Bruno Peron *
Nem todo tema se fossiliza no debate político latino-americano. Muda o contexto e as condições de produção da história, mas certos fenômenos reincidem nas pegadas frescas do dinossauro.
Quando se depositava confiança na construção da democracia e na estabilidade de suas instituições, mais uma manobra política suspeitosa (possivelmente uma nova variedade de golpe de Estado) aflora na América Latina. Desta vez, o Paraguai é o cenário onde seus legisladores provaram que são capazes de mudar o país em menos de dois dias ao afastar o presidente Fernando Lugo (líder do partido Alianza Patriótica para el Cambio - APC) do poder em 22 de junho de 2012 devido a estranhas acusações de incapacidade administrativa.
Quisera fossem os parlamentares paraguaios igualmente eficientes para aprovar o ingresso definitivo de Venezuela no Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) - o que todos os outros membros do bloco já fizeram, vale lembrar -, agilizar a reforma agrária em vez de criminalizar os "carperos" (nome pejorativo dado aos sem-terras no Paraguai), e representar com fidelidade os segmentos diversos do povo paraguaio em vez de adular latifundiários e tramar em seu favor. Se fossem coerentes com a democracia, dariam tempo a que Lugo se defendesse das acusações.
O Paraguai repete a história da perfídia. Uma vez que o golpe é dado, não há volta. Foi assim com a derrubada de Manuel Zelaya em Honduras em junho de 2009. A resistência popular neste país não foi suficiente para reverter os efeitos desta prática sombria das democracias frágeis que vira o jogo quando menos se espera. Provavelmente não há uma contra-trama popular no Paraguai que recupere, com agilidade semelhante, o poder do presidente legítimo.
O mais irônico é que o discurso da democracia justifica práticas anti-democráticas com a mesma desenvoltura e extroversão. Os parlamentares paraguaios alegam que a Carta Magna deste país não contradiz o afastamento de seu presidente em tal circunstância, cujo procedimento é uma trama que não brotou de um dia para outro. Soma-se ainda o baixo apoio político que Lugo tinha do Poder Legislativo, cuja maioria votou por seu impedimento.
O açoite contra a evolução institucional do regime democrático no Paraguai marca que a fidelidade aos mecanismos da democracia pode romper-se pelas elites no sistema político deste e de outros países. Tal rompimento acontece quando os interesses dos grupos elitistas estão ameaçados. O desejo dos grupos populares, desta forma, filtra-se por seus representantes, que atendem também os interesses daqueles que os mantêm no poder mediante os recursos sub-reptícios da democracia. Um exemplo é o financiamento privado de campanhas políticas.
Diante do impedimento, Lugo propôs-se a monitorar as atividades de Federico Franco, que até então era o vice-presidente, através de um "governo paralelo". A expectativa é de que os eleitores e grupos fiéis a Lugo respaldem este líder e sua equipe mesmo que estejam vulneráveis a ameaças de inconstitucionalidade e encarceramento por parte de Franco. O governo interino foi criado imediatamente pelo vice-presidente, quem deveria ser da mesma orientação política que Lugo. Este tipo de alianças, contudo, prevê-se na conquista do eleitorado e, logo, do poder.
Uma das estratégias de Franco para legitimar-se no poder é o pedido de apoio do governo brasileiro e da opinião pública. Seu argumento é de que os "brasiguaios" merecem o mesmo tratamento dos cidadãos paraguaios e proteção de suas propriedades contra os sem-terras. Contam com que qualquer país tende a sensibilizar-se com seus nativos independentemente do que façam no exterior. O Paraguai foi suspenso temporariamente do MERCOSUL, no entanto.
O dinossauro é a metáfora das elites obstinadas, das conspirações em erupção, das ações anti-democráticas sob o véu da democracia, do fazer autoritariamente e ver no que dá. Nosso laboratório das "ideias fora do lugar" (termo do crítico literário austríaco-brasileiro Roberto Schwarz) frequentemente contém experimentos ultrapassados ou, pior, que se arriscam na América Latina em proveito de suas instituições débeis e em detrimento de seu povo sofrido.
O abalo da democracia no Paraguai é uma expressão de ultraje a este regime de governo e às instituições que visam a oferecer estabilidade política a este e outros países democráticos.
* Bruno Peron Loureiro, mestre em Estudos Latino-americanos.
Fonte: www.ecodebate.com.br