As manifestações populares

Raúl Zibechi *

As grandes manifestações que ocuparam as ruas de muitas cidades do Brasil em junho não nasceram do dia para a noite. Os movimentos populares espontâneos já têm uma longa história. Não têm organização a nível nacional, mas vivem localmente e espontaneamente ligados.

Ainda antes do governo Lula e durante seu mandato, vimos movimentos alternativos, envolvidos em pequenas lutas que foram dando origem a uma nova cultura de luta desvinculada da direita e da esquerda. Através das mobilizações contra a globalização, até ao ano 2000, cresceu entre os jovens uma cultura de ação direta, sobretudo, nas grandes cidades: as rádios livres o CMI (Centro de Meios Independentes), grupos de jovens que se posicionaram contra seus próprios partidos ou romperam com eles e outros jovens que são contra estruturas tradicionais, como as sindicatos e as burocracias estudantis.

Um pouco de história
Em 2003, em Salvador, 40 mil pessoas saíram para as ruas protestando contra o aumento da passagem de ônibus: ficou conhecida como a "Revolta do Buzu". A juventude saiu em massa para as ruas e de imediato as lideranças estudantis negociaram com o governo, passando por cima da mobilização espontânea. Foi uma espécie de traição. Nove das dez demandas foram acolhidas pelo prefeito e exatamente aquela que se referia ao aumento da passagem não foi concretizada. A partir dessa experiência percebemos que era possível lutar sem estar ligado a um partido.

Em 2004, em Florianópolis, aconteceu a chamada "Revolta das Catracas": também essa foi uma pequena organização em luta pelo passe livre, sem partido, autônoma, horizontal, voltada para a ação direta e com posição anticapitalista. A partir daí quase todos os anos, em muitas cidades, os movimentos contra o aumento do passe voltam para as ruas. Os líderes do movimento não pretendiam negociar com ninguém, mas apenas expressar as aspirações populares.

Em 2005 foi criado o Movimento Passe Livre - MPL a nível nacional com o objetivo de reclamar por transporte melhor e passe livre. O movimento quis manter-se desligado de qualquer organização político partidária, sem ligação horizontal com grupos políticos. Aos poucos, quase todos os anos, esse movimento organizou protestos e reivindicações. As lutas têm sido localizadas porque cada cidade tem administração própria no que toca ao transporte público.

Nos últimos dez anos em cerca de 60 cidades, houve manifestações com mobilizações pequenas de cerca de dez mil pessoas. Em algumas cidades conseguiram parar os aumentos do passe e em outras não, ou conseguiram somente para estudantes. Os Comitês populares que surgiram no tempo da Copa de 2008 foi uma experiência de luta popular nas ruas que ajudou na construção dessa visão popular, livre e espontânea.

Há quem afirme que se trata de movimentos de classe média, de estudantes e de profissionais. É isso mesmo?

Creio que não. Essa mobilização é, sobretudo, de jovens da classe trabalhadora que ainda mantém muitas divisões: há uma classe trabalhadora informal e outra formal; e nas periferias vive uma classe trabalhadora com empregos precários. Quando se fala de classe média estão ignorando a participação dos informais do centro que participam nas manifestações. Quando estão na rua não há distinção de classe e as motivações são também desiguais.

A cultura popular militante
O que há de novo nesta cultura militante? Como estão organizados os jovens? Qual a sua força no Brasil? Qual era a atividade do MPL antes da ida para as ruas em junho?

Na organização dos MPL e nos Comitês da Copa há uma mistura de jovens da periferia e do centro urbano. Nas cidades onde não havia proposta de aumento de passagens, as reuniões do MPL não concentravam mais de 5 a 10 pessoas. Quando aparecia o aumento das passagens, de repente, se reuniam dezenas. Rapidamente saiam para a rua centenas e milhares exigindo passes mais baratos, mudanças de políticas públicas e interrupção de privatizações.

Hoje, sabemos que a Copa é um grande negócio para empresas e para o comércio, para o transporte é um desastre que já se arrasta há muitos anos. De qualquer modo, esta nova consciência crítica revela a importância dos pequenos grupos militantes com alto nível de compromisso.

Os chamados Comitês da Copa são constituídos por pessoas de comunidades desalojadas e por jovens universitários militantes. Tanto os jovens universitários como o MPL sempre mantiveram meios de contato para atuarem juntos com o povo das favelas que outrora eram direcionados por grupos, sobretudo pelo PT. Mas, a partir do momento que o PT virou governo, a política do PT se distanciou do povo, respondendo às suas necessidades apenas com bolsas a algumas habitações precárias. Esse vazio foi preenchido por uma cultura militante horizontal. Também por causa desse fenômeno, a segregação urbana da classe pobre ganhou força, também por causa da forte emigração, do crescimento imobiliário e de alguns serviços públicos da educação e da saúde mal orientados.

Desde 2007 e 2008, o MPL teve uma presença mais constante nas escolas e entre os desalojados. O movimento está muito atento ao sistema de transporte coletivo e se preocupa com a reflexão da questão social nas escolas secundárias e nas universidades. O trabalho mais incisivo se faz também nas comunidades das periferias das grandes cidades.

Os Comitês Populares da Copa seguiram um caminho semelhante trabalhando nas periferias a ajudando a entender que a realização da copa iria trazer um trabalho provisório, mas um grande ganho iria ficar na mão das empresas. Alguns dos media tradicional se abriram à transmissão com muitas críticas porque nesses meios já trabalham pessoas que vieram dos movimentos. Algumas críticas à Fifa foram contundentes exatamente por causa disso.

O contexto
O movimento pelo passe livre já tinha começado no início do ano. Em Goiânia em maio, em Porto Alegre em março, em Natal, Teresina e Belém o movimento saiu às ruas antes de São Paulo e Rio de Janeiro. A saída para as ruas não é criação imediata, mas, o resultado de uma fermentação cultural de contestação e de reivindicações por maior justiça e respeito. A força das mobilizações em São Paulo teve um papel determinante para a expansão em todo o Brasil. Não estamos mais lidando com movimentos sindicais, estruturados com regulamentos e protegidos por leis, mas por uma cultura que se desenvolve cada vez mais nas pessoas que entendem alguma coisa da má administração pública.

Em São Paulo as autoridades não entenderam o significado das ações do movimento. O PT procurou infiltrar-se, Haddad pensou logo em negociação, Alckmin decidiu pelo policiamento repressor. Já sabíamos que o governo do PSDB é repressor, mas não sabíamos que o prefeito optasse pela aprovação das medidas drásticas e violentas da polícia. Essa repressão foi um fato importante para nacionalizar as mobilizações. Quando as mobilizações começaram a se revelar distorcidas e manipuladas por outros grupos, alguns deles depredatórios, nós nos retiramos.

Um terceiro elemento que ganhou força por todo o Brasil foi o movimento da Copa. A Copa motivou grandes investimentos e os projetos de urbanização e da mobilidade urbana ficaram esquecidos.Os investimentos com a Copa de 2014 são exagerados.

A direita
A direita procurou se aproveitar dos movimentos das ruas para protestar contra o governo. A direita domina as situações através de um grupo político bem organizado e um grupo mediático. Agora quer construir um grupo de controle social. A direita, colocada nas ruas, tentou controlar o discurso dirigido contra a corrupção no governo PT, não contra a corrupção na administração pública. Procurou aproveitar-se das manifestações para tirar proveito eleitoral e de certa maneira contra os direitos dos negros e dos gays. A extrema direita também procurou se aproveitar para desfigurar os partidos de esquerda, sem falar dos problemas reais que nos levaram às ruas.

Reação dos sindicatos e do MST
A convocação de 11 de julho foi um fracasso para os sindicatos e para o MST. Não houve nenhuma referência à repressão policial nem ao massacre de 24 de junho no Rio, no Complexo da Maré.
Há grupos sindicais pequenos que apoiaram o movimento sem pretensões maiores. Os sindicatos maiores criticaram o MPL dizendo que fomos as mãos escondidas da direita. O movimento sindical não conseguiu mobilizar uma resposta classista com a greve. De um lado, o movimento de 11 de julho foi a maneira de apoiar o governo sob pretexto da governabilidade e também uma forma de poder controlar parte do povo que tinha ido para a rua nas manifestações.

O futuro próximo
Temos pela frente a Copa de 2014 e as eleições presidenciais. Neste painel temos que enfrentar três problemas.
O primeiro diz respeito às intenções do governo e dos media de reprimir ou coibir as manifestações através de repressão ou através de mecanismos bem montados de consenso, o que originaria uma "derrota sociológica" do movimento.

O segundo problema diz respeito aos mais jovens militantes que necessitam de lideranças bem organizadas. Temos uma vantagem, porque as pessoas que falam mal de nós não sabem como contestar-nos. O mais importante é continuar com a conscientização e alguma organização. O MPL era um movimento que com muita facilidade colocava muita gente na rua. Agora o desafio é ver se somos capazes de evoluir e ser uma organização de massa, autônoma, horizontal e anticapitalista. Todas as organizações pequenas e espontâneas se colocam a mesma questão.

A terceira questão diz respeito ao ponto de nossa chegada. Chegamos um pouco tarde ao envolvimento de setores sociais que são decisivos, porque sofrem de repressão estrutural. A divisão racial, o elitismo e a exclusão social disfarçada ainda existem. Nós necessitamos de organizar uma luta social transformadora sem passar pela depredação de comércio e de ônibus. Vimos essas depredações em muitas cidades. O que precisamos fazer é lutar contra as estruturas classistas, sexistas de nossa sociedade. Temos apenas um ano pela frente para pensarmos sobre o que fazer para que no período do Mundial não se crie um ambiente de repressão policial.

Enfim estamos perante desafios enormes de caráter organizativo, ideológico e econômico. Os empresários não querem que Dilma saia do governo porque eles estão bem com este modelo. As classes mais exploradas também têm medo de que a situação fique pior para eles.

* Raúl Zibechi é jornalista, antropólogo e ativista do MPL.

Fonte: http://desinformemonos.org

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