Carlos C. Santos *
O olhar dos/das leigos/as
Esta é a terceira e última etapa do projeto "A Igreja em busca de um caminho", que ouve, desta vez, leigas e leigos, particularmente os que militam nas CEBs. A entrevista é publicada às vésperas do 12º Intereclesial e contou com a participação de líderes e representantes das comunidades dos Estados de Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Pernambuco e Ceará. Em razão do número de participantes, omitimos seus nomes, mas deixamos registrada nossa gratidão pela atenção e carinho de todas e todos. Esperamos que este modesto subsídio, entre tantos outros já produzidos, sirva para fazer do 12º mais um novo Pentecostes para a Igreja do Brasil.
Carlos: Amig@s, estamos às portas do 12º Intereclesial das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), que acontecerá de 21 a 25 de julho, em Porto Velho, RO. No Brasil e na América Latina, as CEBs têm uma história que coincide com os impulsos de renovação originados pelo 2º Concílio Ecumênico do Vaticano (1962-1965), relido, mais tarde, pela Conferência dos Bispos, em Medellín (1968) para a realidade do nosso Continente.
Qual a importância das CEBs no contexto de uma Igreja renovada?
Leigas (os): Apesar da maioria dos de nossa geração ser pós-conciliar, entendemos que as CEBs foram uma das maneiras, talvez a mais criativa, de colocar em prática as opções do Concílio e de Medellín. O povo de Deus, reunido em pequenas comunidades, logo se interessou pela leitura da Bíblia, fazendo da Palavra de Deus fonte e inspiração do compromisso cristão na luta pela justiça; os leigos deixam de ser massa anônima para se tornarem agentes no campo da missão e dos ministérios, de acordo com o carisma de cada um; a democratização das estruturas de poder nas comunidades deu lugar a um maior envolvimento e participação de todos, abrindo caminhos para que também a sociedade fosse democratizada pela ação transformadora dos cristãos; em comunidade vai-se descobrindo que fé e vida não se separam, mas se articulam e, então, a oração, a celebração, a liturgia se misturam com o que o povo está vivendo no seu cotidiano, suas dores e alegrias, suas frustrações e esperanças, e tudo o que enche de sentido o encontro com Deus em comunidade, para que a liturgia, agora inculturada celebre paixão, morte e ressurreição de Jesus na paixão, morte e ressurreição do povo celebrante; a vivência comunitária despertou também para o encontro com o outro que é necessariamente diferente, o que postulou, com o passar do tempo, o diálogo ecumênico e inter-religioso, que se orienta basicamente pelo respeito e valorização de todos, que devem ser tratados não como inimigos, mas irmãos e parceiros; a comunidade, enfim, dada a proximidade das pessoas e seus laços de conhecimento mútuo, amizade e solidariedade, favorece, de modo especial, a abertura para tudo e para todos, para o mundo, contribuindo para que a Igreja cumpra aí sua missão de ser sinal do Reino de Deus e parceira da humanidade nas suas lutas e na realização dos seus sonhos.
Carlos: E hoje, como vocês vêem as CEBs?
Leigas (os): Percebemos que há muitas dificuldades, mas também há muitos sinais de esperança. O individualismo característico da sociedade contemporânea, globalizada e neoliberal é um dos principais impedimentos para se repensar o mundo em termos de comunidade fraterna e solidária. A ideologia do "cada um por si e Deus por todos" ajudou a enfraquecer o espírito comunitário e a vida em comunidade. Os meios de comunicação, comprometidos com as classes dominantes, dão sempre maior destaque a notícias em que a religião está mais a serviço da alienação do que da libertação, o que contribui para esconder as CEBs pelo menos do seu espaço visível. Há ainda os problemas relacionados a setores da hierarquia da Igreja que, por diversas razões, encaram as CEBs com desconfiança, indiferença e até mesmo ameaça, confundindo-as com os movimentos.
Vemos, por outro lado, que, apesar desses grandes desafios, as CEBs estão aí, cumprindo sua missão de ser fermento do mundo novo. É certo que não são muitas. Mas também é certo que a quantidade deu lugar à qualidade. Contra o mundo da ditadura econômica que empobrece, exclui e mata os pobres, nossa opção será sempre pelas vítimas e nunca pelos assassinos! É verdade que não estamos mais nas manchetes do dia porque estamos nas bases, no movimento popular, nas frentes de luta, na dura tarefa de defender a vida diante das forças da morte. Num mundo devastado pelos contrastes sociais e econômicos, onde crescem a pobreza e a miséria que trazem dor e sofrimento para as maiorias excluídas, as CEBs apresentam-se ainda como o Bom Samaritano que, à margem da estrada, procuram acolher, cuidar e proteger a vida ameaçada.
Acreditamos que "as CEBs são como uma bela flor" bonita, mas frágil. Por isso, as comunidades precisam de amor, mas só "quem conhece ama". Para conhecer é necessário dar-lhes atenção, torná-las prioridade, investir em material humano e formação, gastar tempo e cuidar com carinho permanente para que o projeto CEBs continue cumprindo, na sociedade, a missão de tornar bem-aventurados os pobres e infelizes.
Carlos: A celebração do 12º Intereclesial na Amazônia sugere algum significado especial?
Leigas (os): Com certeza! Hoje, quando lemos o Evangelho, nos damos conta de que o amor pregado por Jesus é muito mais abrangente, ultrapassando os limites do "amai-vos uns aos outros". A opção de Jesus pelo Reino é opção pela vida de todos e de tudo. Por isso, onde seres humanos ou a natureza ou o planeta estão ameaçados, é aí que os cristãos, seguidores de Jesus devem estar cumprindo sua missão, denunciando a morte e defendendo a vida. De tal modo que amor ao próximo e amor à vida são as duas faces de uma mesma moeda.
Ora, a Amazônia, considerada o "pulmão do mundo" é o lugar do planeta que está ameaçado pelas forças da morte. Desmatamento inconsequente, poluição dos rios, troca de gente por gado, exploração do solo com fins meramente lucrativos, latifúndio depredador, exclusão das populações ribeirinhas, são alguns dos indícios de uma política orquestrada para exterminar os pobres.
Com o tema "CEBs: Ecologia e Missão", e o lema "Do ventre da terra, o grito que vem da Amazônia", nesta realidade concreta geradora de morte, as CEBs resgatam todo o seu potencial profético e libertador para denunciar a iniquidade do sistema e anunciar vida nova e plena para a Amazônia e seus pobres.
Carlos: Qual o trabalho de vocês nas CEBs? Em que tipo de lutas vocês estão hoje?
Leigas (os): Há uma variedade muito grande de trabalhos. Entre nós há quem exerça o ministério da coordenação da comunidade, há quem seja membro da Equipe Colegiada das CEBs em nível estadual. Há comunidades que estão ligadas à questão da alimentação, com cursos de alimentação alternativa, almoços e jantares populares ao preço de R$ 1,00; uma padaria artesanal e oficinas de trocas de saber. Existe um projeto chamado Parteiras do Egito que trabalha com gestantes. Trabalhamos também com Economia Solidária, ajudando pequenos produtores da região e pessoas que artesanalmente produzem rocamboles e bolos. Junto com o Clube de Mães dos Cotianos fazemos um trabalho na periferia da cidade de Piedade, mantendo o Clube por meio de almoços populares de R$ 1,00, realizados na sede do próprio Clube. Há quem trabalhe com moradores de rua e em associações de bairro, motivando a participação e mobilização popular. Há quem esteja envolvido com o meio ambiente, desde o empenho na conscientização e organização para reivindicações básicas como água, esgoto, higienização etc., até à luta para revitalizar nascentes e córregos, ou coletas de assinaturas para defender grandes causas sociais.
Carlos: Que mensagem vocês deixariam para as CEBs do Brasil, especialmente para seus representantes reunidos em Porto Velho?
Leigas (os): O momento é difícil, mas igualmente cheio de esperança como a tempestade que traz, em seguida, a calmaria. O saudoso dom Aloísio dizia no livro Mantenham as lâmpadas acesas, a ele dedicado, que no mundo atual "o único caminho mais promissor... é o das CEBs, porque nas comunidades cristãs de base as pessoas sofrem na carne aquilo que nós, bispos, colocamos no papel. E como elas são os próprios atingidos da miséria, têm interesse em mudar, em atacar os problemas pela raiz. Neste sentido, são mais radicais (do latim radix = raiz). Mas os movimentos ditos apostólicos estão longe disso, estão ‘em outra'. A tendência que hoje prevalece nos círculos eclesiais é a que busca certo aperfeiçoamento cristão em si próprio, mas não numa linha comunitária que incluísse crescimento e aperfeiçoamento coletivo. O ideal que eu considero válido ainda hoje é o aperfeiçoamento do mundo, da sociedade humana, mediante aperfeiçoamento comunitário dos grupos menores organizados. Eu diria que não temos outros sinais de esperança, neste momento: são essas pessoas que estão trabalhando nas CEBs por uma melhoria de vida" (pg. 143-144).
O documento de Aparecida, por exemplo, abriu as portas para o reconhecimento e atualização das CEBs, convocando inclusive as paróquias para uma reestruturação em redes de comunidades, onde as pessoas, mais próximas umas das outras e organizadas, cumpram a missão de defender a vida de todos e de tudo.
Outra grande porta se abre agora, à nossa frente, com o 12º Intereclesial das CEBs em Porto Velho, RO. Que nós, membros das CEBs de todo o país, saibamos, pois, aproveitar desse momento forte de espiritualidade libertadora para rever a nossa história e voltar à nossa raiz: ser Igreja que, alimentada pela Palavra, pela Eucaristia e pelo testemunho de tantos Mártires da Vida, constrói em mutirão o Reino de justiça, amor e fraternidade com o qual Jesus sonhou.
* Pe. Carlos C. Santos é assessor das CEBs e do projeto Formação Missionária Permanente da Arquidiocese de Juiz de Fora.