Selvino Heck *
José Torres, único irmão de uma família numerosa e pobre que sabe ler, saiu, 'de menor', de sua cidade, Juazeiro do Piauí, para encontrar seu irmão e tentar a vida em São Paulo. Chegou justo quando seu irmão tinha sido preso por causa de uma briga de bar. Torres acabou morador de rua, fazendo bicos, quando conheceu um senhor dono de uma escola de música, que o acolheu em sua casa. Trabalhando de dia em tudo que aparecesse - pedreiro, pintor de paredes, servente de obras, limpador de jardins - aprendeu música e passou a tocar em bares e churrascarias à noite e fins de semana. Aprendeu todo tipo de música - samba, forró, MPB, dor de cotovelo - de todos os estilos.
Em 2004, Torres voltou a Bom Jardim, no Piauí. Educador popular, fez três concursos públicos. Tirou o primeiro lugar nos três, mas, estranhamente, não foi chamado em nenhum. Suas idéias não 'batem' com as idéias do prefeito e de quem manda no município: é 'elemento perigoso'. Participou então de uma seleção para professor, foi aprovado. Colocaram-no a trabalhar nos confins do município, bem longe e onde ninguém queria ir. Os apadrinhados ficaram na sede do município. Todo dia ele faz 60 km de moto, na ida e na volta, para chegar na escola, ganhando 560 reais no final do mês. Nas recentes chuvas que devastaram o Piauí, as águas levaram sua moto. Recuperada, conseguiu vendê-la por 1200 reais, dos quais recebeu até agora 800, entrada para uma moto nova que o leve cada dia à escola. Com sua música, é um dos animadores dos encontros.
Cardoso é pequeno agricultor produtor de mel e de produtos orgânicos no interior do Piauí, mel que ele manda para São Paulo onde seus ex-colegas metalúrgicos o vendem. Sabe tudo de abelha (João Santiago, membro da equipe nacional do Talher, ficou triste quando soube como se garante que as abelhas não fujam, segurando o zangão na caixa, para que as abelhas voltem ao lar). Este ano a produção foi pouca porque as chuvas fortes e duradouras não permitiram a floração e as abelhas só saem a trabalhar quando faz sol, o sol forte e intenso do Piauí. Cardoso liderou ano passado sua comunidade contra a cobrança retroativa de energia elétrica, quando havia repetidas quedas de luz. Juntou um grupo de moradores, levou o caso à Justiça, onde ainda está tramitando. Nas reuniões e encontros, Cardoso é o encarregado de fazer a vaquinha para a pinga e a cerveja da festa de confraternização da noite, porque como ninguém consegue arrancar centavos, trocados e reais suados para a compra coletiva.
Pássaro Preto, como é conhecido e chamado por todos, é um jovem quilombola esperto que luta pela regularização das terras de sua comunidade no interior do Piauí. São mais de 100 famílias onde mora. Pássaro Preto sabe todas as músicas, toca tambor e tem um gingado sem igual.
Dona Natália contou, na 'estrada da vida' sobre comunicação feita em grupo, que nos anos cinqüenta a única coisa nova e diferente que acontecia era o padre aparecer na comunidade uma vez por ano para rezar a missa em latim e fazer o sermão em português. Não tinha rádio, não tinha notícia. Seu pai não a deixou aprender a escrever, com medo que ela escrevesse para um eventual namorado que não existia. Depois, ela foi a São Paulo atrás de uma irmã, quando conheceu o mundo. Hoje, educadora popular, está de volta ao Piauí.
Lucianira, apaixonada pelo presidente Lula e militante petista histórica, conseguiu se enfiar na frente de toda comitiva que ia recepcionar o presidente numa de suas viagens ao Piauí. Emocionada, alguém teve que lembrá-la para aproveitar a ocasião e tirar uma foto com o presidente. Sem medo de enfrentar ninguém e dizer o que pensa, enfrentou o governador Wellington Dias, do Piauí, numa reunião sobre questão política do governo estadual. O governador a chamou para conversar, evitando que o debate tomasse proporções maiores e chegasse à imprensa.
Irmã Celina, 79 anos, religiosa baiana da Congregação das Ursulinas do Brasil, coordena a Fundação Santa Ângela e a Escola Família Agrícola (EFA) em Pedro II, Piauí. São mais de 100 jovens agricultores que estudam as características da região, 'vivendo como quem faz parte dela'. Todos os dias todos os alunos têm uma hora de trabalho de campo: capinar, plantar, semear, adubar, para produzir 'in loco' o que comem. Irmã Celina conheceu o presidente Lula através das Comunidades de Base de São Mateus, São Paulo, no início dos anos 80 e reza todos dias para que ele continua humilde e fiel às suas origens e aos pobres.
Ouvi todas estas histórias num final de tarde de domingo, algumas contadas pelos próprios, tomando uma cerveja no Bar do Gesso no Conjunto Dirceu Arcoverde II, Teresina, capital do Piauí, assistindo Brasil e Itália na Copa das Confederações, em frente às Obras Kolping, onde se realizara Encontro estadual da Rede TALHER de Educação Cidadã, área de mobilização social do Gabinete Pessoal do Presidente da República. São iguais ou semelhantes a tantas outras deste imenso Brasil de Deus. Histórias de educadores populares, dedicados às causas dos pobres e trabalhadores. Não ganham nada de material em troca, são muitas vezes perseguidos, sacrificam noites, família e finais de semana, mas sabem falar sobre a crise econômica internacional, sobre a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, sobre metodologia de educação popular. Vivem, cantam, encarnam a mística de quem quer distribuição de renda, de quem quer acabar com a desigualdade social, de quem luta e organiza as comunidades pobres por direitos e justiça.
A educação popular sobrevive e (re)vive nos rincões mais distantes quanto nas capitais e regiões metropolitanas, no campo e na cidade. Forma militantes da causa popular e cidadãos. Vitaliza os saberes e os sabores de cada povo e comunidade. Ajuda a organizar para a luta. Mobiliza. Cria teias e redes de sabedoria e economia popular. Desacomoda. Instiga consciências. Revoluciona corações e mentes. Provoca a indignação ante a injustiça, a servidão, a fome e a pobreza. Incomoda. Celebra a vida, a paz e o encontro. Amplia horizontes. Estuda a história e valoriza a experiência vivida e acumulada. (Re)descobre o Brasil e a América Latina.
Assim constrói-se, desde baixo, um projeto de Brasil Popular, com justiça social, igualdade, valores de partilha e solidariedade. Não é fácil, talvez não seja no curto prazo, mas tem solidez, porque tem participação e esperança, sonho e utopia
* Assessor Especial do Presidente do Brasil