As manifestações dos dias 13 e 15 de março. Polarizações desérticas

Patricia Fachin e João Vitor Santos

"Não acredito que os principais partidos, que são responsáveis em grande parte por essas crises, consigam vencer seus interesses para compor um projeto que faça frente às diversas crises em pauta. Do jeito que se configura, esse acordo continuará sendo feito por cima e, para mim, isso é mais do mesmo", diz Marcelo Castañeda em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Na avaliação do sociólogo, a atual situação econômica e política, incluindo ajustes econômicos, cortes orçamentários e ameaças aos direitos trabalhistas, já era prevista durante a campanha eleitoral do ano passado, mas a escolha pelo candidato "menos pior" "fez com que muitas pessoas se assustassem com a natureza do ajuste agora em curso na medida em que esperavam uma continuidade", pontua. E adverte: mas ela foi "rompida, em especial pela presença de Levy no Ministério da Fazenda, dando uma guinada em relação ao desenvolvimentismo".

Entre as razões para a atual crise política e econômica que tomou o país logo após o início do segundo mandato da presidente Dilma, Castañeda enfatiza a "polarização da representação política entre PT e PSDB sempre mediados pelo oportunismo do PMDB e partidos fisiológicos menores que circundam o poder constituído". Segundo ele, essa dinâmica "já dura mais de 20 anos no âmbito do governo federal, complementando dinâmicas estaduais e municipais onde o peemedebismo reina de forma hegemônica no sentido de se fazer como padrão de governo para poucos".

Na interpretação dele, essa polarização permanece nas discussões sobre a possibilidade de impeachment ou golpe e sustenta um discurso sobre o "menos pior". "Não acredito em golpe no contexto atual. Há uma histeria governista cada vez que as coisas saem do controle deles. O discurso sobre golpe interessa ao governo, pois reforça a polarização vitoriosa nas eleições presidenciais. Parece que o governismo precisa manter o inimigo comum aceso e derrotado para que ele se mantenha como ‘menos pior'". E pergunta: "Como golpear um governo que cedeu a todos os caprichos do mercado, no qual os bancos continuam lucrando como nunca, em que o PMDB é cada vez mais forte? (...) Mas vamos esperar as manifestações dos dias 13 (PT/governismo) e 15 (pelo impeachment) para ter uma dimensão mais concreta do tipo de mobilização que a polarização desértica nos oferece".

Marcelo Castañeda é doutor em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - CPDA/UFRRJ e graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que avaliação você faz da atual conjuntura a partir das medidas de ajustes anunciadas pela presidente?
Marcelo Castañeda - Durante a campanha eleitoral estava claro que haveria ajustes econômicos, ganhasse quem ganhasse, tais como os robustos cortes orçamentários, ameaça a direitos trabalhistas, abertura de capital da Caixa Econômica Federal, entre outros que não vou detalhar aqui. Parece que o fato de a campanha feita pela presidente ter se colocado como "menos pior" ou diferente dos que com ela concorriam (no primeiro turno, Marina foi o alvo preferencial; no segundo, Aécio) fez com que muitas pessoas se assustassem com a natureza do ajuste agora em curso na medida em que esperavam uma continuidade que me parece ter sido rompida, em especial pela presença de Levy no Ministério da Fazenda, dando uma guinada em relação ao desenvolvimentismo.

Enfim, os ajustes estão sendo feitos e torço para que não entremos em um período de recessão com inflação que paira no horizonte e, caso se concretize, certamente vai atingir os mais pobres com força. Vale destacar que existe uma espécie de efeito cascata que atinge as diferentes escalas de governo que também estão efetuando diferentes tipos de ajustes baseados em cortes orçamentários e ameaça a direitos de trabalhadores. O mais grave é que os que mais sofrem são os mais pobres. Então, a conjuntura, vista a partir dos ajustes, não me parece favorável. A situação é delicada após dois meses de anúncios nada positivos e não há nada que sinalize que possa haver uma reversão deste processo, podendo acontecer, ao contrário, um aprofundamento.

IHU On-Line - Diante da atual conjuntura, você propõe como alternativa para sair do "deserto em que estamos" a criação de novas instituições e movimentos. Quais possibilidades vislumbra acerca disso, ainda mais quando tais manifestações não sinalizam uma nova liderança política?

Marcelo Castañeda - Você se refere ao que chamei de deserto da polarização da representação política entre PT e PSDB sempre mediados pelo oportunismo do PMDB e partidos fisiológicos menores que circundam o poder constituído. Isso já dura mais de 20 anos no âmbito do governo federal, complementando dinâmicas estaduais e municipais onde o peemedebismo reina de forma hegemônica no sentido de se fazer como padrão de governo para poucos. Tanto a criação de novas instituições e movimentos quanto novas lideranças políticas não surgem do nada, mas de processos e práticas de lutas concretas que atuam em um terreno de oportunidades que surgem e são criadas.

Temos um longo caminho pela frente para constituir democracia e uma história de lutas, organizações e movimentos que compõem um campo de lutas que não há como desprezar. Precisamos cada vez mais trabalhar com a possibilidade de ir além do campo de luta, dos ativistas, e contaminar a sociedade de forma que o cotidiano seja um terreno politizado e aberto a quem quiser participar politicamente fazendo erodir aos poucos a cultura política autoritária que se mostra ainda forte no Brasil. Essas "novidades" não surgem do vazio ou espontaneamente de uma hora para outra, só que essa contaminação política democrática da sociedade não vem sendo operada pelas instituições e movimentos atuais. Ou seja, estas instituições e estes movimentos podem ser renovados também, ao mesmo tempo que outros podem ser criados. Daí que cabe pensar em novas possibilidades.

"Não acredito em golpe no contexto atual"

IHU On-Line - Como avançar politicamente sem uma liderança política?

Marcelo Castañeda - Na minha perspectiva, através da cooperação de singularidades que se reconhecem como parte da luta por um objetivo comum que as unem. E aqui falo de diferentes escalas, desde o engajamento individual até a representação, passando pelos coletivos e movimentos, entre outros. Não vejo que a questão da liderança política seja necessariamente um problema atual. A meu ver, o aprofundamento das trocas e diálogos de forma democrática é a questão que mais me chama atenção atualmente, pois é através da articulação de diferenças que se propõem agir e se organizar que podemos avançar politicamente de uma forma diferente, construindo algo que vá além do que já temos, e não através de um líder redentor que guie as massas.

Isso não quer dizer que não surjam lideranças, algumas delas de movimentos sociais que inclusive já dialogam com governos ou mesmo parlamentares de esquerda que por vezes fazem o contraponto ao governismo hegemônico. As lideranças não morreram e algumas delas se modificaram enquanto outras ainda permanecem no antigo padrão, basta ver movimentos como MST e MTST ou mesmo parlamentares como Marcelo Freixo do PSOL-RJ, por exemplo, para ver que ainda existem lideranças políticas no campo definido como "esquerda". No entanto, não creio que seja com esse modelo de liderança que estaremos avançando politicamente, ainda que possa haver composições em determinados momentos.

IHU On-Line - Uma das críticas às manifestações é de que as demandas da multidão acabam se contaminando e virando bandeiras partidárias. O senhor concorda? Como fugir dessa armadilha?

Marcelo Castañeda - Acho que isso não procede. Parece um tipo de purismo e não corresponde ao que acontece. Quem dera que os partidos e governos fossem contaminados por todas as pautas de lutas que acontecem no Brasil. Quem dera que eles se comprometessem, mas o que eles fazem é querer cessar as demandas. O que parece muito claro é que, por mais que possa haver lutas que reagem a desmandos de governos e empresas, as lutas estão à frente dos governos e empresas. São as lutas que ditam as ações de governos e empresas. Temos que inverter essa perspectiva de que as lutas são uma reação ao poder constituído. É o inverso, por isso alguns falam em captura das lutas. Essa captura acontece, mas é sempre incompleta, deixa resíduos e esses seguem dando sinais de que a multidão pode se recompor mais à frente. Aliás, a multidão não existe a priori, ela se faz, assim como a classe, em determinados momentos e situações concretas de lutas. Não existe uma multidão imanente. Acho que para sair da armadilha precisamos fortalecer os resíduos do que é capturado. Esse momento é bem propício para essa articulação dos resíduos depois da restauração proporcionada pela repressão, pela Copa das Copas e pelas eleições.

"Os sinais de decadência do Brasil Maior projetado por Lula e que Dilma tentou levar em frente são muitos"

IHU On-Line - Como interpreta os discursos acerca de um possível golpe na atual conjuntura? Há risco de golpe ou de algo como foi o udenismo na ditadura?

Marcelo Castañeda - Não acredito em golpe no contexto atual. Há uma histeria governista cada vez que as coisas saem do controle deles. O discurso sobre golpe interessa ao governo, pois reforça a polarização vitoriosa nas eleições presidenciais. Parece que o governismo precisa manter o inimigo comum aceso e derrotado para que ele se mantenha como "menos pior". Como golpear um governo que cedeu a todos os caprichos do mercado, nos qual os bancos continuam lucrando como nunca, em que o PMDB é cada vez mais forte? O discurso antigolpe e anti-impeachment, junto com a defesa governista da Petrobras, serve para criar uma mobilização que acaba por escamotear as dimensões sórdidas do ajuste econômico em curso e na própria crise da empresa de petróleo. Mas vamos esperar as manifestações dos dias 13 (PT/governismo) e 15 (pelo impeachment) para ter uma dimensão mais concreta do tipo de mobilização que a polarização desértica nos oferece.

IHU On-Line - O senhor aponta para a ruína do neodesenvolvimentismo. Quais são as evidências e as causas dessa ruína? Por que esse projeto não deu certo e desde quando ele vem dando sinais de falência?

Marcelo Castañeda - Essa ruína é lenta e tendo a pensar numa composição e neodesenvolvimentismo e neoliberalismo a partir da chegada de Levy no Ministério da Fazenda. Mas os sinais de decadência do Brasil Maior projetado por Lula e que Dilma tentou levar em frente são muitos:

(1) a falência de Eike Batista, que era um dos símbolos desse Brasil Maior;

(2) o cancelamento de seis dos sete projetos de megabarragens na Amazônia (mostrando que o governo acerta quando falha);

(3) a intensificação da crise na Petrobras (aprofundando a herança tucana);

(4) as seguidas mortes e tiroteios na política de pacificação apoiada pelo governo federal no Rio de Janeiro, cidade que seria o modelo de gestão deste Brasil Maior, em que ganham as máfias e perde o povo, perdendo inclusive a vida.

Enfim, esse projeto não deu certo pela sua forma de operar, de cima para baixo, representando os interesses corporativos e econômicos, mas contraditoriamente é por onde ainda opera o poder.

IHU On-Line - Alguns intelectuais estão defendendo uma união dos principais partidos no sentido de pensarem um projeto de país para sair da atual crise. Como vê essa possibilidade a partir de um grande pacto entre desenvolvimentistas, trabalhadores, a burguesia industrial e a burocracia pública?

Marcelo Castañeda - Não acredito que os principais partidos, que são responsáveis em grande parte por essas crises, consigam vencer seus interesses para compor um projeto que faça frente às diversas crises em pauta. Do jeito que se configura, esse acordo continuará sendo feito por cima e, para mim, isso é mais do mesmo. Enquanto a sociedade não for mobilizada para decidir o que deve ser feito, e não apenas ser chamada a participar ou ser representada em mesas de negociação, vamos aprofundar as crises.

IHU On-Line - Quais são as agendas que poderão fazer emergir novas manifestações neste ano? Vislumbra um cenário como o de 2013?

Marcelo Castañeda - Não tem como ficar vislumbrando junho de 2013 como um eterno retorno, pois pode ser que nunca mais volte. O importante é mostrar que, com junho de 2013, o medo mudou de lado, mesmo que por pouco tempo, bem como mostrou ser possível mobilizar em prol de um objetivo comum, contra o aumento das passagens de ônibus em várias cidades. Por isso, junho de 2013 continua importante e a repressão vigente tem esse medo da possibilidade de um retorno. Agora, claro que temos contexto para emergência de novas manifestações e tendo a acreditar que elas têm relação intrínseca com as crises e tensões que perpassam a sociedade atual, sendo que acho importante destacar

(1) a crise econômica, que afeta o emprego e as condições de vida dos mais pobres;

(2) a crise de representatividade, com a corrupção sistêmica que corrói a democracia e é operada por todos os partidos em conluio com grandes empresas e bancos privados em diferentes escalas e esferas (Executivo, Legislativo e Judiciário);

(3) a crise hídrica, causada pela falta de planejamento de governantes e pelos ataques às florestas, ao cerrado e aos leitos dos rios, em consequência do neodesenvolvimentismo;

(4) a crise urbana, com cidades cada vez mais congestionadas, serviços de transporte, saúde e educação cada vez mais precários, e especulação imobiliária;

(5) a crise cívica, que atinge em cheio a população pobre e favelada mantida sob permanente intervenção armada do Estado, do tráfico ou das milícias, com a juventude negra sendo vítima de um verdadeiro genocídio; e

(6) a crise que atinge os povos indígenas, comunidades tradicionais e populações ribeirinhas, que são brutalmente atacados e dizimados pelo projeto neodesenvolvimentista e pelo agronegócio.

Todos esses são focos de luta que podem emergir em 2015, ainda que esteja certo de estar desconsiderando algum aqui.

"Não tem como ficar vislumbrando junho de 2013 como um eterno retorno, pois pode ser que nunca mais volte"

IHU On-Line - O senhor defende a cidadania como "ideia chave" para pensar uma saída para esse momento. Em que consiste essa ideia? Como operacionalizar isso?

Marcelo Castañeda - Nós temos uma Constituição que é tida como cidadã, que está sendo desmantelada com parcos 27 anos de vida. Se você perguntar a qualquer pessoa se já leu a Constituição, a resposta tende a ser negativa. Trabalhar a ideia de cidadania e de luta por direitos frente às diferentes crises que vivemos e transformar esses contextos de crise em formas de aprendizado e de construção de novas instituições me parece um desafio a partir de uma ideia pouco explorada atualmente por partidos e movimentos sociais.

Uma iniciativa incipiente da qual faço parte no Rio de Janeiro são os Círculos de Cidadania, onde estamos pensando ações concretas no amplo terreno da cidadania. É uma experimentação ainda, estamos testando, criando metodologias de ação nas práticas cotidianas. O fundamental é que os círculos reúnam pessoas dispostas a agir, seja em um território, seja em uma temática, por exemplo. A ideia é multiplicar círculos e ver como criar espaços de articulação, troca e diálogo entre eles, expandindo as ações e partindo de baixo, sem qualquer comando centralizado. É um desafio e tanto, mas o que vale neste ponto é a tentativa e experiência. Como é muito recente, ainda temos pouco a falar, espero que em breve a gente faça uma entrevista só sobre essa prática.

IHU On-Line - Levando em conta essa ideia de que "precisamos de novas experiências de organizações e instituições" e que para isso não há fórmula pronta, sendo quase que inevitável erros e acertos, como avalia as manifestações de junho de 2013 e a mobilização dos caminhoneiros neste ano?

Marcelo Castañeda - Primeiro, devemos destacar que são de tipo diferente. Avalio que junho de 2013 foi um caso bem-sucedido, em especial por conseguir a redução no aumento das passagens. As pessoas parecem esquecer que foi isso que levou as pessoas para as ruas. E isso foi conseguido no dia 19/06 em São Paulo e no Rio de Janeiro, sem falar nas diversas cidades Brasil afora. A expectativa que a mobilização gerou de que poderíamos mudar o Brasil a partir do dia 20, junto com a brutal repressão, deixou um gosto de que lutamos à toa. Não foi à toa!

Essa luta prossegue, ao menos no Rio de Janeiro, em outubro de 2013, a multidão indignada voltou às ruas com os professores, depois no carnaval de 2014 os garis derrotaram autonomamente o sindicato e a prefeitura. O espírito de junho se faz presente por mais que o poder constituído trabalhe para apagá-lo quando não consegue capturá-lo. Quanto à greve dos caminhoneiros, trata-se de uma mobilização legítima e não podemos ter medo de dizer isso por conta de eventuais apoios patronais que recebam. Não existe protesto sem incomodar os poderosos. Independente da possível captura, que sempre vem rápido, a manifestação é legítima.

Fonte: www.ihu.unisinos.br

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