Aparecida e a Missão

Ramón Cazallas Serrano*

A V Conferência do CELAM, em Aparecida, "buscou dar continuidade ao caminho de renovação percorrido pela Igreja Católica desde o Vaticano II e nas anteriores quatro Conferências Gerais" (Mensagem aos Povos da América).

Dia 31 de maio, Festa da Visitação de Nossa Senhora. A V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe conclui os seus trabalhos em Aparecida, SP. Foram quase 20 dias de estudo, discussões e muita oração por parte dos bispos e participantes, num total de 266, para discernir o "hoje" da Igreja latino-americana e caribenha. Foi um kairós, um tempo oportuno de graça para avaliar a caminhada e ver o que Deus está pedindo à sua Igreja neste continente.

Oficialmente não podemos saber as decisões e as prioridades eclesiais deste evento, até que o papa aprove definitivamente o Documento Final. Mas, baseando-nos na Mensagem da V Conferência aos Povos da América Latina e do Caribe, nas conversas e escritos de alguns bispos e participantes, podemos antecipar alguns pontos, sobretudo aqueles relacionados com a Missão e com o mundo dos pobres.

Colegialidade episcopal

É uma graça que os bispos se reúnam para verificar o caminho da Igreja e que esse encontro ocorra no continente latino-americano. Sobretudo nesta época de globalização que suscita desafios comuns e oportunidades para a evangelização. Se hoje ninguém pode viver e afrontar as situações sem contar com os demais, tanto menos a Igreja cujo programa é o projeto de Jesus, que transcende fronteiras e barreiras. Nenhuma Igreja e nenhum bispo podem caminhar sozinhos perante a complexidade das situações. A colegialidade é um valor primário na Igreja de Jesus que o Concílio Vaticano II incentivou. Da colegialidade, naturalmente, nasce a corresponsabilidade de todos no caminhar desta Igreja. É importante ter bem presente este princípio para entender a Missão e a responsabilidade de cada paróquia e de todo bispo na tarefa missionária da Igreja universal.

Método recuperado

Não podia ser de outro jeito. Com exceção da Conferência de Santo Domingo, "ver, julgar e agir" foi o método clássico usado em todos os encontros anteriores. Partir da realidade e analisá-la para saber e conhecer em que "terra pisamos" e, assim poder melhor jogar a semente para que dê o fruto oportuno. Jesus conhecia muito bem a terra onde pisava, as necessidades do povo e oportunamente ia agindo e fazendo os seus milagres, segundo os problemas e situações dos seus interlocutores e seguidores. A eficácia da evangelização depende em boa parte, do conhecimento que o evangelizador tem da sua realidade.

Conferências anteriores

Aparecida se apresenta como continuadora das Conferências anteriores (Rio, 1955; Medellín, 1968; Puebla, 1979 e Santo Domingo, 1992), "buscando dar continuidade ao caminho de renovação percorrido pela Igreja Católica desde o Vaticano II e nas anteriores quatro Conferências Gerais" (Mensagem aos Povos). A V Conferência é um novo passo que dá continuidade e ao mesmo tempo, recapitula o caminho de fidelidade, renovação e evangelização da Igreja latino-americana a serviço dos seus povos, como se expressaram oportunamente as Conferências anteriores.

As opções de Aparecida

Fica difícil enumerar as opções e prioridades da Conferência antes de conhecer o Documento Final. No título dela poderíamos dizer que já temos algumas: discípulos, missionários, Jesus, vida, povos. Temas muito abrangentes que logicamente ganharão espaço para análise e tomada de decisões adequadas. Enumeramos apenas alguns aspectos.

1. A Igreja latino-americana olha para dentro de si mesma

Poderíamos dizer que a Igreja olha para dentro de si mesma no mundo onde está inserida. E este olhar contempla muitas situações que suscitam louvor e agradecimento a Deus pelo caminho percorrido até os nossos dias. Olha-se a realidade da Igreja e aparecem logo tantos exemplos de fidelidade e de santidade, de pecado e de infidelidade. A Igreja não pode ficar calada quando percebe que muitas vezes e de diversas maneiras o povo latino-americano é um povo sofredor: vítima de injustiças sociais, numa multidão de pobres, fruto das desigualdades econômicas. Vê as ameaças da globalização e o neoliberalismo econômico como causa de tanta pobreza.

Neste olhar para si mesma a Igreja pede reformas internas para que a luz de Cristo não seja apagada por estruturas eclesiais e por pessoas que em vez de serem testemunhas, se convertem em perigo para que essa luz não resplandeça entre os povos. Olha para a multidão dos leigos e leigas, como discípulos missionários de Jesus no mundo atual. Olha e vê que os bispos e o clero estão muito distantes do povo que lhes foi confiado. Olha para as paróquias e pede uma profunda renovação das suas estruturas e vê também que os futuros padres podem ser formados em estruturas mais simples, com projetos e processos formativos que respondam aos desafios culturais e sociais do nosso tempo.

2. A Igreja olha para Jesus e se descobre discípula e missionária

"Diante dos desafios que nos propõe esta nova época em que estamos imersos, renovamos a nossa fé, proclamando com alegria a todos os homens e mulheres do nosso continente: somos amados e remidos em Jesus, Filho de Deus, o Ressuscitado vivo no meio de nós" (Mensagem aos Povos).

O primeiro convite que Jesus nos faz é o seu seguimento. Nele nos fazemos discípulos, que não é a mesma coisa que alunos. Por desgraça muitas vezes se sabe muito sobre Jesus e se partilha pouco a idéia do discípulo. O aluno aprende a ciência, o discípulo aceita na sua vida os caminhos do Evangelho. O discípulo vive a vida do Mestre e não a vida do professor. O discipulado, portanto, é aceitar Jesus como supremo Mestre de vida e não só de conhecimentos. O cardeal Jorge Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, dizia numa das primeiras Eucaristias durante a V Conferência "que a Igreja precisa mais de adoradores do que de conhecedores". O discípulo se identifica com o seu Mestre através da partilha da mesma vida, na união íntima com Ele e nas opções que o Mestre fez. Esta é a tarefa de todos os cristãos. E esta é a tarefa também de toda a Igreja.

Como a Igreja toda é discípula deve mostrar na sua vida, nas suas estruturas e nas suas pessoas o rosto e o jeito de discípula, aberta ao mundo onde se encontra, dialogando com a sociedade, deixando tudo o que seja poder, prepotência e domínio. Praticar o diálogo ecumênico e inter-religioso, acolher a vida em todas as suas expressões. A Igreja não pode esquecer que é discípula daquele que "morreu fora dos muros", para quem "não havia lugar na pousada", discípula do "Servo de Javé". Boa caminhada nos espera olhando para este Mestre, na nossa vida e na nossa Pastoral, nas estruturas de acolhida e no serviço à vida. No fundo, o discipulado tem as suas origens no grande amor de Cristo pela humanidade e no grande amor dos discípulos para com o seu Senhor. "Deus é amor", conforme nos diz Bento XVI, "Deus não é uma doutrina ou ideologia, Ele é uma pessoa e o cristão é fruto de um encontro pessoal com Cristo".

3. A Igreja olhando para Jesus se descobre missionária

Como missionários, somos sensíveis à missionariedade da nossa Igreja. Nestas páginas, voltaremos a tratar muitas vezes desse aspecto. Desde o primeiro momento, ao conhecer o argumento da Conferência, fiquei feliz em encontrar a palavra "missionária". E, ao mesmo tempo apreensivo pela globalização desta palavra ou até mesmo pela "banalização" com que se trata da Missão em certas esferas eclesiásticas. A Igreja no continente escolheu viver "em missão permanente".

A Mensagem aos Povos nos concede a esperança de uma abertura evangélica para a Missão universal da Igreja e mais concretamente à Missão Ad Gentes. É verdade que todo cristão é um missionário pela força do seu batismo e que todo discípulo deve escutar a voz do Mestre "Ide e fazei discípulos todos os povos" (Mt 28, 16). O discípulo que se torna missionário para que outros se tornem discípulos. A realidade é que os discípulos começam a ser minoria. Existem muitas forças que querem silenciar os discípulos e muitos povos que ainda nunca escutaram que Deus é Pai. A urgência missionária é forte no interior das nossas comunidades cristãs que vivem a sua fé pela força da tradição, pela rotina de uma herança que não transmite mais a força do Evangelho. Muitos buscam outros lugares para encher o vazio religioso existente em suas vidas. Portanto, a Missão no interior da mesma Igreja é necessária. Mas existe uma multidão de pessoas e culturas que nunca escutaram o primeiro anúncio de Jesus.

Bento XVI tem confirmado que a missão Ad Gentes se abre às novas dimensões: "O campo da Missão Ad Gentes foi ampliado notavelmente e não pode ser definido baseando-se só em considerações geográficas ou jurídicas. De fato, os verdadeiros destinatários da atividade missionária do povo de Deus não são só os povos não-cristãos e as terras longínquas, mas, também os âmbitos socioculturais e, sobretudo, os corações" (05-05-07).

O compromisso dos cristãos da América Latina é o de ser continuadores da Missão de Jesus porque esta é a razão de ser da Igreja que define a sua identidade mais profunda. A Igreja universal espera que a América Latina, que abriga 44% dos católicos de todo o mundo, assuma um compromisso mais significativo com a Missão universal em todos os continentes. Para não cair na armadilha de fechar-se em si mesma, a nossa Igreja deve formar-se como discípula missionária sem-fronteiras, disposta a ir "à outra beira", onde Cristo ainda não é reconhecido como Deus e Senhor. Aparecida será um estímulo para que muitos cristãos das nossas igrejas vão e evangelizem na "outra beira" porque a fé se fortalece dando-a e é preciso que as igrejas do continente entrem numa nova primavera da missão Ad Gentes. Continuando a opção de Puebla "devemos dar desde a nossa pobreza e desde a alegria da nossa fé". A Missão Ad Gentes não é uma generosidade da Igreja na América Latina e Caribe, é um dever que se converterá em riqueza para o mesmo continente. A Missão evangelizará também as nossas igrejas e comunidades com as riquezas partilhadas de outros continentes. Com a figura do Bom Pastor aprendemos a ser discípulos, com a figura do Pescador aprendemos a ir "sempre para águas mais profundas", para o desconhecido, para onde está a pesca mais numerosa mesmo que "ir para águas mais profundas" implique sempre riscos e perigos. A Missão Ad Gentes não reduz, mas multiplica. Só uma mentalidade míope e caseira colocará dificuldades para ir "além-fronteiras" e passar para a "outra beira".

O Evangelho exige um coração universal, aberto a todas as culturas e disponível para pregar o Evangelho em todas as situações. A fé no nosso continente é fruto da Missão de tantos homens e mulheres que abandonaram tudo para partilhar suas vidas com os povos latino-americanos e caribenhos. "Jesus convida todos a participar na sua Missão. Ser missionário é ser anunciador de Jesus Cristo com criatividade e audácia em todos os lugares onde o Evangelho não foi suficientemente anunciado ou acolhido, especialmente nos ambientes difíceis e esquecidos e além de nossas fronteiras" (Mensagem aos Povos).

A opção pelos povos indígenas e afro-descendentes merece um destaque especial que desenvolveremos em outros momentos.

4. E os pobres, onde dormirão?

Em Aparecida os pobres "dormirão" na Igreja porque ela é a sua casa. A opção preferencial pelos pobres continua sendo opção e em certo sentido, em situações mais extremas que nas décadas passadas. "Encontramos Jesus de modo especial nos pobres, aflitos e doentes (cf. 25, 37-40), que reclamam o nosso compromisso e dão para nós testemunho de fé e paciência no sofrimento e constante luta para continuar vivendo. Quantas vezes os pobres e os que sofrem nos evangelizam! No reconhecimento desta presença e proximidade e na defesa dos direitos dos excluídos a Igreja joga a sua fidelidade a Jesus Cristo - proclamava João Paulo II no início do novo milênio. O encontro com Jesus nos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé em Jesus Cristo. Da contemplação do seu rosto neles e do encontro com Ele nos aflitos e marginalizados, cuja imensa realidade Ele mesmo nos revela, surge a nossa opção por eles. A mesma adesão a Cristo é a que nos faz amigos dos pobres e solidários com o destino deles" (Documento não-oficial). Segundo este texto, lendo o capítulo 25 de Mateus, os pobres são a epifania de Deus.

"As agudas diferenças entre ricos e pobres nos convida a trabalhar com maior empenho para ser discípulos que sabem partilhar a mesa da vida, mesa de todos os filhos e filhas do Pai, mesa aberta, inclusiva, na qual não falte ninguém. Por isso reafirmamos nossa opção preferencial e evangélica pelos pobres".

Nos comprometemos a defender os mais fracos, especialmente as crianças, os enfermos, os incapacitados, os jovens em situação de risco, os anciãos, os presidiários, os migrantes. Velamos pelo respeito ao direito que têm os povos de defender e promover "os valores subjacentes em todos os estratos sociais, especialmente nos povos indígenas" (Bento XVI em Guarulhos). Queremos garantir condições de vida digna: saúde, alimentação, educação, moradia e trabalho para todos... Em coerência com o projeto do Pai criador, convocamos todas as forças vivas da sociedade para cuidar da nossa casa comum, a Terra, ameaçada de destruição. Queremos favorecer um desenvolvimento humano e sustentável, baseado na justa distribuição das riquezas e na comunhão dos bens entre todos os povos" (Mensagem aos Povos).

5. As Comunidades Eclesiais de Base

O medo de muitos que as CEBs pudessem ficar fora do reconhecimento oficial da V Conferência não tem fundamento. Os bispos, corajosamente, testemunham "que elas são verdadeiras escolas que formam discípulos e missionários do Senhor, como testemunha a entrega generosa, até derramar o próprio sangue de tantos membros seus... Elas recolhem a experiência das primeiras comunidades, como estão descritas nos Atos dos Apóstolos (cf. Atos 2, 42-47)... e querem "decididamente reafirmar e dar novo impulso à vida e missão profética e santificadora das CEBs no seguimento missionário de Jesus" (Documento não-oficial).

Em outra ocasião falaremos mais especificamente desta realidade importante na Igreja do continente. As CEBs foram meio de renovação na pastoral ordinária e das paróquias, o protagonismo dos leigos e leigas numa Igreja ministerial, a estrutura dos pobres e marginalizados como parte integrante dessas comunidades. As CEBs continuam e podem ser instrumentos para essa Missão geral porque eles, os pobres, podem ser missionários dos mesmos pobres. Dificilmente as atuais estruturas paroquiais podem chegar aos últimos da nossa sociedade. Para que a "Grande Missão Continental" produza os frutos esperados, precisamos criar Comunidades Eclesiais de Base onde os cristãos se sintam acolhidos para viver a sua fé.

Estes são alguns dos aspectos que marcaram a Conferência de Aparecida. Desta vez quisemos nos ater à dimensão missionária. Muitos outros argumentos serão tratados nas próximas edições. Esperemos com ansiedade e alegria o Documento oficial. Queremos conhecer e estudá-lo em profundidade para que o povo assuma as decisões e seja protagonista "por estes caminhos da América".

* Ramón Cazallas Serrano é missionário, mestre em Teologia Dogmática e diretor do Centro Missionário "José Allamano", em São Paulo, SP.

Publicado na edição Nº06 - Jul/Ago 2007 - Revista Missões.

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