Pessoas de raízes e asas

Alfredo J. Gonçalves *

As raízes mergulham no chão úmido e escuro da terra. No interior desta encontram os ingredientes que engendram e nutrem a existência. No ventre da mesma gestam-se os embriões de todas as formas de vida, da mais primitiva à mais evoluida - origem da biodiversidade. Das entranhas desse ventre que é o globo terrestre chega até nossos ouvidos o som primordial do tambor, toque musical que, melhor de todos, evoca reminiscências do útero onde fomos gerados, quando nos embalava o pulsar rítmico do coração materno. As raízes percorrem caminhos incógnitos e subterrâneos, desconhecidos e selvagens, desvendando sem o saber o mistério oculto da própria vida. Em busca dos nutrientes que a sustentam, conhecem o segredo de profundidades insólitas e jamais alcançadas.

O que vale para a vida biológica, vale igualmente para a vida socioeconômica e político-cultural. Pessoas de raízes tratam de descer aos porões mais sórdidos e escondidos das metrópoles modernas e de deslocar-se às suas periferias e favelas mais afastadas, bem como de saber o que se passa nos grotões mais longínquos do agreste e do cerrado, do sertão e do semi-árido, da floresta e das aldeias ribeirinhas, dos povoados indígenas ou quilombolas. Procuram conhecer as leis que regem não somente a superfície das águas calmas, mas também o subsolo onde se cruzam e recruzam correntes distintas, adversas, contraditórias e mesmo inimigas. Da fato, o mar tranquilo e visível da mídia e da opinião pública costuma ser cego ou míope diante das águas invísiveis, bravias e tormentosas que rolam abaixo de seus pés ou por trás da fachada de "ordem e progresso".

O certo é que, por ignorância, ingenuidade ou cegueira voluntária, são poucos os que se aventuram em conhecer o reverso da sociedade. Os gemidos e clamores que dali se levantam normalmente acabam sendo abafados pelo rumor e pelo turbilhão das ruas e praças, pelo ruído ensurdecedor do mercado em vertiginosa expansão. Nem os microfones, holofontes e câmeras das telecomunicações, nem as vias de rodagem penetram no coração desses "lugares esquecidos", "fronteiras de ninguém". E quando o fazem, comportam-se como verdadeiros abutres famintos de carne pútrida.

Por isso ignoram (e não poderia ser diferente) que, ao lado dos gemidos e clamores, da dor e do sofrimento, do abandono e da indiferença - essas populações ignoradas exibem o riso largo e o olhar compassivo, a escuta atenta e o peito aberto, o toque solidário e a poesia cotidiana, o ritmo da capoeira e a música rica e vivaz... Tudo grávido de sonho, de esperança, de paz e uma sociedade nova, justa e sem exclusão. Quem não conhece o reverso da medalha, também não saberá identificar a festa que brota, genuína e autêntica, em meio a quem nada possui para partilhar a não ser a vida e os amigos. Tampouco poderá apreender que, parafraseando o escritor portugês Saramago "o canto e o pranto são vizinhos um do outro".

Descer às profundidades ou deslocar-se à periferia da vida social, econômica, política e cultural é descobrir que a existência humana se alimenta, ao mesmo temo, de aflição e de resistência, de busca e de luta, de lágrima e de riso, de sofrimento e de dança. Em outras palavras, só quem é capaz de mergulhar no ventre da terra úmida e escura da pobreza e da miséria, do abandono e da fome, será igualmente capaz de voar ao ar livre, ao sol e ao céu azul da esperança. Somente quem possui raízes poderá adquirir asas. São as raízes que dão impulso às asas e, inversamente, são estas últimas que expressam os sonhos e aspirações daquelas. Raízes e asas se complementam, se exigem e se interpelam reciprocamente. Sem raízes ninguém é capaz de voar, sem asas ninguém é capaz de penetrar o solo e ali identificar e orientar o voo de quem habita a escuridão - esse sonho que nasce a partir de um chão tétrico e de uma pátria hostil. Raízes e asas formam o único complexo orgânico e dinâmico do empenho pela mudança social. Umas reforçam e são reforçadas pelas outras.

Roma, 15 de fevereiro de 2015

* Alfredo J. Gonçalves, CS, é Conselheiro e Vigário Geral dos Missionários de São Carlos.

Fonte: Revista Missões

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