Dom Edvaldo G. Amaral *
"Ele se mostrou cheio de misericórdia pelos pequenos e pobres, pelos doentes e pecadores, colocando-se ao lado dos perseguidos e marginalizados" - dizia o prefácio da missa, rezada no último sábado, presidida pelo Presidente da CNBB, Dom Geraldo Lyrio, concelebrada por 22 bispos e várias dezenas de sacerdotes, diante de expressiva multidão, na frente da Igreja das Fronteiras no Recife, em memória dos 100 anos de nascimento de Dom Helder Camara, promovida pela Arquidiocese, em união com a CNBB nacional e regional e com o Instituto Dom Helder Camara
Poucas palavras da liturgia sagrada - referindo-se diretamente a Cristo Jesus - retratam tão perfeitamente a figura de Dom Helder; figura, discutida por uns, perseguida por outros, extremamente amada pelos pobres e marginalizados do Recife e do mundo, com projeção internacional, dentro e fora dos ambientes cristãos, como nenhuma outra personalidade da Igreja do Brasil jamais obteve em toda a nossa história..
Rezava ainda o cânon da missa, proposto por felicíssima coincidência pelo folheto dos Paulinos para esse Domingo Quinto do Tempo Comum: "Senhor Deus, ...inspirai-nos palavras e ações para confortar os desanimados e oprimidos e fazei que nos empenhemos lealmente no serviço a eles." Acho que a divina liturgia retrata aí com perfeição a vida e a atividade de Dom Helder nos vinte e um anos de seu pastoreio no Recife e pelos auditórios do mundo, sobretudo na Europa, Estados Unidos e Japão. E ainda: "Que a vossa Igreja seja testemunha viva da verdade e da liberdade, da justiça e da paz para que toda a humanidade se abra à esperança de um mundo novo." Aí está delineado o grande sonho de Dom Helder: "A esperança de um mundo novo, um milênio sem fome!" - que ele em seus últimos anos de vida tanto desejou e proclamou para o Brasil e para o mundo!
Membro que fui de seu clero, como salesiano, entre 1964 e 1971, tive vários contatos pessoais com Dom Helder. Participei da missa exequial do Pe. Henrique em 1969, com uma delegação de alunos do Colégio Salesiano. Todos os domingos, às 7 horas da manhã, ele vinha ao Salesiano, celebrar a Santa Missa, transmitida pela Rádio Olinda. Algumas vezes, em nossa Quadra Dom Bosco, que inaugurei como diretor, ele realizou assembléias diocesanas dos "Encontros de Irmãos".
Agora, duas reminiscências pessoais de meus contatos com Dom Helder, que retratam seu ministério pastoral mundial e a perseguição que o regime militar lhe moveu durante todo seu período de Arcebispo de Olinda e Recife.
Numa reunião do clero, numa roda de padres, ele contou-nos que havia pedido ao Papa Paulo VI para liberá-lo do encargo de arcebispo metropolitano, conservando o título de Arcebispo de Olinda e Recife, para melhor poder dedicar-se ao seu apostolado de missionário da justiça e defesa dos oprimidos pelo mundo afora.
Na mesa do diretor de redação de um dos grandes jornais do Recife, meu particular amigo, que hoje reside em Maceió, pude ver uma ordem do comando do IV Exército, em que, na previsão de um evento ao qual compareceria o Arcebispo, ficava determinado que as câmeras de televisão não poderiam focar em "close" a imagem do Arcebispo, o rádio não poderia fazer entrevistas com ele, nem o jornal divulgar em detalhes sua participação na solenidade. Ridículo, não? Uma das cópias do documento foi assinada e deveria ser devolvida ao comando, enquanto a outra ficava com o jornalista.
Aí está a figura que me ficou daqueles anos do homem de Igreja, apóstolo da justiça e da liberdade, defensor dos oprimidos e injustiçados, pelos caminhos do mundo.
*Dom Edvaldo G. Amaral SDB é Arcebispo Emérito de Maceió.
Fonte: Catolicanet