De Silvia Aparecida de Miranda

Nei Alberto Pies *

"A reflexão que segue foi originalmente escrita como memória à morte prematura de meu pai. Ao fazer memória da morte de Sílvia Aparecida de Miranda, Mulher da Paz brutalmente assassinada em 25 de outubro de 2012, rendo-me à dor e pratico solidariedade. Suas vidas teimam em se fazer uma "presença ausente".

A lacuna da morte de alguém muito próximo da gente como nosso pai, nossa mãe, nosso irmão ou irmã, nosso amigo, amiga, nosso avô ou avó sempre nos remete a um dos mais difíceis aprendizados da vida humana: conviver com a presença ausente. O desafio que se coloca a todos é reconhecer sentido para a nossa existência, pois a morte de alguém sempre deve nos remeter para a pergunta sobre o tipo de vida e de relações que construímos de forma individual e coletiva.

Cada um de nós carrega de sentido a sua existência através das relações interpessoais pelas quais nos "fazemos gente". Por mais que tentemos, ninguém consegue sobreviver e, quiçá, ser feliz sozinho. Esta característica da interdependência é também, de certeza, um dos maiores desafios de nossa própria humanização, pois conceber-se integrado e conectado com os outros exige que saibamos lidar com a superação dos próprios egoísmos.

A vida comunitária, herança de nossas primeiras e mais primitivas comunidades, permite que vejamos o sentido da vida e da morte de uma pessoa. As comunidades religiosas são, sobretudo, o lugar onde fazemos a memória de nossos mortos, buscando apreender de seus ensinamentos, exemplos e virtudes. Sílvia Aparecida de Miranda aprendeu e ensinou que a vida vale a pena quando estamos em comunidade. Em seu bairro, era líder comunitária, orientadora espiritual e Mulher da Paz.

Na comunidade somos reconhecidos por nossos feitos e desfeitos. São muito mais felizes aqueles que podem desfrutar durante a vida, e no momento de sua morte, dos valores comunitários. Quem tem uma comunidade e leva uma vida comunitária vive mais feliz e poderá morrer mais feliz ainda. A comunidade é também o lugar onde damos vazão aos nossos medos, fantasmas e incompreensões, refazendo-nos permanentemente. Por isso mesmo, cada um deve ser reconhecido e tratado com dignidade, pois é a referência de si mesmo (alteridade). A comunidade, por sua vez, é o espaço em que lapidamos o nosso ser pessoal e social, onde ousamos viver a nossa subjetividade, buscando o reconhecimento.

Um dos grandes ensinamentos da amiga e Mulher da Paz Sílvia foi ter-me ensinado que para sobreviver precisamos de muitas poucas coisas, mas que precisamos nos apegar ao que é fundamental: família e comunidade. Ensinou-me ainda, que é preciso amar as crianças, as mulheres e os mais velhos porque estes são os sujeitos da comunidade que mais precisam de nossa ajuda e proteção. Sílvia comprovou, a si mesmo e aos outros, que sempre é bom e necessário reconciliar-se com os outros para reconciliar-se consigo mesmo. Ensinou-me o quanto uma mãe é capaz de fazer em defesa de uma filha, e de seus filhos. Soube constituir-se sujeito, a partir da comunidade.

Conviver com a presença ausente (de meu querido Pai e de Sílvia Aparecida de Miranda) é deparar-se com os interstícios entre as palavras, as ações, os gestos e os exemplos de nossos entes queridos. As lembranças se encarregam de recolocar, permanentemente, que cada pessoa tem algo a nos ensinar porque é única, sagrada, genuína. A presença ausente é, também, prova de que a vida se faz na experiência compartilhada, nas memórias e nas histórias de todos os que na comunidade se fazem protagonistas.

Sigamos, pois, acreditando na vida e fortalecendo a luta cotidiana por dias melhores, para homens e para as mulheres. No caso de Sílvia, como dizem as Mulheres da Paz de Passo Fundo, "a saudade passa a ser fermento da esperança e da luta pela vida sem violência".

* Nei Alberto Pies é professor e ativista de direitos humanos.

Fonte: Nei Alberto Pies / Revista Missões

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