Entrevista com Graça Machel: "Negro deve se organizar para ser reconhecido como igual"

Fernanda Mena

Para viúva de Nelson Mandela, combate ao racismo depende de mobilização, e é cedo para se falar em 'primavera africana'.

Quando se mudou do interior de Moçambique para a capital, Maputo, para ingressar no ensino médio, Graça Simbine estranhou o fato de ser a única negra em uma classe de 40 alunos.

Começava ali a trajetória de ativista da jovem que se formou em filosofia alemã pela Universidade de Lisboa e, de volta à terra natal, entrou para a história contemporânea da África como guerrilheira da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), ministra da Educação daquele país e viúva de dois presidentes do continente.

Ela foi casada com Samora Machel, primeiro presidente de Moçambique independente, e Nelson Mandela, ícone da luta contra o apartheid na África do Sul. "Tive o privilégio de dividir a minha vida com dois homens excepcionais", declarou certa vez.

Após a morte de seu primeiro marido num acidente de avião, em 1986, Machel manteve luto por cinco anos. Após a morte de Mandela, em dezembro do ano passado, a ativista decidiu romper o luto em poucos meses para se dedicar à luta contra o racismo, o analfabetismo e a pobreza, e pelos direitos das mulheres e das crianças.

Neste final de semana, Machel, 69, vem ao Brasil para ser homenageada na Festa do Conhecimento, Literatura e Cultura Negra, que acontece no Memorial da América Latina, em São Paulo (leia mais na página E3).

O evento sucede o Dia da Consciência Negra, celebrado nesta quinta (20). Apesar de reconhecer a importância simbólica da data, ela avalia que há pouco o que comemorar: "A família humana, ainda em 2014, tem preconceitos profundos com relação à pessoa de raça negra."

Folha - Há diferença entre consciência negra no Brasil e na África?

Graça Machel - Sim e não. Sim porque a maior parte dos brasileiros veio da África. Mas os negros no Brasil misturaram-se com uma enorme diversidade de grupos, criando uma identidade diferente daquela dos africanos. Aqui na África, falamos em diáspora negra [imigração forçada pelos séculos de escravidão] e avaliamos que os negros no Brasil são diferentes dos negros da Colômbia, que são diferentes dos negros dos EUA, apesar de todos terem a mesma origem. Nós evoluímos e nos diferenciamos de acordo com os contextos.

Os negros, em geral, seguem em situação socioeconômica desprivilegiada em relação aos brancos. É esta a face atual do racismo?

Os negros no Brasil, nos EUA, na Colômbia e em toda a África ainda sofrem dos mesmos efeitos de serem desfavorecidos e discriminados com base na raça. A família humana, ainda em 2014, precisa reconhecer que tem preconceitos profundos com relação à pessoa de raça negra. Há razões históricas para isso, mas a história evolui e se transforma. E a pessoa de raça negra é que tem de se organizar para reclamar sua identidade e dignidade. Não há ninguém que te vai reconhecer se não valorizares a ti próprio. Cabe a nós reclamarmos o espaço e os direitos que nos são inalienáveis.

A África nunca teve tantos governos democráticos e vê hoje surgir uma pequena classe média. Quais são os principais desafios do continente hoje?

Se fôssemos falar de todos os desafios, conversaríamos por uma semana inteira (risos). O principal deles é a aceitação da diferença como fator de reforço das sociedades e não de seu enfraquecimento: diferença étnica, racial, de gênero e religiosa. No nível político, precisa haver tolerância entre partidos políticos que processam de formas diferentes a construção de uma nação, cuja robustez vai se basear na busca de elementos positivos que conduzam a uma coesão social.

Um segundo desafio é a aceitação da alternância política. Em muitos casos, nós passamos de partidos únicos a democracias multipartidárias. Mas, mesmo nesse modelo, há certa resistência por parte daqueles que detêm o poder e, por isso, vemos países com os mesmos chefes de Estado há 20 ou 30 anos.

O terceiro desafio é o do crescimento econômico, que ocorre sem equidade, o que nos caracteriza como um continente com desigualdade e estratificação social gritantes.

No final de outubro, Burkina Fasso depôs seu presidente, o ditador Blaise Compaoré, que estava há 27 anos no cargo. Fala-se no surgimento de uma "primavera africana", em referência à derrubada de regimes ditatoriais ocorrida em países árabes durante 2011. Podemos assistir à queda de ditadores como Robert Mugabe (Zimbábue) em breve?

Não estou certa de que estamos diante de uma primavera africana. A derrubada do ditador de Burkina Faso é um aviso àqueles que dirigem países há décadas: o que ocorreu ali pode acontecer em outros sítios. Mas as condições são bem diversas entre países e é preciso ter cautela.

A sra. tem militado contra os chamados casamentos prematuros: arranjos em que meninas, às vezes ainda durante a infância, são submetidas a matrimônios forçados.

A questão dos casamentos prematuros forçados é um fenômeno global. Acontece na África, mas também na Ásia e na América Latina.

Quando a família está sob pressão para resolver problemas econômicos, facilmente acredita que pode entregar uma filha a um casamento para aliviar os problemas de pobreza. Mas não é a pobreza que é o problema. O problema é a crença de que há um valor diferente que se atribui a uma mulher e a um homem.

Outro exemplo: não há um único país do mundo que tenha eliminado diferenças salariais entre homens e mulheres que ocupam os mesmos cargos. Para igual trabalho, pensa-se que a mulher pode ganhar menos do que o homem. É a mesma raiz do problema. Assim como no fato de muitos homens se acharem no direito não apenas de bater como de até mesmo matar suas companheiras por causa de um conflito.

Devemos olhar para casamentos prematuros, desigualdade salarial, dificuldade de ascensão e violência contra a mulher pela mesma raiz: não se valoriza a mulher como se valoriza o homem. A questão de gênero é dos maiores problemas que a família humana enfrenta, ao lado da questão da raça. Ambos têm as mesmas características e afetam toda a sociedade.

 

Fonte: Folha de São Paulo

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