A verdadeira Igreja dos pobres

Michael Löwy*

O primeiro papa latino americano, Francisco, parece querer distinguir-se do seu antecessor pelas ideias e pelas práticas tomando como referência a figura de São Francisco de Assis, e colocando a questão da pobreza no centro do seu pontificado. Por ser proveniente da Americana Latina, será que ele é portador da teologia da libertação? Podemos duvidar.

O que habitualmente denominamos como teologia da libertação não é apenas uma sucessão de reflexões e de textos, elaborados desde 1971 por algumas figuras como, Gustavo Gutierrez, Hugo Assmann, Frei Betto, Leonardo Boff, Paulo Richard, Enrique Dussel, João Sobrino, Inácio Ellacuria, - querendo citar apenas os nomes mais famosos. Mas é uma expressão de carácter intelectual e espiritual que faz parte de um largo movimento social que se manifesta num elenco serrado de pastorais populares ( da terra, da vida urbana, os indígenas, a mulher) tendo como organização fundamental as comunidades de base, organizações de periferia, comissões de justiça e paz, grupos de ação católica, enfim aqueles que assumiram como referência de atividades a Opção Preferencial pelos Pobres.

Nesses grupos não encontramos uma forma tradicional de caridade, mas uma forma de solidariedade concreta na luta pela libertação das situações de pobreza. Sem a prática deste movimento sindical e religioso - poderíamos denominá-lo de cristianismo da libertação - não podemos compreender os fenômenos sociais tão importantes na história recente da América Latina como a organização das revoluções na América Central - Nicarágua, El Salvador - o surgimento do novo movimento operário no Brasil e movimento separatista em Chiapas.

Uma Religião comunitária de Salvação

O Cristianismo de Libertação, em especial as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), não se define como paradigma de Igreja ou de uma seita mas como afirmava Max Weber (1864-1920) em 1915 é uma religião comunitária de salvação; isto é, uma forma de religiosidade, fundada sobre uma ética religiosa de fraternidade, cuja fonte é a antiga ética econômica de aproximação - poderíamos acrescentar, em alguns casos, a denominação de "um comunismo de amor fraterno".

Se quisermos resumir a ideia central desse Cristianismo de Libertação numa fórmula apenas, podemos retomar a expressão formulada pelos bispos em Puebla em 1979: "A Opção Preferencial pelos Pobres". Qual seria a novidade?

Que a Igreja, depois de tantos anos de atividade, não aprendeu a estar atenta no serviço de caridade para com os pobres? A grande diferença está no fato de que para o Cristianismo da Libertação os pobres não são percebidos como simples objeto (de ajuda, de compaixão e de caridade), mas como sujeitos de sua própria história, autores de sua própria libertação.

Segundo essa teologia, a tarefa dos cristãos, socialmente engajados, consiste em participar desta longa caminhada dos oprimidos para chegar à terra prometida, à liberdade, dando-lhes um bom contributo de ajuda de organização e de auto emancipação social.

A outra diferença entre a atitude de caridade e a simples assistência segundo a tradição, - bem apresentada agora pelo novo papa argentino- foi formulada há bastantes anos pelo cardeal brasileiro dom Herder Câmara: "Quando eu dizia que era necessário ajudar os pobres, eu era considerado um santo; quando eu pergunto, porque ainda existem tantos pobres, dizem que sou comunista".

O principal inimigo da ditadura

Durante as décadas de 60 e 70 se instalaram ditaduras em vários países da América Latina: Brasil, Chile, Argentina e outros. Os militantes da Teologia da Libertação participaram ativamente na resistência a essas ditaduras e contribuíram para o seu declínio a partir dos anos 80. Eles tiveram uma forte importância, às vezes até uma importância decisiva, na democratização de seus países.

No Brasil, durante os anos 70, a Igreja dos pobres, perante a sociedade civil e dos militares, foi considerada como adversário fundamental da ditadura; um inimigo mais poderoso (e às vezes radical) do que a oposição parlamentar tolerada pelos militares e elites (e dócil).

Ao contrário da situação vivida no Brasil, a Argentina historicamente mais próxima do autoritarismo e do exército, não se posicionou historicamente contra a ditadura militar, responsável durante os anos de 76 a 83 por trinta mil mortos ou desaparecidos. Muitos cristãos, tanto padres como leigos, pagaram com a própria vida seu engajamento na resistência aos regimes autoritários na América Latina, ou mesmo com a simples denúncia de torturas, assassinatos ou violação de direitos humanos.

Foi o caso de El Salvador onde o arcebispo dom Oscar Romero foi assassinado por militares em março de 1980, assim como Inácio Ellacuria e seus companheiros jesuítas da universidade de El Salvador que foram assassinados pelos militares em novembro de 1989.

A Santa Sé, em 1985, condenou, através da Sagrada Congregação para a Fé, (cujo Prefeito era o cardeal Joseph Ratzinger, futuro papa Bento XVI), a Teologia da Libertação vista como heresia: "é tanto mais perigosa quanto mais próxima está da verdade" Para a Igreja permanece a regra: Roma locuta est causa finita (Roma falou terminou a questão).

Mas os teólogos da libertação continuaram, cada um fazendo sua interpretação da Teologia da Libertação e a defendê-la como fazendo parte do cristianismo. Alguns, como Leonardo Boff, preferiram deixar o ministério para defender sua liberdade de expressão; outros, como Gustavo Gutierrez, evitaram os conflitos intereclesiais, sem renunciar às suas convicções e ao seu engajamento.

Integrar os desafios do multiculturalismo

Não queremos afirmar que o pensamento desses homens pensadores não tenha evoluído. Pelo contrário, abriu novos canteiros de trabalho nas análises de opressão das mulheres, da descriminação dos negros, dos indígenas; integrou os desafios do multiculturalismo e da ecologia, do pluralismo religioso e do diálogo interconfessional.

E podemos também dizer que ela submeteu à crítica, teológica e política, o neoliberalismo, a nova forma que esse sistema liberal, o capitalismo, tomou na América latina que, segundo a visão deles, é intrinsecamente perverso.

Neste contexto, alguns teólogos são impulsionados a desenvolver uma reflexão que se relaciona com pensamento de Marx para poderem criticar o capitalismo neoliberal comparado a uma falsa religião, baseada sobre a idolatria do mercado e o culto ao deus Mamon.

Segundo estes teólogos, especialmente Hugo Assmann ou Franz Hinkelammert, os novos ídolos capitalistas são identificados com o dinheiro, o lucro, a dívida externa, comparadas àqueles que os profetas do Antigo Testamento denunciaram; são os Loloch que exigem sacrifícios humanos, uma imagem muito utilizada por Marx no seu livro, O Capital.

A luta do Cristianismo da Libertação é contra a idolatria mercantil. Segundo esses teólogos, é uma luta de deuses entre o Deus da vida e os ídolos da morte (Jon Sobrino) ou entre o deus de Jesus Cristo e a multiplicidade de deuses olímpicos do capitalismo (Pablo Richard).
O novo paradigma da civilização.

Nos últimos anos, a crítica do capitalismo foi cada vez mais associada pelos teólogos da libertação à problemática ecológica. Neste terreno, o pioneiro foi Leonardo Boff, cada vez mais preocupado com o meio ambiente que ele às vezes olha com um espírito de amor místico e franciscano pela natureza, sem abandonar a crítica radical do sistema capitalista. Essa mística auspicia por um paradigma de civilização que deve estar alicerçado sobre a ética da vida e uma solidariedade planetária.

Não há dívida de que a influência da teóloga da libertação recuou em muitos países do continente. A partir do tipo de bispos escolhidos pelo papa Wojtyla e por Ratzinger, o episcopado latino americano se tornou bem mais conservador. Mesmo os que adotam posições progressistas, a nível social, compartilham as escolhas conservadoras da Santa Sé contra o direito das mulheres para dispor de seus corpos (divórcio, contracepção, interrupção de gravidez etc).

Dito isto, num país como o Brasil, o Cristianismo da Libertação conserva ainda uma presença importante no âmbito das comunidades de base, das pastorais populares dos movimentos leigos, e nos grupos de formação Fé e Política, que são ainda animados por Frei Betto que consegue reunir seguidores de todo o país.
E ainda, os cristãos socialmente engajados, são uma das componentes mais ativas do movimento por "outro mundo", desde o começo do milênio, sobretudo no Brasil, mas não exclusivamente nele, grupos que têm participado no Fórum Social Mundial. Um dos iniciadores desse movimento foi Chico Whitaker, membro da Comissão de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, um dos fundadores e articuladores desse movimento.

É difícil prever qual será o futuro do Cristianismo da Libertação na América Latina. O seu enraizamento sócio religioso lhes permite manter-se vivo, apesar da oposição dos últimos dois papas.

Qualquer que seja a posição do atual papa Francisco a respeito dessa concepção teológica e interpretativa da realidade, ele continuará provavelmente e obstinadamente a praticar este "comunismo de amor fraterno" do qual falava Max Weber.

*Michael Löwy é pesquisador e sociólogo franco-brasileiro. Diretor emérito de pesquisa no CNRS e autor de vários livros "La Guerre des dieux. Religion et politique en Amérique latine", éd. du Félin, 1998 ; "Rédemption et utopie. Le judaïsme libertaire en Europe centrale. Une étude d'affinité élective" (éd. du Sandre, 2009) ; "La Cage d'acier. Max Weber et le marxisme wébérien".
Publicado pelo Le Monde 30.03.2013. Trad. Pe. Joaquim F. Gonçalves

Fonte: www.lemonde.fr

Deixe uma resposta

dois × 5 =