Marcy Picanço *
Os Povos Indígenas do Brasil enfrentam diversas ameaças como o avanço da monocultura e os impactos de grandes obras sobre suas terras, mas seguem lutando, fortes e confiantes na Justiça.
O mais duro golpe contra os direitos dos Povos Indígenas é a omissão do Estado brasileiro no tocante à demarcação de suas terras. O governo federal tem a obrigação constitucional de demarcar as terras indígenas e protegê-las, garantindo o respeito à diversidade étnica e cultural.
Passados 20 anos da promulgação da nossa Constituição chamada Cidadã, não houve ainda a regulamentação das determinações que garantem os direitos indígenas. Os sucessivos governos não agiram efetivamente para resolver os graves problemas que afetam os Povos. Revelam, dessa forma, falta de compromisso político com os interesses indígenas e fomentam as violências, tais como assassinatos, confinamentos em pequenas reservas ou em acampamentos à beira de estrada, suicídios, invasão de terras, depredação ambiental, desnutrição, mortalidade infantil e disseminação de doenças nas comunidades indígenas.
Têm sido muitos e graves os ataques aos direitos indígenas no Brasil ao longo das últimas décadas. Destacam-se aqueles que atentam contra os direitos constitucionais que, em síntese, determinam que o governo demarque, fiscalize e proteja as terras e estruture uma política indigenista com participação efetiva dos Povos.
"Paz e terra para os Povos Indígenas. A Paz é fruto da Justiça"
A política indigenista deve garantir o protagonismo dos índios, o respeito à diversidade étnica e cultural, a assistência diversificada, atendendo as realidades de cada Povo e assegurando a todos os mais de 240 Povos a possibilidade de vida futura. Por tudo isso, o governo federal não pode permitir que as demarcações de terras sejam tumultuadas por interesses de terceiros, como políticos, mineradoras, madeireiros, fazendeiros, posseiros, agricultores e outros.
O governo - e as instâncias do Poder Judiciário - não pode transformar em "processo administrativo", sobre o qual interesses estranhos operam, um "procedimento administrativo", por meio do qual o Poder Executivo explicita os limites das terras ocupadas tradicionalmente pelos Povos Indígenas. Permitir que terras indígenas sejam disputadas administrativamente é dar legitimidade a títulos e ocupações de invasores, cuja nulidade é determinada pela Constituição.
Os Povos Indígenas, as forças políticas progressistas, os movimentos populares, sindicais, indigenistas e demais aliados no Brasil e no mundo devem se mobilizar para que a Constituição Federal seja cumprida e regulamentada por um Estatuto dos Povos Indígenas, onde estejam inseridos e regulados todos os seus direitos.
De acordo com a Constituição, a União é proprietária das terras indígenas e são reconhecidos aos índios os direitos originários sobre "as terras que tradicionalmente ocupam" (Art. ...). Esse conceito é definido com base em quatro aspectos - considerados em conjunto - de acordo com os usos, costumes e tradições de cada grupo indígena. São eles: as terras habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural.
Outra garantia constitucional importante é a que proíbe a ocupação, o domínio e a comercialização dessas terras e a exploração de suas riquezas. Só há uma exceção permitida pela Constituição: quando se tratar de relevante interesse público da União.
A violência contra os Povos Indígenas
Apesar das garantias constitucionais, a realidade brasileira revela a negação desses direitos, na medida em que a maioria das terras indígenas está invadida por diversos grupos econômicos. Esse fato tem sido a principal causa da violência praticada contra os Povos Indígenas. Atualmente, em todos os estados brasileiros existem conflitos decorrentes da invasão de terras.
Dentre os Povos Indígenas que perderam sua paz e precisam de justiça, podemos destacar:
- a situação dos Pataxó Hã Hã Hãe (Bahia) e dos Povos da Raposa Serra do Sol (Roraima), que sofreram diversas violências nas últimas décadas, lutando contra os invasores de suas terras já demarcadas;
- o caso dos Guarani Kaiowá (Mato Grosso do Sul), que vivem confinados em pequenas porções de terras, e em função disso enfrentam altos índices de suicídios, assassinatos e mortalidade infantil;
- os Povos do Vale do Javari (Amazonas) que, em função do caos no atendimento à saúde indígena, tem 80% de sua população contaminada com hepatite B. A crise na assistência à saúde afeta indígenas em todo o Brasil.
- os cerca de 60 Povos em situação de isolamento e risco que fogem do contato com a sociedade envolvente são ameaçados por projetos de hidrelétricas, estradas e invasões de madeireiros nas terras onde vivem, na Amazônia.
- a situação do Povo Guajajara, no Maranhão, vítima de agressões, às vezes armadas, de moradores das cidades vizinhas à área. Além disso, as terras são constantemente invadidas por madeireiros.
"Sem terra, não há paz para os Povos Indígenas"
A prática da justiça inclui a perspectiva da gratuidade, do perdão e da cura. Para os cristãos, a prática da justiça é uma ordem do Senhor: "Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas as outras coisas vos serão dadas em acréscimo" (Mt 6, 33).
Em decorrência da fidelidade para com o Deus da Vida e nossa missão, assumimos um compromisso de solidariedade com os Povos Indígenas. Concretizamos a fidelidade e a solidariedade lutando pelo cumprimento das normas da Constituição Federal de 1988. Ela garante as terras dos indígenas e determina sua demarcação, como início de um processo que faz, dessas terras, territórios alternativos de vida.
Testemunhar, no meio dos Povos Indígenas, a Justiça da Ressurreição significa defender e recuperar seus territórios de vida. A partir do tema da Semana dos Povos Indígenas 2009, convidamos todos a praticar a justiça para com os indígenas brasileiros, ajudando-os a reconquistar seus territórios e, assim, garantir a vida plena e em paz.
A terra na cosmovisão indígena
Para os Povos Indígenas, a terra é fonte e mãe da vida, o espaço vital, a garantia da existência e reprodução enquanto coletividade específica e diferenciada. Não é possível imaginar um Povo Indígena sem terra. Por isso, a defesa do território equivale à defesa da sobrevivência material e espiritual. O que acontece com a terra acontece com os filhos da terra.
A terra não é, como na mentalidade capitalista, apenas fator econômico produtivo ou bem comercial, de propriedade individual, que pode ser comprado ou transferido, segundo as leis do mercado. Porque a terra não é só a base do sustento, mas também o lugar onde jazem os ancestrais, onde se reproduzem a cultura, a identidade e a organização social. Essa base territorial abrange o solo e o subsolo, a flora e a fauna, a água e o ar, os lugares sagrados.
* Marcy Picanço é membro da assessoria de Comunicação do Conselho Indigenista Missionário - Cimi.
Publicado na edição Nº03 - Abril 2009 - Revista Missões. www.revistamissoes.org.br
Fonte: Revista Missões