Ismar de Oliveira Soares *
Educomunicação, abrindo o Mutirão Brasileiro de Comunicação
O tema da Educomunicação estará em debate no encontro que abrirá as atividades do Mutirão Brasileiro de Comunicação, em Porto Alegre, entre 9 e 11 de de julho do corrente ano de 2009. Trata-se do "Refresher Program", uma atividade formativa destinada a jovens comunicadores, criada pela UCIP e que, no sul do Brasil, será implementada numa ação conjunta envolvendo especialmente a CNBB e a OCLACC no campus da UNISINOS.
Nada mais adequado. A Educomunicação representa a tradução literal e expressa do tema do Mutirão: a solidariedade total no espaço do uso da recepção da comunicação social.
Pedagogia do século XXI?
No dia 7 de maio do corrente ano de 2009, o setor do Ministério da Educação responsável pela elaboração das propostas de mudanças no Ensino Médio convocou a Brasília um grupo de especialistas solicitando que respondessem a uma questão: que contribuição o conceito e a prática da educomunicação poderiam dar ao programa de reforma desta modalidade do ensino, em nível nacional, e garantir que aproximadamente um milhão e oitocentos mil adolescentes evadidos da escola pública retornem ao convívio dos jovens que se preparam para o ingresso na vida adulta?
A pergunta do poder público tinha como base os resultados positivos de experiências educomunicativas em desenvolvimento em todo o país, da floresta amazônica ao sertão nordestino; da periferia das grandes cidades aos centros produtores da região sul pelos promotores de uma prática participativa de produção e de recepção midiática, unindo comunidades nos âmbitos da educação não formal e da própria educação formal. Levava em conta, também, que a Universidade de São Paulo, uma das mais conceituadas do país, está se preparando para criar e implantar um curso de graduação denominado Licenciatura em Educomunicação .
O pergunta do governo já vem sendo respondida, ao longo dos últimos 40 anos, das mais diversas formas, como ficou evidenciado em seminário que ocorreu, entre 26 e 28 de maio de 2009, no SESC-Ipiranga, em São Paulo, quando foi colocada em discussão, num mesma mesa de debate, a experiência da Prefeitura de São Paulo, como o projeto Educom.rádio (o conceito foi levado a 455 escolas, formando 11 mil entre professores, alunos e membros das comunidades escolares, com o concurso do Núcleo de comunicação e Educação da USP) e a experiência da Fundação Casa Grande, no sertão nordestino (uma iniciativa produção multi-midiática por parte de 80 crianças e adolescentes e jovens, que assumem a gestão de todo o processo administrativo do centro cultural, transformado em espelho do que poderia vir a ser um novo projeto de renovação do ensino tradicional). O que unia as duas experiências, diferentes em sua grandeza e em sua relação com o poder público, foi e tem sido o emprego de um mesmo referencial: a preparação para o entendimento e o domínio das novas linguagens pelas novas gerações a partir de uma perspectiva dialética e dialógica.
Esta foi a razão pela qual, no dia 30 de janeiro de 2007, Rosane Ferreira Faria, diretora da FUNDHAS - Fundação Hélio Augusto de Sousa, da Prefeitura de São José dos Campos, no interior do Estado de São Paulo, responsável por atender, em suas 21 unidades, a mais de 7 mil entre crianças, adolescentes e jovens com renda familiar de um salário mínimo, garantia aos seus 350 profissionais, na abertura dos trabalhos do ano, que "a Educomunicação é a pedagogia do século XXI...".
A convicção de que estava no caminho certo levou a instituição a unir-se ao NCE - Núcleo de Comunicação e Educação da ECA/USP para promover, no mesmo ano, um encontro nacional para debater o tema . O temário do evento preocupou-se, basicamente, em identificar a percepção da sociedade civil, dos educadores, do poder público e dos meios de comunicação sobre o conceito e da prática da Educomunicação. Concluiu-se que o tema, na concepção assumida pelo NCE/USP , ainda que de conhecimento restrito, encontra-se em processo de forte expansão, devido especialmente à força dos projetos em andamento, envolvendo diferentes segmentos da sociedade organizada . O que significa dizer que:
1º - A visão corrente do uso pontual dos recursos da comunicação, de caráter instrumentalista, voltado exclusivamente para a melhoria da performance didática dos professores frente a suas audiências está sendo confrontada por uma visão processual que qualifica, sobretudo, a condição da comunidade escolar como produtora de cultura, favorecendo a expressão de todos os sujeitos, sejam professores, sejam alunos ou mesmo outros membros da comunidade escolar. Tal confronto não chega a ser percebido pelos docentes com pouca familiaridade com as tecnologias educativas. Já no ambiente dos iniciados, ganha a dimensão de polêmica estabelecida.
2º - Entre os que optam pela visão processual do uso das tecnologias, os conceitos dominantes passam a ser "comunicação" e "participação". Nesta linha, há os que defendem um aprofundamento do tema, admitindo a necessidade de se chegar a uma gestão coletiva e democrática dos recursos disponíveis no espaço escolar (educomunicação). A questão deixa, pois, de ser a dicotomia "usar ou não usar" as tecnologias na educação, passando a ser "como usá-las", de forma a produzir experiências capazes de permitir aos cidadãos (professores e alunos) a confirmação do ideal de Paulo Freire de se criar comunidades dialogantes, suficientemente críticas com relação às formas como a sociedade define o papel dos meios de comunicação.
3º - Em direção a esta nova perspectiva, unem seus esforços, tanto segmentos da mídia (como o Canal Futura, com sede no Rio de Janeiro, que estabelece íntimo diálogo com a juventude - "Projeto Geração Futura" - www.canalfutura.org.br), quanto ONGs (como as que constituem a Rede CEP - Comunicação, Educação Participação - www.redecep.org.br), ou mesmo redes de ensino (como as escolas das Filhas de Maria Auxiliadora, em nível internacional, e o setor de apoio social da Rede Marista de Educação, no Brasil).
No caso, os três segmentos (mídia, ONGs e educação formal), até agora fazendo seus próprios caminhos, começam a entender a importância de ampliar os contatos para fortalecer seu propósito comum de contribuir para o fortalecimento do protagonismo juvenil, com a oferta de condições e a abertura de espaços para a criatividade de crianças e jovens na produção da comunicação.
A percepção da escola e dos educadores
Existe um longo caminho a ser percorrido pelos que defendem o novo conceito e sua aplicação nas relações sociais e educativas. Na verdade, ainda é grande a resistência dos que - formados a partir de uma visão funcionalista dos processos comunicativos - entendem que o conceito de educomunicação representa uma ameaça à estabilidade dos processos que pretendem trabalhar o tema das tecnologias a partir da perspectiva do marketing educacional.
Aflora, aqui, a questão do campo científico:
A educomunicação pertenceria ao campo da comunicação (a chamadaï€ "comunicação educativa")? Se a resposta é sim, muitos educadores a tomam como algo a ser desenvolvido por especialistas ou até mesmo como uma invasora indesejada de seus próprios espaços.
Faria parte dos âmbitos da educação? Se esta éï€ a opção, rapidamente as correntes tradicionais encampam o termo e o submetem à visão hegemônica da educação bancária, passando a denominá-la como "tecnologias da educação" ou, mais modernamente de "mídia e educação".
Ou, contrário, estaria conformando um terceiroï€ espaço de intervenção social? No caso, como conviver com as visões já estabelecidas no cenário educacional que tomam a comunicação como um apêndice da área da didática?
Enquanto estas questões permanecem em debate na academia, experiências vêm sendo feitas especialmente no âmbito da sociedade civil, do movimento popular, chegando já a algumas redes de ensino. Foi justamente este o fato reconhecido pelo Núcleo de Comunicação e Educação da ECA/USP, em pesquisa realizada entre 1997 e 1999, quando percebeu que o movimento social já havia estabelecido práticas de manejo da comunicação para finalidades educativas que não se balizavam pelas teorias e práticas dos dois campos tradicionais. Ao contrário, voltavam-se para seu questionamento, colocando como meta a democratização das relações comunicativas no interior dos sistemas.
Aplicando tal perspectiva às ações de comunidades e suas lideranças, a pesquisa percebeu a vigência da autonomia do sujeito aprendente e seu compromisso com a transformação da sociedade. Essa tem sido, na verdade, a raiz do atributo número um dos projetos de educomunicação: o aumento considerável do poder comunicativo de todos os grupos envolvidos em sua prática. Esta é a razão de seu reconhecimento.
Em nível internacional
Em nível internacional, é conveniente ouvir relatos como o de Alexandre Sayad, Secretário Executivo da Rede CEP, ao se reportar ao que ocorreu durante a 5ª Cúpula Mundial de Mídia para Crianças, em Johannesburgo, África do Sul (www.5wsmc.com ), em março de 2007 :
Alguns entraves políticos na organização não impediram que 88 países - representados por grandes empresas de comunicação, organizações da sociedade civil, crianças e jovens - tenham se aglomerado por uma semana para discutir a qualidade da mídia para crianças e, acima de tudo, a produção de mídia por crianças e jovens, o que por aqui chamamos de Educomunicação.
Meninos e meninas do Haiti, Moçambique, Líbia e África do Sul não puderam conter as lágrimas ao dar depoimentos sobre a infância de seus países - evidenciando a distância entre falar e ser escutado. Em todos, iniciativas que nascem da população procuram pressionar o governo para que a educação adote políticas em comunicação para dar voz às suas crianças e jovens. A Colômbia, como sempre, foi uma boa surpresa. O governo já trabalha com estrutura de redes sociais de desenvolvimento para capilarizar suas ações por entre a sociedade.
Nos países de democracia consolidada o poder público já assumiu o papel de abrir caminho para que a tríade comunicação, educação e participação funcione com mais facilidade. A Radio Jojo (http://www.radijojo.de) , da Alemanha, por exemplo, é uma organização da sociedade civil, mas que com forte apoio governamental, desenvolve programas de rádio nas escolas para, principalmente, auxiliar os imigrantes na familiarização com o idioma alemão.
Entre as grandes grupos de comunicação presentes, a Al Jazeera, do Qatar, surpreendeu mais uma vez o mundo ocidental apresentando um programa em que adolescentes discutem abertamente seus anseios - e provou por que é banida em 22 países, muitos deles árabes.
... Importante mesmo foi a voz das crianças em Johannesburgo, que espera ser escutada, e que reforçou o belíssimo The Freedom Charter, escrito por Mandela antes de ser preso e que é, agora, parte da constituição daquele país: "As portas do aprendizado e da cultura devem-se abrir".
A Educomunicação na abertura do Mutirão
A escolha da Educomunicação como tema para o seminário que dá início ao Mutirão Brasileiro de Comunicação se reveste, como já adiantamos, de um sentido especial.
O conceito, tal qual vem sendo concebido pelo NCE-USP, tem suas raízes, entre outros espaços, no trabalho das organizações católicas latino-americanas de comunicação , nos anos 70 e 80, tanto nas articulações que promoveu em torno das políticas e das pastorais de comunicação no continente, quanto nos encontros que realizou em torno da NOMIC - Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação, assim como nos projetos que implementou, especialmente os cursos na área da educação para os meios e da comunicação popular. Ao longo do caminho, a ajuda de intelectuais orgânicos, como Antonio Pasquali, Paulo Freire, Juan Diaz Bordenave, Luiz Ramiro Beltrán, Jesús Martín Barbero, Mario Kaplún, Hebert de Sousa, Guillermo Orozco, Pablo Ramos, entre outros, convertidos em referenciais na consolidação de um suporte explicativo para a nova realidade que se passou a viver.
A educomunicação abre o Mutirão porque se converteu na expressão mais vida das possibilidades abertas pela visão solidária dos processos comunicativos, nascida da história de luta do continente em torno de uma nova prática de relacionamentos, de produção do conhecimento e de articulação de ações, no campo educativo. A juventude passou a entender o novo fenômeno, por isso seu interesse pela nova utopia.
Discutir estas questões, e especialmente o campo de trabalho profissional que se abre para as novas gerações será um dos objetivos da palestras que ministrarei no evento, no dia 9 de julho.
* Ismar de Oliveira Soares, Professor da Universidade de São Paulo. Coordenador do Núcleo de Comunicação e Educação (www.usp.br/nce)
Presidente da UCIP - União Católica Internacional de Imprensa (www.ucip.ch)
Fonte: http://muticom.org/refresher/conferencias/