Alfredo J. Gonçalves *
Em 22 de março de 1832, falecia o grande poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe, autor da célebre obra Fausto. "Luz, mais luz" - teriam sido suas últimas palavras, antes de partir. "Onde há muita luz, mais forte é a sombra", havia ele sentenciado. Mas, se é verdade que luz e sombra andam de maõs dadas, também é verdade que "onde resplende muitíssima luz divina, faz-se luz sem sombras", diz outro alemão, o teológo Klaus Berger.
A oração contém esse segredo, esse mistério, esse paradoxo, dir-se-ia. Ao penetrar no coração do ser humano, o olhar divino ilumina, ao mesmo tempo, sentimentos sublimes e instintos selvagens, a beleza mais pura e um leque de fraquezas sem igual. Desvenda veredas "nunca dantes navegadas" (Camões), onde se cruzam e entrelaçam discórdias intestinas, como a tensão latente entre irmãos gêmeos. Paixões brutais e irreconciliáveis aí se escondem e se mesclam; desejos contraditórios dominam o terreno minado e ambíguo da alma humana. A luz põe a nu o conflito subterrâneo, mas sempre vivo, entre luz e trevas; descortina a luta sem trégua de tendências opostas. Nas entranhas mais íntimas de cada pessoa, todas as fibras do ser encontram-se envolvidas no combate entre as forças negativas do mal e as potencialidades positivas do bem.
Sem dúvida, a luz ilumina e faz aparecer as sombras. Torna-as visíveis a nós mesmos, faz-nos conscientes da própria condição humana. Coloca-nos frente a frente com o "espinho na carne", para usar a expressão do apóstolo Paulo. Mas a luz divina, em seu esplendor radioso, de infinito amor e misericórdia, "pode eliminá-las", conclui Berger. O olhar humano, ao voltar-se sobre seus próprios tumores malignos, tende a apontar o dedo em riste, a julgá-los e execrá-los e, sem apelação, condená-los à marginalidade social ou ao fogo eterno. O mesmo se pode verificar com o olhar da opinião pública em geral, e não raro com o olhar daqueles que convivem ao nosso lado, nossos próprios amigos e familiares. Ou ainda com a luz dos holofotes, das câmaras e dos microfones da mídia: quando se voltam sobre as chagas humanas (pessoais, sociais, políticas e culturais), costumar exercer o papel de juiz severo e implacável.
Diferente é o olhar de Jesus, espelho vivo e vivificante do olhar de Deus, nome de Pai e coração de Mãe. Penetra a alma humana, sonda-lhe os segredos mais íntimos e põe o dedo em seus tumores túmidos e sangrentos. Mas não o faz para expô-los em praça pública, nem para acusar ou condenar - e sim para curar e salvar. Mais que um olhar de juiz ou procurador, temos aí o bisturi enérgico mas benéfico do cirurgião: rasga o tumor para extirpá-lo. Basta percorrer os relatos evangélicos para surpreender esse olhar de perdão e compaixão: diante do incrédulo Nicodemos, que o procura no meio da noite; da mulher adúltera e da samaritana, ansiosas de compreensão; do coletor de impostos, Zaqueu, que o recebe em sua casa; do discípulo Pedro que, por três vezes o nega e, ouvindo o galo cantar, "chora amargamente"; e até mesmo diante do trágico Judas, a quem oferece um pedaço de pão, ciente que ele o haveria de trair.
O olhar de Jesus, em lugar de medo e tremor, inspira um temor confiante e reverente ao mesmo tempo: transmite vida, calor e paz. Faz-nos levantar do chão, da mesma forma que do chão se levantam as espigas, as flores, as plantas e os edifícios. Põe-nos de pé para que possamos reaprender a caminhar com as próprias pernas. Aí se encontra toda a debilidade e toda a força do perdão, do sacramento da reconciliação: não é cúmplice do mal e do pecado, mas acolhe o pecador. Abre-lhe novos horizonte, oferecendo-lhe a oportunidade para retomar o caminho. Recomeçar a partir de hoje, aqui e agora, com a cabeça erguida e os olhos postos num amanhã mais vasto, alegre e vivaz.
Roma, 26 de março de 2015
* Alfredo J. Gonçalves, CS, é Conselheiro Geral e Vigário dos Missionários de São Carlos.
Fonte: Revista Missões