Sapatos pretos e um caixão de madeira, como todos nós

Não existiu, na história, um papa tão identificado com seu modelo inspirador.

Por Fabrício Carpinejar

O Papa Francisco já começa a produzir seus primeiros milagres após a morte — faleceu nesta segunda-feira (21), aos 88 anos, um pouco depois da Páscoa.

Dispensou os ritos fúnebres grandiloquentes de despedida do Sumo Pontífice.

Tradicionalmente, os papas são sepultados em três caixões: um de cipreste, um de chumbo e o terceiro de carvalho. Francisco optou por um único esquife de madeira, tendo indicado em testamento uma cerimônia livre de pompa e hierarquia.

Ao contrário do costume de colocar o corpo sobre um estrado elevado (o catafalco), Francisco será apresentado diretamente no caixão, com a tampa aberta, permitindo que os fiéis prestem suas homenagens de maneira mais íntima e próxima. Preserva-se, assim, o contato com as raízes, com o chão, com o destino das sementes.

Em vez de ser enterrado nas Grutas Vaticanas, sob a Basílica de São Pedro, como a maioria dos papas, Francisco escolheu um cantinho pessoal, de adoração particular: a Basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Frequentava esse templo para orações e nutria irrestrita admiração por Salus Populi Romani, um dos ícones marianos mais antigos da cristandade: a Virgem Maria com o Menino Jesus no colo.

Não existiu, na história, um papa tão identificado com seu modelo inspirador.

O papa se espelhou em Francisco de Assis, que havia refletido Jesus Cristo. Ao invés de ceder ao poder e à ostentação do mais alto cargo da Igreja Católica, ele se converteu simbolicamente pela segunda vez ao ser eleito papa. O arcebispo argentino Jorge Mario Bergoglio foi um; o Papa Francisco foi outro — bem diferente. De perfil austero em Buenos Aires, deu lugar a um pontífice cujo tom era piedoso e inclinado ao diálogo. Redefiniu prioridades, deslocando o foco das guerras culturais para a pastoral da misericórdia, da justiça social e do cuidado ambiental.

Era visto como conservador — e alcançou a fama de reformador. Combateu o obscurantismo, rompeu preconceitos e omissões milenares.

Assim como Francisco de Assis entregou suas roupas ao pai Pedro Bernardone, um rico comerciante, dizendo-lhe "Até agora, chamei-te de pai na Terra; de agora em diante, direi: Pai nosso que estais no céu", o Papa Francisco ofereceu o seu passado ao vestir o pálio.

Não quis morar nos apartamentos papais, mas na Casa Santa Marta. Abdicou de qualquer luxo para se manter acessível. Liderou uma revolução eclesiástica, abrindo discussões sobre o celibato, a inclusão da homoafetividade, o diaconato feminino e o acolhimento de pessoas em situações antes tidas como irregulares, como os divorciados recasados.

É conhecida a passagem em que Francisco de Assis ouviu a voz de Deus:

— Francisco, vai e repara a minha casa, que, como vês, está em ruínas.

Teria interpretado essas palavras literalmente, como um pedido para reconstruir a capela de São Damião, que se encontrava em ruínas. Não entendeu que, a partir dela, iniciava uma ampla reforma espiritual da Igreja.

Do mesmo modo, o Papa Francisco acreditava estar transformando apenas o Vaticano, mas acabou impactando o mundo inteiro com seu despojamento cativante, com seus despretensiosos sapatos pretos, em vez dos sapatos vermelhos de seus antecessores.

Logo, Francisco será considerado santo. Porque foi, acima de tudo, profundamente humano.

Repousa para sempre num caixão de madeira, como todos nós. Calçado com o par da humildade e da simplicidade. Sob a lápide, apenas uma inscrição, sem explicação nenhuma: FRANCISCUS.

Fabrício Carpinejar é jornalista, escritor e poeta.Texto publicado na coluna no jornal Zero Hora, GZH, última página, Porto Alegre (RS), 22/4/25:

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