Pablo Calvi *
Diretor critica Justiça em caso Dorothy Stang
Por Pablo Calvi, de Nova York
O assassinato da freira norte-americana Dorothy Stang não foi esquecido nos Estados Unidos. "Na verdade a sua morte tornou-se uma bandeira contra o desmatamento da Amazônia e a disputa de poderes e interesses que ocorrem no norte do Brasil", afirma Daniel Junge.
Ele conhece o assunto. A morte de Stang, no dia 12 de fevereiro de 2005 pelos agricultores Rayfran das Neves Sales e Clodoaldo Carlos Batista, voltou às suas mãos. Em pouco menos de duas semanas, o canal HBO exibirá pela primeira vez na televisão americana "They Killed Sister Dorothy", do jovem diretor. O filme, que integrou a lista dos pré-candidatos ao Oscar na categoria de documentário, mas não chegou à reta final, estréia no Brasil no dia 19 de março.
Terra Magazine - Por que o senhor decidiu filmar um documentário sobre o
assassinato da missionária?
Daniel Junge - Acho que tínhamos assunto para um grande documentário. A destruição da Amazônia, a estrutura do latifúndio na América Latina, a Igreja - que também está envolvida -, mas principalmente os elementos dramáticos com relação ao assassinato de uma freira católica num meio florestal, os agricultores envolvidos... Com todos esses elementos, tínhamos certeza de que conseguiríamos cativar um público muito mais amplo do que outros documentários. Dorothy Stang, uma religiosa da congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur, decidiu morar no Pará, no norte do Brasil, no final dos anos 1960, relata Junge no seu documentário através da voz de Martin Sheen. Na região, como parte da sua atividade missioneira, Stang começou a fomentar o desenvolvimento de assentamentos de agricultores sem-terra num local que mais tarde se transformaria no pólo fabril de Anapu.
Os fazendeiros e agricultores da região foram seus principais opositores. Stang adotou a nacionalidade brasileira e aumentou suas atividades concentrando-se na implementação de uma série de projetos governamentais, os PDS ou Projetos de Desenvolvimento Sustentável, que têm dois objetivos: a designação de lotes na Amazônia para agricultores sem-terra e a proteção destes lotes contra o desmatamento indiscriminado.
Como tem sido a reação das pessoas até agora?
Por enquanto o resultado é positivo. O filme foi exibido no Congresso brasileiro e começará a ser exibido no Brasil após a sua exibição aqui pela HBO. E o fato do Regivaldo (Pereira Galvão, um dos envolvidos no caso) ter sido preso após a exibição do filme, no ano passado, nos deu muita esperança. O filme está trilhando o seu próprio caminho e acho que vai gerar uma conscientização sobre o desmatamento da Amazônia, mas também está tendo efeitos muito concretos. O documentário, que começou a ser filmado poucos dias após o assassinato, tenta mostrar o que ainda não foi esclarecido sobre a morte da religiosa. "Tem grupos que pagaram pela morte de Dorothy, mas a justiça brasileira não pôde agir como deve", explica Junge.
Como o senhor teve acesso aos advogados de defesa dos assassinos, principalmente a Américo Leal - que chega a parecer um personagem de novela?
É verdade, se tentasse escrever sobre eles num romance de ficção, seriam
personagens muito extensos, incríveis, quase exagerados. E penso que foi por isso que nos permitiram filmá-los, porque conhecem a impunidade da região. Esse é o seu modus operandi. Penso que em nenhum momento eles se sentiram pressionados, penso que não acharam que mostrar o que nos mostraram, a forma como agem, ou como desclassificam o jurado, poderia depor contra eles. De fato, não houve, nem acho que haverá repercussões sobre o seu comportamento. Eles representam o poder na Amazônia. Stang, que recebeu postumamente o galardão da ONU dos Direitos Humanos, tinha se transformado em uma ameaça na região do Pará, especialmente para as companhias do desmatamento. "Um dos eixos do filme é aquilo que Dorothy ressalta com relação ao desenvolvimento, que não é necessariamente uma idéia oposta à sustentabilidade", confirma Junge. "Penso que todos temos que aprender isso, porque quando falamos do Brasil estamos falando da décima economia mais poderosa do mundo. E o que este filme tenta desenvolver é o problema da distribuição da riqueza e da igualdade. O Brasil é muito rico, mas não acredito que necessite destruir a floresta. A Amazônia é valiosa demais para ser reduzida, em pouco tempo, a cinzas e lama".
Um dos aspectos do seu documentário é que o sistema judiciário da região apresenta problemas. O senhor acredita que o sistema judiciário do Pará seja corrupto e que não há solução possível?
Sim. No mínimo o sistema judiciário é fraco e sabemos que existe corrupção na Amazônia. Não quero chegar ao extremo de afirmar que os acontecimentos do tribunal, mostrados no filme, sejam resultado direto da corrupção, mas definitivamente a gente pode ter uma idéia de quem detém o poder na Amazônia e quem tradicionalmente exerce o poder nessa instância judiciária. O que chama a atenção é que pessoas condenadas à prisão num dia saem no dia seguinte como se nada tivesse ocorrido.Talvez o que ocorre no julgamento no meu documentário não tenha sentido. Mas é melhor não antecipar o filme. O que eu considero que fica claro é que, do modo como a justiça é conduzida, é lógico que muitas vezes as sentenças estejam sujeitas à revisão.
Nesse sentido, o seu filme pode ser visto como uma crítica muito severa ao sistema judiciário do Brasil.
Sim, certamente. E espero que de alguma forma este filme traga à tona o debate de alguns graves problemas que existem em relação à posse de terras no Brasil. Sabemos que este é um assunto grave e muito difícil de resolver, especialmente quando os poderosos apóiam os agricultores, as companhias florestais, os oligopólios da soja e todo esse tipo de indústria. Houve mais de 800 mortes nos últimos três anos vinculadas a esse conflito e apenas uma única pena de prisão. Dizer isso pode parecer cínico, mas é um fato: uma freira norte-americana teve que morrer para que alguém começasse a prestar atenção no problema.
Qual foi o papel do FBI nas investigações?
O FBI participou como participa nas mortes de outros cidadãos norte-americanos no exterior. Pessoalmente não acredito que o FBI tenha tido interesses espúrios. Também não tenho certeza de que a sua presença se justifique pela morte de um cidadão norte-americano. A verdade é que, pela política exterior dos Estados Unidos com relação à América Latina, a presença do FBI é muito suspeita. Deixo que o público decida se o FBI deveria ou não estar aí, mas claramente os Estados Unidos têm uma longa história de intervenções no mundo, como lembra Américo Leal (o
advogado de defesa). E isso faz com que, inclusive os norte-americanos que realmente têm boas intenções, como a irmã Dorothy, sejam questionados de imediato.
O presidente Lula disse que a decisão do tribunal de soltar a Vitalmiro Bastos de Moura (o Bida), que teria sido o mandante do assassinato de Dorothy, é uma "mancha" na imagem do Brasil no exterior. O senhor tentou entrevistar Lula para o filme?
Não tentamos porque o filme está focado nos personagens em nível local. Mas penso que é positivo que Lula tenha se manifestado dessa forma, contundente, a respeito da morte de Dorothy e da libertação de alguns assassinos. No entanto, temos que levar em consideração que Lula pertence ao PT e a sua política é desenvolvimentista. Por enquanto ele não se manifestou a favor da proteção do meio ambiente. O problema é que Lula tem que ser desenvolvimentista, mas isso muitas vezes não vai ao encontro de um bom programa de proteção ao meio ambiente.
Pelo seu documentário, qual é a posição do movimento sem terra com relação aos Projetos de Desenvolvimento Sustentável?
O movimento sem-terra é enorme no Brasil. Há quase 30 anos que se tenta levar os sem-terra para a Amazônia. Então, quando vemos no filme uma multidão manifestando-se contra Dorothy é um sintoma de que muitos sem-terra são contrários aos Projetos de Desenvolvimento Sustentável. Penso que de certa forma estão entrincheirados na idéia de que é necessário "domar a terra", desmatar e queimar. Claro que há alguns personagens deste drama, agricultores e fazendeiros, que entendem que o futuro de
muitas gerações depende da preservação da floresta tropical. Por isso penso que um dos assuntos centrais é a mudança de mentalidade sobre esses agentes sociais.
O senhor acredita que os norte-americanos podem aprender alguma coisa com esta história?
É importante conscientizar-nos sobre o que está acontecendo na América Latina e no Brasil. Porque, definitivamente, temos muito a decidir como consumidores de certos produtos e a respeito da pressão diplomática para salvar a Amazônia. Mas, principalmente, temos que abrir os olhos sobre o que acontece lá. Mas deixo a critério do público.
O senhor acredita que o governo dos Estados Unidos deveria intervir de forma mais direta nesse assunto?
Sinceramente não posso defender essa posição. Temos que lembrar que durante muitos anos os Estados Unidos deram apoio a uma ditadura no Brasil, o que podemos fazer é nos tornar mais ativos na promoção dos PDS e do desenvolvimento sustentável na Amazônia, mas a intervenção direta é impensável. A soberania do Brasil e do povo da região deve ser considerada como ponto de partida.
Fonte: Terra Magazine