa da mínima oportunidade para tentar criminalizar os defensores dos interesses dos pobres, está na hora de os brasileiros se aperceberem do papel decisivo da reforma agrária para o futuro do nosso país. Não se pode aceitar uma reforma feita a conta-gotas e sem verdadeiro apoio governamental. Conscientização é a palavra-chave para uma luta efetiva por justiça social, e o protagonismo dos pobres continuará sendo o caminho para a terra prometida da paz. Os grupos sintonizados com esses objetivos merecem, por esses e outros motivos, todo respeito e apoio de quem se preocupa com o bem comum.

* Bacharel em teologia pela Universidade Católica de Goiás e especialista em filosofia e existência pela Universidade Católica de Brasília

 

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